8 de jan. de 2016

A Rússia em uma guerra invisível

Como poderia a Rússia, em apenas 20 anos, sem guerras ou outras perturbações, erguer-se de uma posição de meia-colônia a uma reconhecida posição de líder mundial, de igual entre as mais altas?

Por Rostislav Ischenko, no Pravda.ru

Esrategistas" abrangentes [do inglês 'kitchen 'strategists''; uma alusão à expressão 'everything, but the kitchen sink': 'tudo, mas a pia da cozinha'; tudo o que pode ser concebido de uma dada situação (dicionário Collins)], que acreditam sinceramente que um maciço ataque nuclear é a solução universal para qualquer problema internacional (ou mesmo um confronto bem quente, perto de confronto militar), estão insatisfeitos com a posição moderada da liderança russa na crise com a Turquia. No entanto, eles consideram insuficiente até mesmo a participação direta do exército russo no conflito sírio. Eles também estão insatisfeitos com as atividades de Moscou na frente ucraniana.

Mas, por alguma razão... ninguém faz uma pergunta simples: Como aconteceu que, de repente, a Rússia começou não só a se levantar ativamente frente ao poder hegemônico do mundo, mas a ganhar com sucesso contra ele em todas as frentes?

Por que agora
No final da década de 1990, a Rússia era um estado que econômica e financeiramente estava a nível de Terceiro Mundo. Uma rebelião anti-oligarcas estava se formando no país. Ela estava lutando uma guerra sem fim e sem esperança com chechenos, que se espalhou ao Daguestão. A segurança nacional era garantida apenas por armas nucleares, pois para realizar qualquer operação séria, mesmo dentro de suas próprias fronteiras, o exército não tinha nem pessoal treinado nem equipamentos modernos, a frota não poderia navegar, e a aviação não poderia voar.

Com certeza, qualquer um pode dizer como a indústria, incluindo a militar, foi revivida gradualmente, como o crescente nível de vida estabilizou a situação interna, como o exército foi modernizado.

Mas, a pergunta-chave não é quem fez mais para reconstruir o exército russo: Shoygu, Serdukov ou o Estado-Maior. A questão fundamental não é quem é o melhor economista, Glaziev ou Kudrin, e se seria possível alocar ainda mais recursos para as despesas sociais.

O fator chave desconhecido nessa empreitada é o tempo. Mas, como a Rússia teve tempo? Por que os EUA deram tempo à Rússia para preparar a resistência, para crescer o músculo econômico e militar, para aniquilar o lobby pró-americano financiado pelo Departamento de Estado na política e nos meios de comunicação?

Por que o confronto aberto, no qual estamos agora à frente de Washington, não começou mais cedo, 10 a 15 anos atrás, quando a Rússia não tinha chance de suportar sanções? Na realidade, os EUA, na década de 1990 ou de 2000. começaram a instalar regimes fantoches no espaço pós-soviético, incluindo Moscou, que foi considerada uma das várias capitais da Rússia desmembrada.

O conservadorismo saudável dos diplomatas
As condições do sucesso militar e diplomático de hoje foram construídas por décadas na frente invisível (diplomática).

Deve ser dito que, entre ministérios centrais, o Ministério dos Assuntos Exteriores foi o primeiro a recuperar-se da confusão administrativa decorrente do colapso do fim da década de 1990. Ainda em 1996, Evgeny Primakov tornou-se Ministro dos Assuntos Exteriores, e, além de virar de volta o avião do governo sobre o Atlântico ao saber da agressão dos EUA contra a Jugoslávia, virou também a política externa russa que, depois disso, nunca mais seguiu o curso dos Estados Unidos.

Dois anos e meio mais tarde, ele recomendou Igor Ivanov como seu sucessor, o qual lentamente (de forma quase imperceptível), mas certamente, continuou a fortalecer a diplomacia russa. Ele foi sucedido em 2004 pelo atual ministro Sergey Lavrov, sob cuja liderança a diplomacia acumulou recursos suficientes para mudar de uma posição de defesa para uma contundente posição ofensiva.
Entre estes três ministros, só Ivanov recebeu a medalha Estrela de Herói; mas, tenho certeza de que seu antecessor e seu sucessor são igualmente merecedores desse prêmio.

Deve ser dito que a tradicional proximidade de castas e o conservadorismo saudável do corpo diplomático contribuíram para o rápido restabelecimento do trabalho do Ministério dos Assuntos Exteriores. O tradicionalismo e a paciência de que os diplomatas são acusados ajudaram. 
"Kozyrevshchina" [a palavra é derivada do nome de Andrei Kozyrev, Ministro dos Assuntos Exteriores de 1990 a 1996; a palavra significa "agir como Kozyrev", ou seja, de forma subserviente, contra seus próprios interesses - nota do tradutor] nunca pegou no Ministério dos Assuntos Exteriores porque não se encaixava.

Período de consolidação interna
Vamos voltar a 1996. A Rússia está no fundo do poço, economicamente, mas o padrão de 1998 ainda está à frente. Os EUA desconsideram totalmente o direito internacional, substituindo-o por suas ações arbitrárias. A OTAN e a UE estão se preparando para mover-se para a fronteira russa.

A Rússia não tem nada com o que responder. A Rússia (como a URSS antes dela) pode aniquilar qualquer agressor em 20 minutos; mas, ninguém planeja combatê-la. Qualquer desvio da linha aprovada por Washington, qualquer tentativa de conduzir uma política externa independente, conduziria ao estrangulamento econômico e à desestabilização interna subsequente - naquele tempo, o país dependia de créditos ocidentais.

A situação é ainda mais complicada pelo fato de que, até 1999, o poder está nas mãos da elite compradora em dívida com os EUA (como o atual poder ucraniano), e, até 2004-2005, os compradores ainda estão lutando pelo poder com a burocracia patriótica de Putin. A última batalha na retaguarda, dada pelos compradores a perder, foi uma tentativa de revolução em 2011, na Praça Bolotnaya. O que será que teria acontecido se eles tivessem feito essa insurreição em 2000, quando tinham uma vantagem esmagadora?

Os líderes russos precisavam de tempo para consolidação interna; para restauração dos sistemas econômico e financeiro, garantindo sua autossuficiência e independência do Ocidente; e para reconstruir um exército moderno. Finalmente, Rússia precisava de aliados.

Os diplomatas tinham uma missão quase impossível. Era necessário, sem recuar sobre questões-chave, consolidar a influência da Rússia nos Estados pós-soviéticos, aliar-se com outros governos resistindo os EEUU, reforçando-os, se possível, e ao mesmo tempo criar uma ilusão em Washington de que a Rússia era fraca e estaria pronta a fazer concessões estratégicas.

A ilusão da fraqueza da Rússia
Uma demonstração do fato de que essa tarefa foi alcançada com êxito são os mitos que ainda estão vivos entre alguns analistas Ocidentais e "oposição" russa pró-americana. Por exemplo, se a Rússia se opõe a alguma instância do aventureirismo ocidental, está "blefando para salvar a pele"; as elites russas são totalmente dependentes do Ocidente porque "o dinheiro está lá"; "a Rússia trai seus aliados".

No entanto, os mitos de que "foguetes enferrujados não voam", "soldados com fome estão construindo moradias para generais", e sobre "economia em frangalhos" praticamente desapareceram. Apenas marginais [os que estão 'fora dos livros', aquém do limite dos discursos; com referência à posição filosófica - N.T.] acreditam nisso - esses marginais não são realmente incapazes, mas têm medo de reconhecer a realidade.

Essas ilusões de fraqueza e prontidão para retroceder que enganaram o Ocidente na crença de que a questão russa fora resolvida e detiveram rápidos ataques políticos e econômicos em Moscou deram à liderança russa o precioso tempo para reformas.

Naturalmente, nunca há muito tempo, e a Rússia teria preferido adiar o confronto direto com os EUA, que começou em 2012-13, por mais 3-5 anos, ou até mesmo evitá-lo completamente; mas, a diplomacia ganhou 12 a 15 anos para o país - um enorme período de tempo no mundo rapidamente em mudança de hoje.

Diplomacia russa na Ucrânia
Para economizar espaço, vou dar apenas um exemplo muito claro, muito relevante na situação política atual.

As pessoas ainda culpam a Rússia por não conter os EUA na Ucrânia de forma suficientemente ativa, por não conseguir criar uma "quinta coluna" pró-russa para contrabalançar a pró-americana, por trabalhar com as elites e não com as pessoas, etc. Avaliemos a situação com base em capacidades reais, ao invés de ilusões.

Apesar de todas as referências aos cidadãos, é a elite que determina a política do Estado. A elite ucraniana, em todas as suas ações, sempre foi e ainda é anti-russa. A diferença é que a elite ideologicamente nacionalista (gradualmente se tornando nazista) era abertamente russofóbica, enquanto que a elite econômica (compradora, oligárquica) era simplesmente pró-ocidental mas não se opunha às ligações lucrativas com a Rússia.

Eu gostaria de lembrá-lo que não foram outras pessoas, mas representantes do supostamente pró-russo Partido das Regiões que gabavam-se de que não permitiriam negócios russos em Donbass. Eles também eram aqueles que tentaram convencer o mundo que eram melhores para a integração europeia do que os nacionalistas.

O regime de Yanukovich-Azarov precipitou o confronto econômico com a Rússia em 2013, exigindo que apesar de a Ucrânia assinar o tratado de associação com a EU, a Rússia retivesse e até mesmo aprimorasse um regime favorável à Ucrânia. Afinal de contas, Yanukovich e seus companheiros no Partido das Regiões, enquanto tinham poder absoluto (2010-2013), suportaram nazistas informativamente, financeiramente e politicamente. Eles os trouxeram de nicho marginal à política dominante a fim de ter um adversário conveniente nas eleições presidenciais, em 2015, enquanto suprimiram qualquer atividade informativa pró-Rússia (para não mencionar atividade política).

O partido comunista ucraniano, mantendo a retórica pro-Rússia, nunca teve uma chance no poder e desempenhou um papel de oposição leal conveniente indiretamente apoiando oligarcas, canalizando a atividade de protesto em locais seguros para qualquer poder (incluindo o atual).

Nessas condições, qualquer tentativa russa de trabalhar com ONGs ou criar uma mídia pró-Rússia seria percebida como uma invasão dos direitos dos oligarcas ucranianos para roubar o país sozinha, o que causaria outro deslize do oficialismo ucraniano em direção ao Ocidente, visto por Kiev como um contrapeso para a Rússia. Os EUA, muito naturalmente, veriam isso como transição da Rússia para o confronto direto e iriam redobrar seus esforços para desestabilizar a Rússia e apoiar elites pró-ocidentais em todo o espaço pós-soviético.

Nem em 2000, ou em 2004, a Rússia estava pronta para confrontar abertamente os EUA. Mesmo quando (não por escolha de Moscou) isso aconteceu em 2013, a Rússia precisava ainda de cerca de dois anos para mobilizar seus recursos a fim de dar uma forte resposta ao conflito na Síria. A elite Síria, em contraste à ucraniana, desde o início (2011-2012) rejeitou a opção de se comprometer com o Ocidente.

É por isso que, durante 12 anos (a partir de ação "Ucrânia sem Kuchma", que foi a primeira tentativa de golpe pró-americano na Ucrânia), a diplomacia russa trabalhou em duas frentes principais.

Primeiro, ela procurou manter a situação na Ucrânia em equilíbrio instável; segundo, ela procurou convencer a elite ucraniana de que o Ocidente era um perigo para seu bem-estar, enquanto que uma reorientação para a Rússia seria a única forma de estabilizar a situação e salvar o país, bem como a posição da elite em si.

A primeira tarefa foi alcançada com êxito. Os EUA conseguiram alternar o modo multidirecional da Ucrânia para o modo anti-russo somente em 2013, tendo gasto uma enorme quantidade de tempo e recursos e tendo adquirido um regime com enormes contradições internas, incapaz de existir independentemente (sem crescente apoio americano). Em vez de usar recursos ucranianos em seu benefício, os EUA é forçado agora a gastar seus próprios recursos para prolongar a agonia do Estado ucraniano destruído pelo golpe de estado.

A segunda tarefa não foi realizada devido a razões objetivas (independente dos esforços da Rússia).
A elite ucraniana acabou por ser totalmente inadequada, incapaz de pensamento estratégico, de avaliar os riscos reais e as vantagens, mas vivendo e agindo sob a influência de dois mitos: primeiro - o Ocidente vai facilmente ganhar em qualquer confronto com a Rússia e partilhar os despojos com a Ucrânia; segundo - nenhum esforço, exceto a inabalável posição anti-russa, é necessário para uma existência confortável (às custas de financiamento ocidental). Na situação de escolha entre voltar-se para a Rússia e sobreviver, ou tomar o lado do Ocidente e morrer, a elite ucraniana escolheu a morte.

No entanto, mesmo com a escolha negativa da elite ucraniana, a diplomacia russa conseguiu vantagem máxima. A Rússia não se deixou atolar num confronto com regime ucraniano, forçando Kiev e o Ocidente a um processo de negociação cansativo tendo como pano de fundo uma guerra civil moderada e excluindo os EUA do formato de Minsk. Centrando-se nas contradições entre Washington e a UE, a Rússia conseguiu sobrecarregar financeiramente a Ocidente com a Ucrânia.

Como resultado, a posição consolidada inicialmente de Washington e Bruxelas se desintegrou. 

Quanto à ofensiva-relâmpago [blitzkrieg] político-diplomática, os políticos europeus não estavam preparados para um confronto prolongado; a economia da UE simplesmente não podia apoiá-lo. Por sua vez, os EUA não estavam prontos a aceitar Kiev exclusivamente na própria folha de pagamento.

Hoje, após um ano e meio de esforços, a "velha Europa", que determina a posição da UE, como a Alemanha e a França, abandonou a Ucrânia completamente e está procurando uma maneira de estender uma mão para a Rússia sobre as cabeças limítrofes do Leste Europeu pró-americano (Polônia e Países Bálticos). Até Varsóvia, que costumava ser o principal "defensor" de Kiev na União Europeia, abertamente (embora semi-oficialmente) sugere a possibilidade de dividir a Ucrânia, tendo perdido a fé na capacidade das autoridades de Kiev a manter o país unido.

Na comunidade política e de especialistas ucraniana, a histeria sobre "a traição da Europa" está crescendo. O ex-governador da região de Donetsk (nomeado pelo regime nazista) e oligarca Taruta Sergey afirma que seu país tem mais oito meses de existência. O oligarca Dmitry Firtash (que tinha a reputação de "rei criador" ucraniano) prevê a desintegração na primavera.

Tudo isso, silenciosa e imperceptivelmente, sem o uso de tanques e da aviação estratégica, foi conseguido pela diplomacia russa. Alcançado em um confronto difícil com o bloco dos países mais poderosos, militar e economicamente, a partir de uma posição muito mais fraca e com os aliados mais peculiares, nem todos felizes sobre o crescimento do poder russo.

Avanço no Médio Oriente
Em paralelo, a Rússia conseguiu: retornar ao Oriente; reter e desenvolver a integração dentro do espaço pós-soviético (União Econômica Eurasiana); juntamente com a China, implantar um projeto de integração da Eurásia (Organização de Cooperação de Xangai); e dar início a um projeto de integração global através do grupo BRICS.

Infelizmente, o espaço limitado não nos permite discutir em detalhes todas as ações estratégicas da diplomacia russa nos últimos 20 anos (a partir de Primakov até hoje). Um estudo abrangente tomaria muitos volumes.

No entanto, quem quiser tentar responder honestamente como Rússia conseguiu, dentro de 20 anos, sem guerras ou convulsões, levantar-se de uma posição de semicolônia a uma posição de líder reconhecida do mundo, teria que reconhecer as contribuições de muitas pessoas na Smolenskaya Square [onde o Ministério dos negócios estrangeiros está localizado - nota do tradutor]. Seus esforços não toleram barulho ou publicidade; mas, sem sangue e sem vítimas, produzir resultados comparáveis aos obtidos por exércitos de milhões em muitos anos.

Tradução Marisa Choguill

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