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ARTE OU DESARTE, EIS A QUESTÃO.
Subo na porteira de meus oitenta anos, vindo da
nação vivida ao longo da estrada à minhas
costas, para aboiar minha soltura pelo atalho
que me resta. Honrado e gratificado com o
carinho que tenho recebido de todos pelo
caminho, colho do braseiro algumas
considerações a respeito dos entraves que vejo
poluir o universo de nossa cultura
embarreirando a atividade participativa de
nossos verdadeiros talentos, esperançado em
não malhar em ferro frio.
Aprendi que a arte é a principal presença
exigida em toda e qualquer habilidade intrínseca
de cada ser, na construção da evolução da
espécie. Desde aquela arte que vence guerras
sem derramamento de sangue, às artes
científicas nas investidas espaciais ou cura do
câncer, ou das mãos femininas numa singela
arrumação de flores, até a arte de uma
presidente ao assinar a instalação da "Comissão
Da Verdade". Assim como aquela arte que
conduz o pincel de um Portinari, ou ergue o
brado de um Ulisses Guimarães, as defesas
de um Sobral Pinto, a voz de uma Elis, o
comando de ação de um Glauber, ou na voz de
um poeta de feira a improvisar sua cantoria
ausente dos registros, mas que se crava no
inconsciente coletivo. Também a arte do
professor, do pedreiro, e das infinitas ocupações
dos que se dedicam à arte do labor pelo bem
de todos. Não aquela que se cinge no lombo da
boiada a desembestar pelas concessões,
distorções de conteúdo, ou modismos
passageiros para enriquecer o fazendeiro da
egocêntrica ambição de poderes na vasta
plantação das desigualdades, em guerras
sangrentas, na construção da miséria da grande
maioria da humanidade, utilizando-se do espaço
da arte verdadeira para impor a sua "desarte" e
iludir e desiludir os incautos. O "desartista",
encontrado em abundância em todas as áreas
do planeta
Sob este teto generoso de nosso país, que
abrigou no passado tão inspirada e eloqüente
criatividade, à qual devemos o respeito pela
histórica contribuição em variadas áreas, ao
revelar a grandeza emanada de nosso povo
como matéria prima de um produto cultural de
grande abrangência, admirada e cultuada por
outros povos, venho lembra-los do temporal que
se desaba sobre ela, face à inversão cruel de
valores, atavismo resultante de nosso complexo
de povo colonizado, atingindo hoje o maior grau
da escala.
A ausência da arte a que me refiro, está
provocando um retrocesso de nosso
pensamento, passando como um trator a
esmagar valores herdados do empenho de
inspirados criadores, desbravadores de um
caminho esculpido em duras pedras, sob o cinzel
de grandes artistas revelando o espirito de nossa
gente. Do fundo de meu desconforto colho uma
pergunta às instituições: não poderiam elas
aceitar, a exemplo de Dilma, o desafio de uma
mobilização efetiva e afetiva, em mutirão com as
frentes voltadas à retomada da dignidade
exigida, para que unidos pudéssemos recolocar
a locomotiva nos trilhos, arrastando os
numerosos vagões de nossa arte, carregados de
nossos valores, varando estradas a desovar em
cada brasileiro o verdadeiro alimento de sua
cidadania?
Acuados e apáticos diante dos obstáculos que o
sistema nos impinge, a cada recuo, vamos
chegando à beira do precipício de nossa
personalidade criativa, prestes a nos atirar no
limbo de uma nação sem espírito. Por mais que
estatutos ou normas impeçam cada entidade de
se manifestar, creio que é chegada a hora da
superação formal, para uma ação conjunta que
venha restituir, a exemplo da integridade de
nossos ancestrais, a dignidade de nosso povo, e
recriar o verdadeiro caráter de nossa
inventividade, abrindo uma picada na selva
dessa mediocridade que se alastrou. Ha um nó
estancado no ar, ha muito tempo. Não estará
na hora de desata-lo? Não nos falta a arte
necessária para tecer a urdidura de uma
solução.
Sem que minha sugestão resvale nalguma
suposta crítica à atuação dessa ou daquela
entidade voltada, de uma ou outra forma, para
o envolvimento com o tema exposto, venho
sugerir a seus cidadãos criadores, com poderes
de transformação, a busca de um engajamento
no processo político-cultural, atendendo ao
chamamento de nosso dom agonizante, antes
que a indiferença venha a se tornar a causa
mortis da alma brasileira. Ha um sorrateiro
objetivo neste sentido, advindo, seja do sistema
a permitir a invasão e imposição de culturas
externas com seus tentáculos e a ganância pela
conquista de nosso mercado, de nosso
território, visando sobre tudo o lucro; seja pela
insensibilidade da maioria dos governantes,
muitos dos quais aptos à subserviência, outros
por despreparo ou desatentos aos perigos dessa
corrosão de nossa identidade; seja, ainda, pela
ignorância de adeptos da balela da globalização,
enlatando conceitos, formas, estética,
conteúdos, etc. ignorando as ricas
particularidades de nossa nação, favorecendo as
sub-reptícias intenções de um sistema
agonizante, deteriorando-se a olhos vistos. É
como se a natureza estipulasse, de repente, que
o único pássaro permitido no espaço fosse o
morcego, para que tivéssemos que passar a vida
a contemplar suas vampirescas revoadas.
Remanescente dos anos de chumbo, provei do
amor por uma causa junto a uma multidão de
iguais, e dela nunca me arrependi, mesmo tendo
mergulhado no ostracismo por anos a fio. Nada
superou aquela entrega. O mérito não me
pertenceu. Atrelei-me à opção feita pela união e
fé de muitos, o que me proporcionou a profunda
felicidade de identificar-me com algo maior e
abrangente, enlaçado a outros seres num
mesmo propósito. Esta felicidade não tem preço.
Pagou-se caro, é verdade. Torturas, prisões,
exílios, etc., mas mesmo assim não me deparei
com nenhum arrependido. Pois bem. Era uma
tentativa de mudança do regime, do fim da
miséria e das desigualdades. Barra difícil de
Segurar. Nada comparável com à singeleza da
proposta aqui sugerida. Entregar-se à salvação
de nossa arte? Não serão preciso canhões para
impedir. Ao contrário. Neste mutirão cabe a
participação de qualquer seguimento da
sociedade, principalmente do governo.
É só a arte de nosso amor entregue à
transformação. Uma lista interminável de nossos
ancestrais está por aí, renascente, espalhada
entre a juventude contemporânea, amargando
pelos cantos sua marginalização, a espera de
uma chance que lhes renda, se não a glória
merecida por sua contribuição, pelo menos um
mercado de trabalho para a sobrevivência de
sua arte. Estamos deixando escapar por entre os
dedos de nossa indiferença um rio caudaloso de
talentos que poderia estar desaguando na
evolução de nosso pensamento, represando a
imagem de um país respeitável, não tão
somente por nosso futebol ou nosso carnaval.
Ou por meia dúzia de valores remanescentes de
um breve momento interrompido, que, com
raras exceções, se acomodaram na ausência de
concorrência, como se fossem a derradeira
safra, a desfrutar de uma gloria intocável e
comprometida, amparados pelos jabás do
sistema.
Nossa diversidade artística é tão importante
quanto a nossa fauna ou flora e não precisamos
de revoada de morcegos para colorir nosso
espaço. Temos uma profusão de aves em bando
para embelezar nossa paisagem. É só abrir as
gaiolas e acabar com esta degradante cena
diária de mãos estendidas entre grades, para a
esmola de uma chance de devolver à nação sua
própria alma. Se cada qual empenhar sua força
criadora, a exemplo da recente reação
deflagrada pela arte dos comandantes da CPI do
direito autoral e da justiça, na condenação dos
algozes em nosso caminho, é de se esperar o
afunilamento de uma solução, atendendo aos
reclamos de uma mirrada camada desperta de
resistentes. Oxalá!!! Somemo-nos, pois.
A solução, cedo ou tarde, terá que brotar do
somatório de um entendimento geral, sob pena,
pelo tempo que corre, de passarmos para a
historia como uma geração estéril, para o
desapontamento de nossos descendentes ao
nosso legado.
Termino meu aboio, descendo da porteira dos
meus oitentinha, retomando a estrada que me
resta no lombo desse jegue, enxada às costas,
para ir semeando beijos aos verdadeiros artistas
brasileiros que me passaram esta lição,
apoiando uma campanha imediata de
reconhecimento à arte política de um gesto que
passa para a história do país:
"UM BEIJO PARA DILMA!!!"
Sergio Ricardo
Sérgio Ricardo, nome artístico de João Lutfi, (Marília, 18 de junho de 1932) é um cantor e compositor brasileiro.
Descendente de família libanesa, em 1940, aos 8 anos, foi matriculado no Conservatório de Música de Marília para estudar piano e teoria musical; mudou-se para São Paulo e foi locutor da rádio Cultura em São Vicente, litoral do estado.
Ao mudar para o Rio de Janeiro em 1952 conseguiu emprego como técnico de som e pianista, substituindo Tom Jobim. Familiarizado com a cidade, que foi o berço da bossa nova, passou a fazer parte do o primeiro núcleo de compositores desse movimento musical. Lançou no começo dos anos 60 os LPs Não Gosto Mais de Mim e A Bossa Romântica de Sérgio Ricardo.
Participou do Festival de Música Popular Brasileira transmitido pela TV Record, quando, num momento antológico, foi vaiado pelo público ao cantar Beto bom de bola, e nervoso, quebrou o violão e atirou-o contra a plateia.
Incentivado por Carlos Lyra, passou a inteirar-se de problemas políticos e sociais, o que o levou a compor canções retratando esses temas. Compôs o romance violado que originou a trilha e narração do filme Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha.
2 comentários:
SINTO-ME LISONJEADO POR VOSSA SENHORIA EXISTIR, INDEPENDENTE DE QUALQUER TIPO DE VAIDADE HUMANA! OBRIGADO FUNDADOR POR ESTAR ENTRE NÓS!
VIDA LONGA MEU VELHO!NÃO SABIA QUE UMA SIMPLES HOMENAGEM AO NOSSO QUERIDO TIM MAIS IRIA TE INCOMODAR!ABRAÇO!
Prezado Chalinho, confesso que não entendí seu comentário. De qualquer forma muito obrigado pela visita. Volte sempre.
Abração
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