15 de abr. de 2013

Comunismo igual ao Nazismo?

Comunismo igual ao Nazismo?

Por Paulo Gabriel


Introdução
É relativamente comum encontrarmos críticos do comunismo que adoram compará-lo ao nazismo, como se fossem fenômenos gêmeos frutos de uma suposta dominação totalitária de uma coletividade sobre as várias figuras individuais que a compõe. Para isso enumeram uma série de características que tanto o comunismo quanto o nazismo compartilhavam: um forte universo concentracionário baseado na emergência de um poderoso partido único e de uma férrea disciplina militar, a existência de uma poderosa ideologia coletivista que arregimentava as massas, a criação de campos de concentração, entre outras.
Entretanto, tais analogias são simplesmente rasas e não chegam nem perto da essência dos fenômenos analisados, elas se prendem fundamentalmente aos aspectos formais, aspectos esses que, como veremos, foram compartilhados por todas as nações que de alguma forma se viram engolidas pelo período da Guerra Total (1914-1945), inclusive aquelas ditas liberais e que “respeitavam” os direitos do indivíduo.
Portanto, o primeiro passo para a elaboração da crítica a esta visão que considero errônea e superficial é a apresentação dos conceitos de “forma” e “essência” para que então seja possível analisar a problemática de uma maneira mais consistente e, por fim, refutá-la.

Forma e essência
É possível dividir boa parte dos fenômenos históricos em aspectos formais e aspectos essenciais. A essência é o que caracteriza o fenômeno, a forma é a maneira em que ele se manifesta historicamente, ou melhor, particularmente. Por exemplo, a essência do capitalismo é a acumulação e a expansão do capital, em outras palavras, é a busca incessante da valorização do valor. No entanto, devido às características específicas de cada local, de cada povo, de cada país, de cada instituição etc. a forma como essa essência se manifesta, a forma como suas engrenagens são postas para funcionar difere bastante. Assim o Brasil apresenta uma forma de capitalismo diferente do que foi constituído na Inglaterra e em outros países que desenvolveram sistemas semelhantes ao modelo clássico. Aqui, o capital é incapaz, de modo geral, de concluir sua reprodução ampliada por si só (dependendo de capital estrangeiro para se realizar)1, devido a falta de um setor de bens de produção desenvolvido, além disso, o capital mercantil agrário possui um peso enorme na dinâmina interna da acumulação capitalista, o que reflete nos gigantescos latifúndios brasileiros e no forte poder político da bancada ruralista do Congresso. No modelo clássico, a reprodução ampliada de capitais é concluída internamente o que tem como complemento a criação de uma indústria sólida de bens de produção. Esta indústria acaba por reduzir a importância da agricultura na economia, fortalecendo as posições políticas de uma burguesia industrial urbana em contraposição à burguesia agrária.
Estabelecidos os conceitos de forma e essência na análise dos fenômenos históricos, partiremos para o próximo passo: demonstrar as diferenças essenciais entre o nazismo alemão e o comunismo soviético.
A essência do nazismo é o imperialismo, o Estado racial, a eugenia. O movimento foi concebido como uma forma de “purificar” a nação alemã dos elementos nefastos que a corrompiam (os judeus, os mestiços, os estrangeiros, etc.), daí o Estado racial voltado à supremacia dos brancos e guiado pela eugenia, a “ciência” da “higiene racial”. Daí também o imperialismo, pois ao ódio às outras raças complementa-se necessariamente a superioridade de um só povo, o povo alemão. Neste sentido, como aponta Losurdo, o “coração do nazismo é constituído pela ideia de Herrenvolk, que remete à teoria e à prática racista do sul dos Estados Unidos e, mais geralmente, à tradição colonial do Ocidente”2. Ou seja, o nazismo está inserido na tradição das potências liberais que sustentavam, desde o século XIX, o imperialismo, o colonialismo e a supremacia branca.

Já a essência do comunismo soviético é o anti-imperialismo, anti-colonialismo, a igualdade entre todos os humanos. O movimento tinha como base a eliminação das diferenças de classe, de raça e de gênero, ou seja, o fim de todos os privilégios que teimavam – e ainda teimam – em dividir a humanidade em exploradores e explorados, oprimidos e opressores. Daí o apoio soviético às lutas independentistas dos povos coloniais. O que vemos então, é que o coração do comunismo soviético (parafraseando Losurdo) é constituído pela ideia lançada por Marx de que os proletários não têm pátria, em outras palavras, de que a nova ordem a ser criada não leva em conta fronteiras raciais e nacionais, vendo cada indivíduo como possuidor de direitos iguais, independentemente de qual povo ele pertence. Como nos mostra Losurdo, comentando sobre a Constituição soviética de 1936: “O discurso de apresentação do projeto de nova Constituição condena em bloco as três grandes discriminações que caracterizaram a história do Ocidente liberal: 'Não é a renda, nem a origem nacional, nem o sexo' que deve determinar a colocação política e social, mas só 'as capacidades pessoais e o trabalho pessoal de todo o cidadão'”3.
No entanto, em relação aos aspectos formais dos dois movimentos é possível estabelecer analogias. Como já apresentado, ambos apresentam um forte universo concentracionário baseado na emergência de um poderoso partido único e de uma férrea disciplina militar, a existência de uma poderosa ideologia coletivista que arregimentava as massas, a criação de campos de concentração, entre outras coisas. Como bem sublinhou Nikolai Bukharin:
“Os fascistas, mais que qualquer outro partido, apropriaram-se e passaram a pôr em prática a experiência da revolução russa. Se os considerarmos do ponto de vista formal, isto é, do ponto de vista da técnica de seus procedimentos políticos, verifica-se uma perfeita aplicação da tática bolchevique e especificamente do bolchevismo russo: no sentido de uma rápida concentração de forças e de uma ação enérgica por parte de uma organização militar unida e compacta”4
Porém, se pararmos para pensar direito esta não é uma característica originária da revolução bolchevique. Bukharin talvez tentou puxar a sardinha para seu lado, por assim dizer, tentando argumentar que os fascistas haviam surrupiado as táticas do partido russo. Mas a realidade é que Lenin adotou pura e simplesmente a prática das forças armadas nacionais desenvolvidas ao longo do século XIX. A existência de um partido único centralizador (o “Estado-Maior” da revolução), a férrea disciplina, a poderosa ideologia coletivista para arregimentar as massas (o nacionalismo militarista fundador de quase todos os Estados-Nação modernos), os campos de concentração, etc. são todas práticas das forças armadas criadas no século XIX e aprimoradas durante o século XX, o século da Guerra Total por excelência. E é neste exato ponto que a história trata de frear as ideologias – como dizia Marx, os homens, como agentes históricos, são limitados pela base material que os cercam.
O comunismo soviético foi forjado tanto na luta contra um Estado centralizador e altamente repressivo, quanto em meio a um encarniçado conflito mundial que durou cerca de trinta anos. Ou seja, os bolcheviques tiveram de criar uma nação estando no epicentro do período da Guerra Total (1914-1945), tendo de enfrentar uma conjuntura marcada por extermínios em massa, repressão e destruição em patamares jamais vistos antes. Assim, as formas que o comunismo soviético assumiu foram as formas típicas desta conjuntura, formas baseadas em organizações militares e que se manifestaram também na Alemanha, no Japão, na Itália, na China, nos EUA, na França, na Inglaterra, entre outras nações envolvidas de uma forma ou de outra nas guerras totais.
Os EUA, por exemplo, construíram campos de concentração para japoneses (e antes já haviam adotados práticas semelhantes contra os “pele-vermelhas” no século XIX), viram a União centralizar os poderes nas mãos de Roosevelt que adotou fortes políticas intervencionistas como o New Deal e a economia de guerra, e viveram sob uma ideologia fortemente coletivista que visava arregimentar as massas para os conflitos mundiais – o nacionalismo, que acabou por descambar no macartismo e que até hoje tem forte apelo na sociedade norte-americana.
Assim, sob a égide dos aspectos formais que são normalmente utilizados para igualar a URSS e a Alemanha nazista, é possível também colocar os EUA e não só ele, como todos os países beligerantes ou que de alguma forma foram ameaçados pela guerra total. A conjuntura material da época influenciou a todos, havendo apenas diferenças de grau na manifestação dos aspectos formais devido, sobretudo, à geopolítica de cada lugar. Os EUA, por serem uma nação insular, não se radicalizaram tanto quanto a URSS ou a Alemanha, que eram países que se encontravam no epicentro das guerras. Não por acaso, foram as duas nações que mais sofreram perdas humanas e destruição material, com exceção, talvez, da China – que sofreu também um terrível holocausto nas mãos dos invasores japoneses.

Conclusão
Conclui-se que as analogias entre a Alemanha nazista e a União Soviética se pautam basicamente em aspectos formais dos fenômenos políticos, ignorando-se completamente as características essenciais destes. Sob o critério da forma, é possível enquadrar no mesmo modelo não só a Alemanha e a União Soviética, mas também potências liberais como os Estados Unidos e nações das mais diversas que, de alguma maneira, foram envolvidas pela duríssima conjuntura da Guerra Total. Assim, o século XX seria nada mais do que uma série de Estados totais (de diferentes graus, mas possuidores das mesmas características) e imorais batalhando pela supremacia global. Tal visão fundamentada exclusivamente nos aspectos formais acaba levando ao niilismo da anti-política, ao moralismo exacerbado e ao completo desconhecimento das situações concretas que levam as sociedades humanas a construir e modelar suas instituições.
O argumento, levado às suas últimas conseqüências, dos discursos presos apenas à forma dos fenômenos políticos é pura e simplesmente o de que há uma “natureza humana” imutável que nos força a buscar sempre mais e mais poder, é, portanto, um determinismo agudo que solapa qualquer possibilidade de ação do sujeito histórico que, na realidade, não é sujeito, é apenas uma marionete da suprema força natural. No entanto, existe um pulo do gato interessante neste discurso – ele não é levado às suas últimas conseqüências, é lançado contra o inimigo apenas. Só o inimigo é dominado por este destino incontornável, só a ideologia comunista ou nazista é que torna o homem escravo. A ideologia liberal nos concede uma graça miraculosa que restringe nossa natureza, e que possibilita que o reino da liberdade supere o da necessidade. Mas para construir essa falácia ela não só ignora os aspectos essenciais dos fenômenos políticos comunistas e nazistas, como também suprime a própria semelhança de forma que os fenômenos liberais possuem em relação aos dois já mencionados quando confrontados com a conjuntura da Guerra Total.

1Ver o artigo do autor sobre a industrialização do Brasil.
2LOSURDO, Domenico. Para uma crítica da categoria de totalitarismo. , p. 76.
3LOSURDO, Domenico. Stalin - História crítcia de uma lenda negra. Rio de Janeiro, Editora Revan, 2010. p. 281.
4LOSURDO, Domenico. Para uma crítica da categoria de totalitarismo. , p. 70.

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