10 de abr. de 2014

Banquete dos orixás


Olhando para o oceano Atlântico à sua frente, misterioso e intransponível, os primeiros africanos desembarcados no Brasil já sabiam que essa viagem seria sem volta. O jeito foi reunir toda a coragem que os imigrantes – escravizados ou não – sempre têm e recriar aqui um pouco do continente que tinha ficado para trás. 
Na tradição religiosa que eles trouxeram, um dos mais importantes veículos de comunicação com as divindades é o alimento, preparado segundo regras muito antigas e com um sabor digno de paladares divinos. 

por Agnes Mariano
no sitio historiasdopovonegro.wordpress.com

Como, felizmente, orixás, devotos e visitantes podem compartilhar o mesmo alimento, aos poucos, o acará de Iansã, o amalá de Xangô, o omolucum de Oxum, o ebô de Oxalá, o acaçá e dezenas de outras receitas que compõem o banquete dos deuses foram difundidas no Brasil, especialmente na cidade de Salvador e áreas próximas, terminando por se transformar na comida oficial da Bahia. Mas, até hoje, garantem alguns, ingerir algum desses pratos é nutrir-se um pouco da África.

Para agradecer, pedir ou reverenciar os orixás, combina-se música, dança e alimentos, que nutrem e transmitem a energia, o axé. O que os primeiros africanos não poderiam imaginar é que, após alguns séculos, as suas receitas, frutos, temperos, sementes e frutas seriam assimiladas, admiradas e copiadas de tal forma no novo mundo. São originários da África, por exemplo, o quiabo, o café, o dendê, o inhame e a melancia. Outra influência grande foi o modo de preparar as comidas, a forma de cozinhar e de temperar, em alguns casos, através de adaptações dos recursos que encontraram aqui: camarão seco, leite de coco e pimenta-malagueta são alguns exemplos.

Abundância é a palavra-chave na culinária feita na Bahia com inspiração africana. Abundância nas medidas, nos temperos e no oferecimento, inclusive, a qualquer estranho que visite a casa religiosa num dia de festa. Sobre esta impressionante generosidade, o antropólogo e pai-de-santo Júlio Braga explica:

No candomblé, o sentido comunitário é uma noção muito importante. A pessoa que vai até a casa, mesmo na condição de espectador, não é um estranho. A sociedade pensa nele de um modo diferente, ele está comungando. É um projeto de aliança e todos podem participar desse axé. Oferecer a comida não é uma concessão, é um gesto ritual, que deve ser praticado assim.

Para cada orixá, um alimento; para cada cerimônia, uma forma de preparo, um ritual, um conjunto de rezas. Quem supervisiona tudo é a iabassê – que significa “avó, velha que cozinha” – auxiliada pela otum e pela ossi. Para receber o posto de iabassê, é preciso muita experiência, conhecimento, dedicação e já ter passado pela obrigação de sete anos. A guardiã da cozinha deve ser uma pessoa responsável e calma porque, para cozinhar, precisa ter paciência e atenção. “Fazer correndo não dá certo, tem que trabalhar com o coração, com amor. A pessoa muito afobada faz tudo ligeiro e termina não saindo bem”, diz Nídia Maria Santos, ou “Dona Nidinha”, dagã do Ilê Axé Opô Aganju e neta mais velha de Mãe Senhora, que foi uma das mais famosas mães-de-santo do Ilê Axé Opô Afonjá. 

Uma calma que não pode ser excessiva, pois é preciso “ser um pouco ligeirinha”, acrescenta Dona Nidinha, e também saber liderar, porque cabe a iabassê definir os ingredientes, delegar as tarefas, saber os rituais e “olhar se estão todas trabalhando direito, orientar, porque ninguém nasce sabendo”.

Quando a festa é de grandes proporções, várias filhas da casa podem ser chamadas para ajudar e até os homens dão certas contribuições.

Quando precisa, eu faço, ajudo. Vêm muitas filhas e cada uma vai tendo uma tarefa. Cada uma toma a responsabilidade de uma panela, que fica só com aquela pessoa. É bom, porque é melhor fazer junto: tem a conversa, uma prova o da outra, pra ver se está com o paladar. Assim acaba mais cedo – descreve Dona Nidinha.

Em algumas casas religiosas, são mantidas até formas antigas de preparar os alimentos. “Nós trituramos o camarão no pilão, o coco é ralado na mão e a cebola também”, conta a socióloga Márcia Souza, membro do terreiro do Gantois.

Segundo Dona Nidinha, os homens, sendo da casa, podem entrar na cozinha e ajudar, mas “só nas horas certas, quando precisa: pra pegar uma panela pesada, carregar um saco de cebola. Porque em tempo de festa a gente compra tudo em grande quantidade, pra não faltar”. Em geral, as casas religiosas não fazem questão de manter os antigos métodos de preparo e adotam liqüidificadores e outros equipamentos modernos: “No meu tempo, era a panela de barro, pedra de ralar – uma pedra grande e outra comprida por cima. O ralo comprava na feira, feito de lata de óleo ou doce.

O feijão-fradinho pra o acarajé era ralado na pedra. O amalá fazia no fogão à lenha, nas panelonas de barro”, relembra.

Comer os alimentos votivos é uma forma de conhecer a África, seus cheiros, sabores, costumes e, ainda, um pouco da sua história. Dizem os especialistas, como o antropólogo Vilson Caetano de Sousa, em sua dissertação de mestrado Usos e abusos das mulheres de saia e do povo do azeite, que através desses alimentos é possível obter muitas informações sobre o local de origem e a vida dos povos que iniciaram o culto aos orixás. 

O quiabo, por exemplo, um fruto muito rico em ferro, está ligado diretamente às dinastias de Oyó e Ifé, por isso é servido a poucos orixás – principalmente Xangô, Iansã e Ibejis -, explica ele. A forma como são preparados os alimentos também seria forte indicativo. Orixás ligados a períodos de guerra, instabilidade e migrações preferem alimentos de preparo rápido – crus, torrados e assados -, enquanto aos orixás ligados à terra são servidos principalmente raízes e grãos cozidos e muitas vezes amassados, afirma Sousa.

As adaptações e transformações, contudo, existiram e muitos pratos são realmente afro-baianos, como o vatapá – que apenas se parece como uma comida misteriosa dedicada a Oxum, o ipeté -, o acaçá com leite de coco e açúcar (porque na culinária religiosa ele é feito apenas com milho branco e água), os recheios acrescentados ao acarajé e ao abará e o famoso caruru completo. “Uma amiga minha fez, na Nigéria, o caruru completo e os nigerianos acharam superestranho. 

Sobrou tanta coisa que ela precisou convidar alguns estrangeiros no outro dia pra não perder a comida”, conta Márcia Souza. Segundo ela, na Nigéria, o acará, que nós conhecemos como acarajé, é muito comum e vendido em lanchonetes, enquanto o abará tem outro nome e leva ingredientes como peixe e outros temperos.

Em alguns poucos momentos, os rituais podem também chegar às ruas. “No presente pra Oxum e pra Iemanjá, as pessoas saem do terreiro em grupo e vão caminhando com os balaios até o lugar da oferenda: a praia, o Dique”, explica Babá Silvanilton, do Ilê Axé Oxumaré. Uma das cerimônias mais impressionantes, para quem já teve o privilégio de participar dela, é a “Águas de Oxalá”, realizada durante a madrugada, onde “todos caminham em silêncio, levando água de uma fonte até o templo”, explica Aílton Ferreira, ogã do Oxumaré. Marcada pela discrição, raramente alguém de fora é convidado para participar dessa celebração. Outro rito que sai dos limites do terreiro é o Sabejé de Obaluaê.

PURIFICAÇÃO
Caminhando pelas ruas do bairro da Federação com suas batas, rendas, torços e colares, Sandra Ribeiro e Valmira de Jesus parecem rainhas, mas os pés descalços revelam que a caminhada é, na verdade, uma prova de humildade. Sandra de Obaluaê e Valmira de Iansã são duas das várias filhas-de-santo que, nos primeiros dias de agosto, saem às ruas de Salvador com Obaluaê e seu alimento preferido – a pipoca – visitando alguns terreiros e casas. 

Como tudo no candomblé, a cerimônia envolve vários rituais preparatórios. Pouco antes da ida para a rua, ainda no terreiro, o pai ou mãe-de-santo faz um ritual “que louva a Exu, para que ele limpe os caminhos, as estradas, para Obaluaê, levado sobre o ori (cabeça) das filhas-de-santo”, explica o pai-de-santo Alberto, do Ilê Axé Iaominidê (casa das águas mãe). 

Um pequeno grupo se reveza nessa cerimônia, simples e bonita, onde cada gesto dançado e verso cantado deve ser preciso e possui um significado específico, mas onde respeito não é sinônimo de sisudez.

Depois do banho de pipoca nos filhos da casa e alabês, que tocaram os atabaques durante toda a cerimônia, o Sabejé de Obaluaê ganha as ruas. É impossível não prestar atenção nas duas mulheres: uma transporta um grande cesto repleto de pipocas, “o duburu, que é uma fonte de energia”, segundo Babá Alberto, enquanto a outra leva o próprio orixá: o seu longo capuz de palha da costa coberto com búzios, sobre uma base. Quando o poderoso Obaluaê passa, alguns vêm correndo para ver, outros só olham de longe e, quem não resiste, para as filhas-de-santo, faz a sua doação em dinheiro ganha um pouco da pipoca.

“Sabejé oro unlá”, cantam as filhas-de-santo nas portas das casas, anunciando a visita importante e o pedido de doação. Apesar dos convites, elas não entram, só conversam um pouco e deixam o duburu. “Atotô, atotô”, vão repetindo, enquanto jogam a pipoca em crianças e adultos que estendem as mãos e abaixam a cabeça para receber melhor a bênção do orixá.

Quem recebe a fonte de energia diretamente nas mãos vai comendo devagarinho e em silêncio. Maria de Santana, 71, contente por ter sido uma das escolhidas para a visita, explica o motivo: “Ele traz coisas boas para minha casa. Quando estou mais aflita, eu peço e a ajuda chega”. Até quem não mantém mais a tradição do Sabejé sabe bem por que o orixá precisa fazer durante sete dias de agosto a sua peregrinação pelas ruas, como Mãe Elza de Oxum, do terreiro Obá Toni: “Quando ele sai à rua é para nos livrar das doenças, das moléstias, leva a cura. É um médico”, explica .

O Sabejé de Obaluaê faz parte das cerimônias para o orixá que culminam com o Olubajé, a sua festa anual. As doações que as filhas-de-santo recebem são, inclusive, usadas nesta cerimônia. “É uma cerimônia com muita fartura, onde a comida é feita com todos os cereais e todas as folhas. Porque ele lida mais com isso, a saúde”. Quem explica é o antropólogo e professor da Universidade Federal da Bahia Milton Moura. As comidas, acrescenta o professor, são servidas aos convidados em grandes folhas.

Os cuidados em torno da saída do orixá às ruas envolvem até a Federação Nacional do Culto Afro Brasileiro (Fenacab), que disciplina tudo o que diz respeito à tradição africana, como os terreiros e baianas de acarajé. “As pessoas receberam a obrigação dos antepassados de colocar na rua duas pessoas com um tabuleiro preparado com a representação do orixá. 

Quem quiser, dá um dinheiro”, sintetiza Antoniel Bispo, secretário da Fenacab e babalaxé do Omin Natossê. Antes de sair às ruas, a maioria das casas religiosas envia um representante até o órgão para obter a licença. O assunto é tão sério que quem não segue as normas pode ter os objetos litúrgicos apreendidos: “Nós fiscalizamos e já prendemos tabuleiros. Algumas pessoas colocam balaio o ano todo, pedindo esmola. Também não é para a pessoa sair manifestada e em lugares como o Centro Histórico. Isso é profanação”.

Um cheiro delicioso de pipoca vai acompanhando as filhas-de-santo que participam do Sabejé, caminhando rápida e decididamente pelo asfalto. Dizem que o ritual já foi mais longo e que um número muito maior de casas religiosas mantinha essa tradição. Hoje, as mulheres que ainda realizam a peregrinação, dividindo espaço com carros, ônibus e transeuntes apressados, vão nos mostrando que ainda há espaço para a fé nas ruas, mesmo quando ela não está acompanhada de multidões e festa.

Entre as casas que não fazem mais a peregrinação nas ruas, a tradição é mantida internamente, durante sete dias. “A maioria das casas antigas deixou de fazer o Sabejé na rua, porque hoje em dia as pessoas não estão mais respeitando nada, os tempos mudaram: é um fluxo grande de carros, as agressões dos protestantes”, explica o pai-de-santo Silvanilton. Nas casas que mantêm a tradição, explica ele, as filhas-de-santo que participam da peregrinação são pessoas experientes, com mais de sete anos de iniciação, “pessoas que sabem se conduzir e não vão se indispor se enfrentarem algum problema”.

SEGREDOS DOS ALIMENTOS
Tentar descobrir detalhes sobre a culinária votiva não é tarefa fácil, mesmo que muita coisa já tenha sido escrita sobre o assunto, porque existem variações de uma casa religiosa, cidade ou estado brasileiro para outro, que vão desde a forma de preparo e nome dos pratos, ao orixá a quem é dedicado o alimento. Ainda mais que, como foram trazidos para o Brasil representantes de vários povos africanos, a unidade de costumes seria mesmo impossível. Outra limitação à curiosidade dos leigos é que alguns detalhes “dos fundamentos” são secretos. Por isso se diz que a iabassê é aquela que muito faz e pouco fala.

O tema mais delicado de todos é o sacrifício de animais. “Um tema importante e ainda pouco tratado. O sacrifício votivo é um ato religioso de proporções extraordinárias, um gesto simbólico, uma oferenda”, afirma o antropólogo Júlio Braga. Segundo o antropólogo Raul Lody, em seu livro Santo também come, os sacrifícios de quadrúpedes, como carneiros, bodes e cabras, e de aves como galos, pombos e galinhas, geralmente são feitos por homens especialmente treinados, que sabem o modo como o animal deve ser morto e os “pontos” que devem ser cantados: é o axogum, o mão de faca. 

Todas as partes dos animais são aproveitadas: a carne e os miúdos nas refeições, o couro nos atabaques, os chifres e ossos nos assentamentos. Se alguma coisa não for feita da forma correta, o orixá pode recusar a oferenda e cobrar em dobro, afirma Lody.

As comidas secas, acompanhadas ou não de carnes, são, em geral, menos misteriosas, mas nem por isso menos poderosas. O azeite de dendê, que quase sempre está presente, traz muita energia, a força máxima, e é o símbolo maior da culinária africana, presente em uma infinidade de pratos. Todas as obrigações começam homenageando e pedindo licença ao dono dos caminhos – é o padê para Exu, onde a farofa de azeite (epô) não pode faltar. Às vezes, faz-se também a farofa de água (omi) e a farofa de mel (oim), descreve Valdélio Sousa em seu texto. 

Em algumas casas, o único orixá ao qual não se serve o dendê é Oxalá. “Para ele, não entra camarão, azeite, nem sal, é só cebola pura”, explica Dona Nidinha. Porque, sendo o branco a cor preferida de Oxalá, seus alimentos também precisam ser imaculadamente alvos.

O inhame, uma planta muito resistente que já existe na África há cinco mil anos, sempre foi um tubérculo extremamente importante para diversos povos. A ele credita-se, por exemplo, a incrível fecundidade das mulheres iorubás: a Nigéria é o país com o maior número de nascimentos de gêmeos do mundo. Como não podia deixar de ser, é feito com inhame o ipeté de Oxum, a deusa das águas doces, da gestação e da fertilidade. Feito com inhame descascado e cozido, camarão, cebola e dendê, o ipeté é uma comida que não deve ser vista, por isso aparece camuflada num cesto, entre flores, folhas e presentes, afirma Valdélio Sousa.

Nancy de Souza, mais conhecida como Dona Cici, a Otum Iá Ilê Efum do Ilê Axé Opô Aganju,  conta alguns detalhes da preparação desse alimento que, no seu terreiro, é servido numa festa que homenageia Oxum e Iansã:

São as filhas de Oxum que preparam o ipeté. Primeiro descascam o inhame e põe para cozinhar. Quando está bem mole, pegam um grande pilão e vão botando o inhame lá e todas elas vão socar um pouco, até se tornar uma pasta. Se tiver 10 ou 20 mulheres de Oxum, todas elas vão socar um pouco. Depois que está uma massa uniforme, coloca-se numa grande panela com temperos – cebola, camarão e dendê – e todas têm que mexer.

Com esse tubérculo se faz também o prato preferido de Oxaguiã ou Oxalá jovem – o dono do inhame – que, contam alguns, inventou o pilão só para poder comer o inhame pilado com limo da costa. A Ogum é oferecido o inhame de várias formas, mas, principalmente, assado, como convém a um guerreiro.

Com quiabos bem escolhidos se faz o delicioso amalá, o alimento predileto do Xangô, um orixá muito poderoso que foi rei e marido de Iansã. Como informa Dona Nidinha: “Ele é feito do mesmo jeito que o caruru, com quiabo, dendê e camarão seco, mas leva carne de boi”. 

Num relato deixado por Mãe Aninha, primeira mãe-de-santo do Ilê Axé Opô Afonjá, ela define o amalá como um tipo de caruru com carne, acrescentando que existem o caruru de folhas (chamado em algumas casas de efó), o caruru de verduras, o caruru de cebolinha, o caruru de ervas africanas, o caruru de mostarda e outro com quiabos. Como o quiabo e o caruru também são associados aos Ibejis – orixás gêmeos – e a Iansã, muitos baianos sincréticos oferecem o mesmo prato a Santa Bárbara e a São Cosme e São Damião, correspondentes dos orixás no catolicismo.

Feijões de todos os tipos participam do banquete dos orixás: fradinho, preto, mulatinho. “Para Oxóssi, a gente bota o feijão de molho e depois torra. Fica parecendo amendoim”, diz Dona Nidinha. O feijão-preto agrada a Omolu e a Ogum. No Brasil, uma das comidas presentes nas homenagens a Ogum é a  feijoada. Dona Cici explica o motivo:

Contam que existiu um grande pai-de-santo chamado Procópio. Ele nasceu no Brasil, liberto, com pais africanos que eram escravos em Cachoeira. Ele morreu com quase 90 anos, em 1958. Seu Procópio tinha um grande candomblé num local chamado Baixão, onde tem hoje o Vale do Ogunjá, exatamente porque era o nome do santo dele. Seu Procópio era de Ogunjá e as pessoas de Ogum têm muito da personalidade desse orixá, considerado o orixá mais perigoso de todos, o orixá mais radical que tem. Então se conta que, um dia, ele se aborreceu com um filho-de-santo de forma injusta e expulsou o filho da roça. 

Passados uns dias, ele fez uma festa e então Ogum veio e deixou o seguinte recado: “Que Procópio era filho dele, mas não era dono dos outros filhos dele”. Ou seja, que Procópio era o pai-de-santo, que fazia o orixá dos filhos-de-santo, mas os filhos-de-santo pertenciam a Ogum e que Seu Procópio tinha sido injusto com o filho dele. E mandou que ele fizesse uma comida e chamasse o filho de volta à casa. Que Seu Procópio não esquecesse do recado, que ele ia ficar esperando.

Quando Seu Procópio acordou do transe, os filhos-de-santo deram o recado: “Meu pai, nosso pai Ogum veio em sua cabeça e disse que o senhor tem que fazer uma comida de confraternização e que o senhor tem que chamar de volta o nosso irmão que o senhor mandou pra fora do axé”. Seu Procópio ficou muito assustado, porque ele não queria voltar atrás, mas como ele temia muito o santo dele, então pensou e disse: “Eu vou fazer essa feijoada e vocês chamem ele”. Então contam que Seu Procópio fez a feijoada com tudo que você possa imaginar, armou uma grande esteira, chamou o filho-de-santo, como Ogum mandou, e botou o filho sentado junto dele. 

Seu Procópio foi fazendo os pratos de cada um dos filhos, mas ninguém comia, esperando ele dar o sinal. Então, ele fez todos os pratos dos filhos e fez o dele. Só que, quando tocou na comida para comer, Seu Procópio virou de santo e todos os filhos-de-santo viraram de santo também. Até hoje, em muitos terreiros acontece essa grande feijoada, que é colocada numa esteira, em frente à casa de Ogum ou ao lado e todo mundo do axé participa, em memória desse recado que Ogum mandou.

O feijão fradinho está presente em alimentos para Iansã, Oxum e Oxalá. A Iansã é oferecido o alimento mais quente de todos, o acará, a massa de feijão fradinho moído, temperado com cebola, sal e frito no dendê. O azeite precisa estar fervendo e os bolinhos estão prontos quando ficam vermelhos como fogo. Acarajé significa “comer acará ou comer fogo”, provavelmente numa alusão a uma cerimônia que Pierre Verger observou na África, envolvendo devotos dos deuses do fogo – Iansã e Xangô. No ajeré, os iniciados devem comer (verbo jé) acarás, que são bolas de algodão embebidas em azeite de dendê em combustão, para provar a veracidade do orixá, do transe.

A comida mais freqüentemente oferecida a Oxum é o omolucum – o feijão-fradinho temperado com camarão, cebola, sal e dendê -, facilmente encontrado em qualquer mesa baiana. Mas quando é oferecido à deusa das águas doces não podem faltar os ovos cozidos sobre o prato, símbolo da fertilidade. O abará, preparado de forma semelhante ao acará, mas cozido no vapor, enrolado numa folha de bananeira, também é um alimento de Oxum, mas servido puro, sem recheios. 

Para quem duvida que, desta forma, ele seja saboroso, um bom exemplo está no abará vendido por membros de uma mesma família de Castelo Branco, há mais de 20 anos, no centro histórico de Salvador, próximo ao Taboão. Servidos ao modo tradicional, com pimenta e camarões na própria massa, esses abarás são considerados por muita gente os melhores da cidade. O feijão-fradinho está presente ainda no ecuru de Oxalá, uma espécie de farofa feita com fradinho e cebola e, em algumas casas, com mel, sal e dendê.

Milho branco para o ebô de Oxalá, cozido sem sal e sem açúcar. Milho para o ebô de Iemanjá, um tipo de canjica refogada com cebola e camarão. A deusa das águas do mar gosta também do milho branco e do milho vermelho, “quebradinho, aquele que usa pra fazer lelê”, diz Dona Nidinha. O ebô de Oxalá participa da cerimônia Águas de Oxalá, realizada em janeiro, quando, em alguns terreiros, é jogado sobre os participantes, num ato de purificação. Depois das danças, o resto do alimento é distribuído para que os presentes possam comê-lo ou passá-lo sobre o corpo. Milho cozido e todo coberto com tirinhas de coco é o axoxô, que alguns servem a Ogum e outros, a Oxóssi. Milho torrado também na farofa dourada de Oxum, descreve Dona Cici:

Torra-se milho, sem abrir em flor. No pilão, se soca o milho – todas as filhas de Oxum têm que socar – até virar uma farinha que se tempera com o que eu não posso dizer, porque é segredo. Essa farinha ganha o nome de ádo. Depois se coloca em pequenos cartuchos de papel colorido e põe à parte. Colocam pequenos pratos dessa farinha úmida junto do orixá e pode durar um ano sem apodrecer, por isso é segredo o tempero.

E, claro, é de milho o doburu de Obaluaiê: a pipoca. Obaluaê, Omolu, Xapanã. Geralmente descrito como filho de Nanã e irmão de Oxumaré, Obaluaê é o deus da varíola e das doenças contagiosas, que dança inteiramente coberto de palha da costa, que encobrem as suas feridas. “Obá é rei. Olu é dono, senhor, proprietário. Ayiê é mundo. Obaluaê é o dono do mundo dos vivos, da terra. Para os cubanos, ele é Babaluaê ou Babalu”, explica Ieda Machado, adepta da religião. Segundo ela, as denominações e histórias sobre o orixá variam de acordo com a região da África de onde vieram. “Obaluaê é um orixá da terra porque foi criado no mato, por ser muito doente. Ele teve várias doenças de pele – bexiga, varíola, catapora – e foi tratado por sua mãe, Nanã, no mato, envolvido na palha da bananeira seca para que sarassem as suas chagas”, conta o pai-de-santo Alberto. Nas mãos, o orixá leva um xaxará – um espanador feito de nervuras de folhas de palma – e sobre o corpo, pequenas cabaças com os seus remédios.

Quem é adepto do candomblé aprende com Obaluaê que a saúde começa com a alimentação. “O Olubajé é feito pra reverenciar o orixá, para que ele tenha misericórdia de nós, porque sem saúde não adianta ter nada, é a coisa primordial para o ser humano, mas também tem o sentido de mostrar para as pessoas a importância da alimentação. Sem alimento, não somos nada”, explica Babá Silvanilton. Na cerimônia, são oferecidos muitos alimentos, como comidas à base de milho e feijão.

Outro alimento feito com milho é o acaçá. A receita veio da religião dos orixás e, depois de ter sido vendido nas ruas de Salvador com tanta freqüência como hoje encontramos o acarajé, ele novamente quase só é feito nas casas religiosas ou por adeptos. 

Quando vai acompanhar as comidas dos orixás, usa-se apenas o milho branco ralado e água. Depois da massa estar bem cozida, é preciso muita habilidade para colocar as porções na folha da bananeira e dobrá-la da forma certa, para que o bolinho fique com o gracioso formato de um balãozinho. Mas, quando é vendido nas ruas, acrescenta-se açúcar, leite de coco, erva doce, cravo e água de flor, explica Dona Nidinha. Em Salvador, um dos mais antigos vendedores de acaçá ainda na ativa é Antônio, que há mais de 30 anos percorre as ruas do Santo Antônio e do Carmo empurrando um carrinho enquanto chama a freguesia: “Acaçá, acaçá de leite”, contam os moradores do bairro. Hoje, ele já não aparece com tanta freqüência, por isso, quem conseguir encontrá-lo e puder degustar um dos seus famosos acaçás, saiba que, em todos os sentidos, estará provando um manjar dos deuses.

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