18 de mar. de 2013

Francisco e a repressão: algo a esconder?

Francisco e a repressão: algo a esconder?

Do sítio Brasil de Fato
Jornalista argentino que investigou relações entre ditadura e Igreja revela papel real de Bergoglio. Também prevê: Papa será um “conservador-populista”
Amy Goodman e Juan González,

em Democracy Now
Tradução: Gabriela Leite/Outras Palavras

No início da semana passada, o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio foi eleito por seus pares como novo Papa da Igreja Católica. Assumiu o posto sob o título de Francisco. Imediatamente, vieram à tona os laços de cumplicidade mantidos entre a cúpula eclesiástica argentina e a ditadura militar, no poder entre 1976 e 83. Qual teria sido o papel de Bergoglio nestas relações perigosas?
Um dos principais jornalistas investigativos da Argentina, Horacio Verbitsky (hoje no diário “Pagina 12”) escreveu extensivamente sobre a carreira do Cardeal Bergoglio e suas ações no período, em que mais de 30 mil pessoas foram sequestradas e assassinadas. Uma ação judicial de 2005 acusou Jorge Bergoglio de estar conectado aos sequestros de dois padres jesuítas em 1976, Orlando Yorio e Francisco Jalics. A ação foi protocolada após a publicação do livro de Verbitsky, “O Silêncio: De Paulo VI a Bergoglio: As Relações Secretas entre a Igreja e a ESMA”. ESMA é a antiga Escola Superior de Mecânica da Marinha argentina, transformada em um centro de detenção onde prisioneiros eram torturados pela ditadura militar.
Bergoglio negou as acusações. Ele invocou duas vezes seu direito, sob a lei argentina, de recusar-se a depor no processo aberto para apurar os fatos. Quando finalmente o fez, em 2010, os ativistas de direitos humanos caracterizaram suas respostas como evasivas. Na última quarta-feira (13), Verbitsky falou a “Democracy Now” sobre o passado do novo Papa, e também sobre seu perfil.

Amy Goodman: Para começar, gostaria que você nos contasse o que acha importante para entendermos o perfil do novo Papa, Francisco.
O jornalista argentino investigativo
Horacio Verbitsky - Foto: Reprodução


Horacio Verbitsky: O principal a se entender sobre Francisco I é que ele é um conservador populista, ao mesmo estilo de João Paulo II. É um homem de posições conservadoras fortes em questões de doutrina, mas com um toque popular. Prega em estações de trem, nas ruas. Vai até os bairros pobres para rezar. Não espera as pessoas irem até a igreja, vai até elas. Mas a mensagem é absolutamente conservadora. Ele opôs-se ao aborto, à lei do casamento homoafetivo. Lançou uma “cruzada contra o mal”, quando o Congresso estava aprovando esta lei, exatamente no mesmo estilo de João Paulo II. Isso é o que considero ser a característica principal do novo papa.

Juan González: Bem, talvez este conservadorismo seja característica comum de muitos cardeais consagrados nos dois últimos papados. Mas no caso de Bergoglio, existe também a questão de seu papel, ou das acusações sobre seu envolvimento na “Guerra Suja”, na Argentina. Você, que fez diversas reportagens investigativas sobre o tema, poderia nos dizer algo a respeito?

É claro. Ele foi acusado por dois padres jesuítas de tê-los denunciado aos militares. Faziam parte de um grupo sob direção de Bergoglio. Ele tornou-se o superior provincial da ordem, na Argentina, quando ainda muito jovem. Foi o provincial jesuíta mais novo da história: aos 36 anos [em 1972]. Durante um período de grande atuação política na Companhia de Jesus, ele estimulou o trabalho social dos jesuítas. Mas quando o golpe militar derrubou o governo de Isabel Perón, ele mantinha contato com os militares e pediu aos jesuítas para interromperem a ação social. Como recusaram-se a fazê-lo, deixou de protegê-los, e permitiu que os militares soubessem que eles não estavam mais sob proteção da Companhia de Jesus. Eles foram sequestrados e o acusam por esta ação. Ele nega. Ele disse a mim que tentou libertá-los, que falou com os ex-ditadores Videla e Massera para libertá-los.
Durante um longo período, ouvi duas versões: a versão dos dois padres sequestrados, que foram soltos depois de seis meses de tortura e cativeiro, e a versão de Bergoglio. Essa foi uma questão controversa e divisiva no movimento de direitos humanos a que pertenço, o Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS). O presidente fundador do CELS, Emilio Mignone, afirmou que Bergoglio era cúmplice dos militares. Uma advogada do CELS, Alicia Oliveira, que era amiga de Bergoglio, conta outra parte da história, que Bergoglio os ajudou. Essas são as duas versões.
Mas durante a pesquisa para um dos meus livros, encontrei, no arquivo do ministério de Relações Exteriores da Argentina, documentos que, segundo entendo, encerram o debate e mostram o duplo padrão que orientou Bergoglio. O primeiro documento era uma nota na qual ele pedia ao ministro a renovação do passaporte de um desses jesuítas, sem que tivesse necessidade de voltar à Argentina. O segundo, é uma nota do oficial que recebeu a petição, recomendando a seu superior, o ministro, a recusa da renovação do passaporte. E o terceiro documento é uma nota do mesmo oficial, dizendo que esses padres tinham ligação com a subversão – era assim que os militares caracterizavam qualquer pessoa envolvida com a oposição do governo, política ou armada –; que ele havia sido preso na ESMA; e que essa informação fora dada pelo Padre Jorge Mario Bergoglio, provincial superior da Companhia de Jesus.
Isso significa, no meu entendimento, um duplo padrão. Ele pediu o passaporte para o padre em uma nota formal, com sua assinatura; mas, em privado, disse o oposto, e repetiu as acusações que fizeram os padres ser sequestrados.

Amy Goodman: Você pode explicar o que aconteceu a estes padres, Orlando Yorio e Francisco Jalics?

Ambos, quando soltos, estavam drogados, confusos. Foram transportados de helicóptero para a periferia de Buenos Aires e abandonados. Quando encontrados, dormiam sob efeito de drogas, em péssima condição. Haviam sido interrogados e torturados. Um dos interrogadores aparentava ter conhecimento de questões teológicas, o que levou um dos padres, Orlando Yorio, a pensar que seu próprio provincial, Bergoglio, estivesse envolvido no interrogatório.

Amy Goodman: Segundo este padre, o próprio Bergoglio teria feito parte de seu interrogatório?

Ele me disse que teve a impressão de que seu próprio provincial, Bergoglio, estava presente durante o interrogatório, no qual um dos interrogadores sabia bastante sobre questões teológicas. Quando solto, ele foi a Roma, onde viveu sete anos, antes de voltar à Argentina. Ao regressar, ligou-se à diocese de Quilmes, na Grande Buenos Aires, cujo bispo era um dos líderes do ramo progressista da igreja argentina, oposto ao de Bergoglio. Então, Orlando Yorio denunciou Bergoglio. Eu recebi seu testemunho quando Bergoglio foi eleito arcebispo de Buenos Aires. E também entrevistei Bergoglio, que negou as acusações, dizendo que defendeu os padres.
Orlando Yorio colocou-me em contato com o outro padre, Francisco Jalics, que vivia na Alemanha. Ele confirmou a história, mas não quis ser mencionado em minha matéria, porque preferia, segundo disse, não lembrar dessa triste parte de sua vida e perdoar. Acrescentou que havia passado muitos anos ressentido com Bergoglio, mas estava disposto a perdoar e esquecer. Quando publiquei meu livro sobre o caso, um jornalista argentino que havia sido discípulo de Jalics falou com ele e pediu que contasse a verdadeira história. Jalics respondeu que não iria nem afirmá-la, nem negá-la.

Juan González: Gostaria de indagar sobre outro padre que se envolveu com a Guerra Suja, Christian von Wernich, um antigo capelão do Departamento de Polícia na Argentina.

Ele foi condenado, e ele está na cadeia, em prisão comum. Mas a igreja argentina, durante o mandato de Bergoglio, não o puniu, em termos canônicos. Ele foi condenado pela justiça humana mas, pelos padrões da igreja, continua a ser um padre. Isso também diz algo sobre Bergoglio e a igreja argentina.

Juan González: Von Wernich estava envolvido em assassinatos, torturas e sequestros. Você poderia detalhar alguns dos crimes pelos quais foi condenado?

Von Wernich era parte ativa nas torturas e assassinatos. Foi condenado não apenas como cúmplice, mas como participante dos crimes. Estava presente durante sessões de tortura. E não há apenas um capelão envolvido, existem alguns outros que estão sob julgamento nesse momento. O capelão Regueiro está sob prisão domiciliar, por ser idoso. O capelão Zitelli, da província de Santa Fé, esteve presente em sessões de tortura. Vários capelões foram parte da Guerra Suja.

Amy Goodman: Gostaria de ler parte de um despacho do Departamento de Estado dos EUA, revelado pelo WikiLeaks, que faz referências ao padre Christian von Wernich, condenado em 2007 por cumplicidade em muitos casos de assassinato, tortura e prisões ilegais na Argentina durante o período militar. O texto observa que a condenação deu-se, cito, “no momento em que alguns observadores consideraram o Cardeal Primaz Católico Romano Bergoglio um líder da oposição ao governo de Kirchner, devido a seus comentários sobre questões sociais; o caso von Wernich poderia também ter efeito, alguns acreditam, de minar a autoridade moral de Igreja (e, por extensão, do Cardeal Bergoglio), ou sua capacidade de comentar questões políticas, sociais ou econômicas”. Horacio, você poderia comentar?

Podemos analisar este documento por partes. Primeiro, o Departamento de Estado considerou Bergoglio o chefe da oposição ao governo Kirchner. Eu concordo com esta avaliação. O Departamento de Estado também fala sobre a condenação do padre von Wernich ter, como possível objetivo, o de minar a posição de Bergoglio. Isso não é verdade, no meu entendimento. A condenação do padre von Wernich é uma consequência de um movimento que começou muito antes dos Kirchner chegarem ao poder e tem sua própria lógica judicial, não se subordina a um calendário político.

Amy Goodman: Gostaria de perguntar sobre o tema do ocultamento de prisioneiros políticos, quando uma delegação de direitos humanos foi à Argentina. Você pode relatar o episódio, as alegações e o eventual papel de Bergoglio?

Não, neste episódio Bergoglio não teve intervenção alguma. Quem agiu foi o cardeal que chefiava a igreja em Buenos Aires. À época, Bergoglio não era arcebispo. Quando a Comissão Interamericana de Direitos Humanos veio à Argentina, para investigar alegações de violação de direitos humanos, a marinha retirou 60 prisioneiros da ESMA e os levou a uma vila, usada pelo Cardeal Aramburu nos fins de semana. Este imóvel, na periferia de Buenos Aires, era também o local onde se celebrava, a cada ano, o final dos estudos, no seminário católico. A Comissão Interamericana visitou a ESMA, e não encontrou os prisioneiros que supostamente estariam lá.
Bergoglio não teve intervenção alguma no episódio. Na verdade, ele ajudou-me a investigar o caso. Deu-me a informação precisa sobre onde estavam os documentos atestando que a vila era propriedade do Arcebispado de Buenos Aires.
Foto: Catholic Church/CC

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