22 de jul. de 2017

A “Teoria do Medalhão” de Machado de Assis

A “Teoria do Medalhão” de Machado de Assis ou como se tornar um jurista distinto
“Upa! Que a profissão é difícil” – Machado de Assis
Talvez seja a grandiosidade do mestre, talvez a constância de certos aspectos caricaturais da sociedade brasileira, o certo é que parece que “A Teoria do Medalhão” foi escrita nos dias de hoje, por um Machado de Assis familiarizado com os meandros da formação jurídica, cada vez mais popular no Brasil. Publicado, porém, originalmente na Gazeta de Notícias, nos idos de 1881, o conto traduz os conselhos de um pai para um filho que acaba de fazer vinte e um anos (a maioridade à época).

Pois dedico essa minha humilde leitura aos jovens juristas. Vocês que, aos vinte e um anos de idade – talvez um pouco mais, talvez um pouco menos – estão nos finalmentes da graduação em Direito ou, quem sabe, já dão seus primeiros passos nesse incrível mundo dos bacharéis. Vocês que, por sua pouca idade (embora, confesso eu, não posso me vangloriar de larga experiência) e por terem crescido na era das informações digitais e pululantes, podem não ter tido acesso ao texto curto, porém denso e instrutivo, de um dos maiores nomes da literatura brasileira.

Basta de preambulações. Passemos às lições que podem ser extraídas da obra.

Primeiramente, embora não esteja expresso, deve-se ter como subentendido que os conselhos se dirigem a um público específico, evidentemente amoldado às mais importantes regras sociais. Se você não é branco, homem, heterossexual, pelo menos classe média (o personagem do conto possui um diploma e algumas apólices), já alerto, as coisas serão mais complexas. Procure literatura específica ou redobre a atenção, sobretudo no que tange à “redução do intelecto ao equilíbrio comum”. Falar em racismo, machismo, homofobia, dentre outros rótulos criados por grupos que se opõem à ideia de igualdade é fatal e pode arruinar sua potencialidade de se tornar um verdadeiro medalhão do Direito.

O objetivo do pai que aconselha o filho é que este se faça “grande e ilustre, ou pelo menos notável”, que se levante “acima da obscuridade comum”. Para tanto, deve desde logo traçar um caminho voltado a esse objetivo, não obstante, segundo o pai, é comum tornar-se medalhão apenas por volta dos quarenta e cinco anos.

Mas, justamente pela necessidade de se pensar a longo prazo, deve-se iniciar moderando o “ardor, a exuberância e os improvisos da idade”. Importante, ainda, “todo o cuidado nas ideias que deve nutrir para uso alheio e próprio”. Aconselhável, mesmo, é “aparelhar fortemente o espírito para não ser afligido por ideias próprias”, cultivando absoluta inópia metal.

Alguns dos indicativos de sucesso nesse quesito podem ser facilmente cultivados pelos jovens juristas, como, por exemplo, “a habilidade para repetir numa sala as opiniões ouvidas numa esquina”. Nesses tempos em que direito virou conversa de botequim, além de estampar as páginas dos informativos mais sérios até os folhetins sensacionalistas, convém saber replicar muitas ideias, desde que, evidentemente, se saiba adequá-las ao gosto do interlocutor.

Para se evitar as ideias próprias, alguns estratagemas são sugeridos: ler tratados de retórica, ouvir certos discursos, praticar atividades que possam favorecer o compartilhamento de opiniões, tornando-as comuns a determinado grupo, como carteado, bilhar, dominó, etc. Ginástica deve ser evitada para que não favoreça o repouso do cérebro e a retomada de “forças e atividades perdidas”.

A solidão é contraindicada pela potencialidade de despertar ideias, razão pela qual deve-se “mesclar-te aos pasmatórios”. Nossos velhos companheiros – Aurélio, Michaelis – ou os novos – google e afins – dizem que pasmatórios são locais frequentados por pessoas ociosas. Evidentemente, deve-se misturar ao ócio dos grandes homens, possuidores de rendas, herança ou sorte que os permita assim viver, e, não, ao ócio dos desocupados por fatalidades do destino e que nada têm a acrescentar à carreira de um medalhão.

Apesar dos perigos oferecidos, as livrarias – e poderíamos estender para outros ambientes culturais e de conhecimento – podem ser frequentadas “às escâncaras”, desde que para conversas banais, com sujeitos que ofereçam uma monotonia de opiniões.

O jovem jurista pode estar certo que, nesse mirabolante universo do direito, não lhes faltará lugares comuns, monotonia de discursos e eventos para exercer a pompa sem ocupar o intelecto. Dessa forma, como alerta o personagem machadiano “reduzes o intelecto, por mais pródigo que seja, à sobriedade, à disciplina, ao equilíbrio comum”.

Sobre o vocabulário, o guia aconselha que seja naturalmente simples, tíbio, apoucado. Se a leitura do conto tivesse se encerrado nesse ponto, ousaria eu até discordar de Machado de Assis ao trazê-lo para nosso cenário jurídico. Afinal, a linguagem suntuosa faz parecer prestigioso quem a utiliza.

Mas o autor, é claro, não ignorou tal fato, e elencou dicas preciosas sobre o uso da linguagem pelos aspirantes a medalhões: empregar figuras expressivas; sentenças latinas; versos céleres; ditos históricos; brocardos jurídicos; máximas; frases feitas; locuções convencionais; fórmulas consagradas pelos anos. Enfim, um vocabulário marcado pela “vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil” e que revela a “arte difícil de pensar o pensado”.

Questionado sobre os “processos modernos” – que aparentam ser os métodos, investigações e informações científicas –, o personagem afirma condenar a aplicação, mas louvar a denominação. Recomenda que se decore toda a recente terminologia científica, pois, embora o medalhão se assemelhe antes ao “Deus Término”[1], deve se utilizar das armas de seu tempo.

Neste ponto, embora fuja do propósito desse breve texto as citações longas, convém trazer com exatidão as palavras de Machado de Assis: “o método de interrogar os próprios mestres e oficiais da ciência, nos seus livros, estudos e memórias, além de tedioso e cansativo, traz o perigo de inocular ideias novas e é radicalmente falso”.

E aqui o jovem-jurista-aspirante-a-medalhão deve estar pensando que não há razão nesses ensinamentos. Afinal, deve-se repudiar os mestres e as tarefas de estudo? Por certo, não. A tarefa proposta não é assim tão simples. É preciso dominar as fórmulas, os termos, os nomen juris, ter um conhecimento wikipediano das teorias. O que não convém é se entranhar em longas e profundas discussões, mergulhar em tratados ou debates que consomem o intelecto e não conduzem a qualquer benefício prático.

Mas é de bom tom ter sempre uma carta na manga, um “Estado Democrático de Direito”, uma “dignidade da pessoa humana”, termos que enobrecem qualquer discurso, que impressionam pela potencialidade de significar tudo e, a depender de seu uso, nada.

Em consonância com o então apresentado, emenda-se as advertências acerca do bom discurso. Deve-se sempre preferir a metafísica política aos negócios miúdos, pois, além de despertar paixões não obriga os ouvintes “a pensar e descobrir”. Rendem aplausos e congratulações, embora sejam tão úteis ao mundo quanto os comoventes palavrórios das misses que almejam a paz mundial.

Se Machado de Assis já considerava a publicidade importante ao traçar este roteiro em séculos passados, certamente dedicaria mais linhas em seu louvor caso escrevesse nos dias de hoje. Na era das redes sociais, a publicidade foi elevada a um novo patamar.

Mas é importante compreender que a publicidade que pode lhe alçar a medalhão é distinta. Nada de posts patrocinados ou recorde de seguidores no Instagram. É uma publicidade com ares de despretensão. Por isso, as sugestões do bruxo do Cosme Velho continuam válidas e atuais: participe de comissões; deputações para felicitar um agraciado; irmandades; associações diversas, tudo que possa “por em relevo sua pessoa” e render linhas no currículo sem qualquer esforço na vida real. Eis a publicidade “constante, barata, fácil, de todos os dias”. A ela devem ser aliadas as amizades pessoais (de grande importância no reino dos medalhões), os sentimentos da família e a estima pública.

Sobre a filosofia – e outros conhecimentos que alguns podem dizer úteis ao labor do jurista, como sociologia, psicologia e, até mesmo, a literatura e as artes em geral – é recomendado manter alguma no papel e na linguagem, mas afastá-la da realidade. Como vocês devem bem saber, o Direito é autorreferente e autossuficiente e qualquer desvio é inútil distração. Sintetiza, então, com primor, o pai-personagem: “proíbo-te que chegues a outras conclusões que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade, etc., etc.”.

O requinte deste conto machadiano foi protelado para a derradeira advertência apresentada. “Somente não deves empregar a ironia”, diz o conselheiro, por ser esta feição própria dos “céticos e desabusados”. Deixo de fazer maiores considerações sobre o tema e recomendo ao leitor um passeio pela obra de Machado de Assis para uma perfeita compreensão sobre o alcance deste último aviso.

Pois bem, são estes os principais passos que devem ser seguidos pelos candidatos a se tornarem juristas-medalhões. Como puderam perceber, não é tarefa fácil, exige esforço, dedicação e muito foco para não se desviar do propósito central. Deve-se alertar, também, que a concorrência é forte e, por isso, o pretendente precisa se destacar para atingir o posto almejado. 

Por fim, é bom alertar, pode ser que se encontre pelo caminho pessoas que se proclamam juristas, mas que se afastam das lições ora traçadas, tentando lançar-lhes em um caminho que, dizem, demanda senso crítico e alteridade. Aviso aos desavisados: não caiam nessa armadilha. Referido caminho é tortuoso e se afasta de todos os bons princípios que sustentam a figura do medalhão.

Desejo-lhes, então, sorte. Ao vencedor, as melhores gravatas.

Jéssica Oníria Ferreira de Freitas é doutoranda em Direito Processual Penal pela UFMG. Mestre em Direito Processual Penal (UFMG). Graduada em Direito. Professora substituta de Direito Processual Penal na UFMG. Advogada criminalista.

[1] Na mitologia romana, era o deus protetor das fronteiras.

do Justificando

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