O que vale celebrar, na passagem dos 50 anos do golpe civil-militar, é a superação dos 21 anos de horror e trevas por 29 anos de democracia contínua, que permitiram a realização, sem sobressaltos, de algumas das reformas que assustaram, em 1964, o conservantismo brasileiro, disposto a qualquer pacto para garantir seus privilégios. Entre elas, o voto dos analfabetos, o acesso universal ao ensino e uma distribuição menos desigual da renda.
Mas a hora é de recordar para não esquecer, para que não sejam esquecidos os que foram sacrificados e para que não vinguem as narrativas que tentam relativizar os fatos.
por Tereza Cruvinel
em seu Blog
É preciso dizer que houve aqui uma ditadura que violou o estado de direito, cometeu crimes contra a humanidade, censurou, torturou e matou.
É preciso dizer isso especialmente aos mais de 90 milhões de brasileiros nascidos depois de 1985. Eles vêm sendo impregnados pelas narrativas relativizantes, como a de que, se não tivesse havido o golpe de direita, haveria o de esquerda. Ou a de que Jango foi deposto porque teria dado uma “guinada esquerdista” nos idos de março, por conta de reformas que buscavam apenas tirar o país da Idade Média, de uma exclusão com resquícios de escravidão.
O golpe estava em marcha desde o veto à sua posse, em 1961, com decidido apoio americano. Tornou-se também corrente dizer que as violências do regime foram respostas à violência do outro lado. O movimento inicial partiu dos golpistas, mesmo não tendo havido reação à tomada do poder. Depuseram o presidente constitucionalmente eleito com a ajuda de uma potência que apenas defendia seus interesses econômicos e suas posições na Guerra Fria.
E não foram somente os militares, mas também a direita civil. Na madrugada de 2 de abril, a maioria do Congresso apoiou a decisão de Moura Andrade, de declarar vaga a Presidência e dar posse a Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara. Tancredo Neves o chamou de canalha. Rogê Ferreira lhe cuspiu na cara três vezes. Gestos inúteis, estava tudo acabado. Jango voava para o Sul e lá não teve condições de resistir.
Dez dias depois, o primeiro general, Castelo Branco, foi eleito com 361 votos e 72 abstenções. Do PSD, apenas Tancredo não votou. O Congresso pagaria caro pelo golpismo. Foi fechado, vilipendiado, teve muitos de seus membros cassados, seus poderes manietados.
Nas primeiras horas do golpe, incendiaram o prédio da UNE, atiraram contra uma multidão na Cinelândia, depuseram Miguel Arraes e arrastaram Gregorio Bezerra pelas ruas do Recife, com uma corda no pescoço e os pés imersos em solução de bateria de carro até ficarem em carne viva. Depois do golpe, a violência produziu o inventário de crimes de cada governo militar, segundo o projeto Brasil: nunca mais. Castelo Branco: 3.449 cassações de mandatos e direitos políticos, 363 denúncias de tortura, quatro desaparecimentos e 21 assassinatos.
Costa e Silva: 947 cassações de mandatos e direitos políticos, 810 denúncias de tortura, um desaparecido e 26 mortos. Junta Militar de 1969: 82 cassações de direitos e mandatos, 171 denúncias de tortura, sete desaparecimentos. Emilio Garrastazu Medici: 701 cassações de direitos e mandatos, 3.664 denúncias de tortura, 96 desaparecimentos, 132 assassinatos. Ernesto Geisel: 69 cassações de mandatos e direitos políticos, 1.008 denúncias de tortura, 36 desaparecimentos e 22 mortes. João Figueiredo: 9 denúncias de tortura e duas mortes.
O relativismo tenta dizer ao futuro que “houve excesso dos dois lados”. A conta das brutalidades já era enorme quando, a partir de 1968, com todos os caminhos de resistência fechados, algumas organizações de esquerda, quase todas costelas do PCB, que persistiu na resistência legal e pacífica na política, partiram para a luta armada. Nela, muitos perderam a vida. O direito internacional reconhece como legítima a luta armada contra a opressão, mas isso nem vem ao caso. Indiscutível é a desproporção e a brutalidade da repressão. Nem foi só contra a luta armada que o regime mostrou sua falta de limites e sua índole criminosa, e disso falam, emblematicamente, as mortes de Vladimir Herzog e Rubens Paiva. Ou o trucidamento de boa parte da alta direção do PCB.
Independentemente da organização em que militaram, é hora de recordar os crimes mais bárbaros da ditadura, os assassinatos e as torturas abomináveis cometidos em suas masmorras por agentes do Estado. Eles não serão alcançados pela Justiça, por conta da Lei de Anistia recíproca, mas precisam passar pelo menos pela execração pública, como começa a ocorrer graças ao trabalho da Comissão da Verdade.
Recordar Stuart Angel Jones, que foi arrastado com a boca amarrada ao cano de descarga de um jipe. Depois de sua agonia e morte, segundo relatos de outro preso, Alex Polari, desapareceu para sempre. Mário Alves morreu depois de espancado e empalado com um cassetete dentado. Chael Charles Schreier morreu brutalmente torturado pelo tenente Lauria e o capitão Aílton Guimarães. A versão oficial entregue aos pais foi a de que ele tivera um ataque cardíaco. Aurora Furtado reagiu à tentativa de prisão e matou um policial. A vingança foi terrível. Torturada na Invernada de Olaria, morreu quando lhe aplicaram a “coroa de Cristo”, torniquete que foi lhe afundando lentamente o crânio.
Eduardo Leite, o Bacuri, soube que o matariam quando, já muito torturado, com a pele toda queimada, deram-lhe para ler a notícia plantada num jornal, segundo a qual ele fugira e desaparecera quando levado para reconhecer o corpo de um companheiro. Desapareceu mesmo, mas de outro modo.
Davi Capistrano, do PCB, foi preso ao voltar de viagem e desapareceu para sempre. Antes que o espaço acabe, é preciso lembrar que os guerrilheiros do Araguaia foram todos mortos como cães, mesmo depois de rendidos. O corpo de Oswaldão foi dependurado a um helicóptero e exibido à população.
O de Bergson Gurjão, morto a golpes de baioneta, foi pendurado numa árvore, chutado e cuspido pelos soldados num ritual de selvageria. Lamarca e Zequinha, famintos e debilitados, descansavam sob uma baraúna quando foram metralhados pelos homens do coronel Cerqueira. Carlos Marighela, líder da ALN, foi emboscado por Fleury e varado de balas numa travessa paulistana.
Seus sucessor, Joaquim Camara Ferreira, também foi preso pelo mesmo delegado e levado a um sítio, onde não resistiu à tortura. Os que não morreram puderam contar o inferno por que passaram na tortura. Entre tantos e tantas, Dilma Rousseff e Inês Etienne Romeu — graças a quem soubemos que existiu a Casa da Morte, de onde só ela saiu viva. Por isso e muito mais, não podemos falar só do golpe, mas do que veio depois, com seu verdadeiro nome.
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