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À MARGEMGuerra às drogas transforma pessoas em situação de rua em 'inimigos públicos'
Políticas públicas violentas e negação de direitos é resultado de "imaginário de vícios e crimes" aplicado sobre pessoas em situação de rua, de acordo com a antropóloga Taniele Rui
por Gabriel Valery, da RBA
São Paulo - Como tudo que tem pautado essa gestão, às políticas direcionadas à pessoas em situação de rua devem ser vistas com suspeitas, na medida em que há muito de marketing, de lançamento de programas e pouca efetividade prática. A opinião da professora de Antropologia da Universidade Estadual de São Paulo em Campinas (Unicamp) Taniele Rui refere-se à administração do prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB). A professora é uma das organizadoras do Novas Faces da Vida nas Ruas, concorrente ao Prêmio Jabuti deste ano.
Doria vem adotando medidas controversas no setor. O programa Trabalho Novo, por exemplo, exige que as pessoas em situação de rua tenham "dentes em bom estado" para pleitear um emprego. "Cabe pensar a falta de assistência odontológica como política pública a essa população. Do contrário, reitera-se mais do mesmo estereótipo", afirma Taniele. Somam-se ao quadro as violentas ações da prefeitura em parceria do governo do estado na região conhecida como Cracolândia.
A violência praticada contra essas pessoas é fruto, explica a antropóloga, de uma visão rasa sobre o tema, que passa pela questão das drogas. "O debate sobre drogas colonizou o debate sobre a população de rua, antes mais ligado aos temas do trabalho, moradia e políticas públicas. Contribuiu para criminalizar ainda mais essa população. A justificativa pública de 'combate ao tráfico' legitima hoje uma série de intervenções sobre os territórios e corpos dessa população."
"Nesse sentido, as drogas entram na rua para conformar um imaginário de 'vícios' e 'crimes' que afasta ainda mais essa população do direito a reivindicar direitos básicos como moradia e trabalho. Legitima-se assim a construção desses sujeitos como inimigos públicos que devem ser contidos, controlados, convertidos, tratados e, no limite, exterminados", completa Taniele.
Este e outros temas ligados ao universo das pessoas em situação de rua são compilados na obra lançada no último mês pela editora Edufscar. O livro traz textos de diferentes autores elaborados entre 2004 e 2016. "A proposta é reunir trabalhos feitos em campo com moradores de rua, de pesquisadores que viveram o cotidiano dessas pessoas por um tempo", afirma o professor de sociologia da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) Gabriel Feltran, também organizador do livro.
"A obra traz o leitor para a perspectiva desses moradores. Não fala apenas sobre eles, mas sim sobre como eles enxergam a cidade, o conflito urbano e o mundo", diz Feltran. "O livro é mais sobre a criação de um aparato que contribui para a manutenção das pessoas nas ruas. Assim, realizamos pesquisa sobre os massacres a que sujeitam essa população, sobre a construção política elaborada com essas mortes de rua em cidades como São Paulo, São Carlos e Paris", completa Taniele.
Um dos artigos trata justamente de uma chacina de moradores de rua. "Ele apresenta o massacre, momento traumático e terrível, que aconteceu em 2004 na cidade de São Paulo, quando várias pessoas foram mortas na Praça da Sé. Desde então, o debate público sobre a população de rua se transformou radicalmente", observa o cientista social Daniel de Lucca, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
"De um lado, entrou a questão dos direitos humanos, a população de rua virou pauta dos direitos humanos, e por outro lado, o tema das drogas começou a colonizar a população de rua. Hoje é muito difícil pensar na população de rua sem pensar no enredo da indústria das drogas, da saúde mental", afirma de Lucca.
Embora os autores reconheçam as ruas como "um lugar de sofrimento", a obra aponta para outras características e significados da vida dessas pessoas. "Aprendemos que as ruas também são lugares de conhecimento, vida e experiência. Isso aparece nas pesquisas de forma única", afirma de Lucca.
"A afirmativa de que a rua é um lugar de sofrimento é, para nós, ponto de partida e não de chegada. É tendo conta esse sofrimento que, primeiro, o livro tenta observar como ele é produzido politicamente. Segundo, nos interessa entender como as pessoas permanecem vivas, juntas e encontram pontos de ajuda mútua. Reconhecer essa dimensão é reconhecer a infinita capacidade existencial e política que demonstra diariamente essa população", explica a antropóloga Taniele.
Mesmo a cracolândia ganha novos significados ao longo de mais de 20 anos de existência. "O termo passou por várias transformações. Embora se reconheça como o projeto empregado através dele para estigmatizar toda uma região, que é muito mais do que só terra do crack, hoje, porém, é possível denotar com o termo um engajamento afetivo através do diminutivo 'craco', que está na base, por exemplo, do coletivo Craco Resiste", observa a professora da Unicamp.
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