Mulheres negras e indígenas protestam contra o racismo em São Paulo, em julho de 2017 Paulo Pinto/Fotos Públicas |
O brasileiro médio acha que não existe racismo. Há, sim, e ele precisa ser combatido a toda hora e em toda e qualquer circunstância
por Roberto Amaral na Carta Capital
Diogo Cintra, 24 anos, ator, abordado por três assaltantes, foge, corre, em busca de proteção junto aos seguranças de um terminal de ônibus no centro de São Paulo, onde a cena se desenvolve.
Diogo é negro, e os marginais são brancos, e na correria gritam que o negro tentara assaltá-los (embora dois deles estivessem encapuzados...). Diogo é espancado sob as vistas de todos, seguranças, passageiros e passantes, porque no Brasil quando um negro corre atrás de um branco, trata-se de uma maratona, mas quando um branco corre atrás de um negro, este é, necessariamente um bandido.
É o que diz nossa cultura, diariamente tecida pelo racismo larvar, nas ruas, nas escolas, nas relações de trabalho, no cinema, nos jornais, no rádio e na televisão.
A ‘democracia racial’ é formulação ideológica mediante a qual a Casa Grande, arcaísmo que no entanto persiste, intenta relativizar o racismo. É falácia cediça como a construção do ‘brasileiro cordial’, uma contrafação em face dos ensinamentos da História.
O racismo brasileiro, uma das faces do autoritarismo que pervade toda a sociedade, e que se insinua mesmo sobre suas vítimas, assim como o pensamento do colonizador domina o colonizado para melhor submetê-lo, não é mera consequência do escravismo secular que inoculou de ignomínia nossa formação histórica. É mais do que preconceito nas relações indivíduo para indivíduo (como as restrições ao migrante nordestino pobre, aos gays, aos velhos etc.), pois trata-se de engenharia conscientemente arquitetada e levada a cabo pela classe dominante brasileira (como a norte-americana, como todas as fundadas na exploração do braço negro escravo), tendo por instrumento o Estado, farisaicamente nascido de um pacto que, frente à ação que vai desempenhar, consagra a igualdade de todos perante as leis que o justificam.
A proposição constitucional brasileira (cópia literária das formulações das constituições editadas após as revoluções burguesas) segundo a qual “todos são iguais perante a lei”, que simplesmente diz que todos devem ser tratados igualmente, é traduzida como todos (já) sendo iguais perante a lei, portanto, tidos como usufrutuários (reais) dos mesmos direitos, transformando em realidade fática uma simples potência.
Daí, eis a conclusão cartesiana, se todos são iguais, todos, mulheres, pobres e ricos, negros e brancos devem ser tratados igualmente, isto é, sem cotas, sem proteção, brancos e negros, pobres e ricos lidando, em igualdade de condições, com as regras do mercado, do ensino pago, da medicina paga, pois, sendo todos, iguais, todos têm, igualmente, isto é, na mesma medida, acesso ao trabalho, à educação, à habitação, à instrução e ao emprego. Só não trabalha quem não quer, só não estuda quem não quer, porque o ideal de ‘vencer na vida’ é uma opção ao alcance de todos e de cada um.
Essa ação discriminatória, portanto atentatória à Lei e ao Direito, faz parte do projeto de desigualdade que caracteriza a construção do país, como fator de desenvolvimento de nosso capitalismo tardio. É, por fim e tudo resumindo, a expressão maior e mais efetiva da opressão de classe. É racismo institucional.
É o Estado -- com seus aparelhos ideológicos (educação, religião, imprensa etc.), e repressivos, como o Poder Judiciário e o aparato policial --, o Estado construído com o cinzel do grande senhor branco, rico e proprietário, que, com naturalidade, dolosamente, legisla e aplica sua lei a partir de critérios racistas ou racializados.
Este Estado assim matizado não é figura de retórica, nem caiu do céu: projeta os interesses das classes dominantes que se sucederam no comando do processo histórico. Talhado segundo seus interesses, está a seu serviço desde sempre, da Colônia à República, do extrativismo predatório (do homem e da natureza) à industrialização dependente.
Assim se explica o país que chega à contemporaneidade: 54 milhões de brasileiros, a saber, 32% da população, são pessoas (jamais cidadãos) que percebem por mês menos de R$ 150. Desse total, 76% são negros (dados do IPEA). A miséria, induzida, afasta o negro da vida, matando-o nas favelas ou segregando-o na cadeia. Ao negar-lhe a escola, o aprendizado, a preparação para enfrentar (ainda que em desigualdade de condições) o moinho humano da concorrência com os bem nascidos, expulsa-o do mercado de trabalho, que, ademais de contraído, requer mão-de-obra especializada. Na era da globalização capitalista e do monopólio do capital financeiro e da sociedade digital, na era da tecnotrônica e da robótica, a condenação de jovens negros à ignorância ou baixa escolaridade corresponde a perversa forma de apartheid.
Não por acaso, já hoje, 60% dos desempregados são negros ou pardos e os negros e os pardos ainda empregados desempenham atividades com baixa qualidade, aquelas que não exigem formação e pagam os piores salários.
Diz a pesquisa IBGE-Pnad-Contínua que são negros ou pardos nada menos de 66,7% dos quase dois milhões de brasileiros que sobrevivem como ambulantes, e 66% dos 6,177 milhões das empregadas e dos empregados domésticos.
A exclusão do mercado educacional condiciona a exclusão do mercado de trabalho, visto que as condições de vida são determinadas por fatores como onde nascemos e onde vivemos (Ipanema ou Rocinha, por exemplo), como acesso à educação (do analfabetismo ao pós-doutorado), gênero (a mulher está condenada a, executando o mesmo trabalho, perceber salario inferior ao do homem), renda familiar, origem e etnia.
Quando a exclusão não se dá já na precarização do ensino, o mercado de trabalho restringe o espaço das negras e dos negros.
No conjunto de pesquisadores brasileiros apenas 1% é representado por negros e negras; nas mais de 4.000 instituições universitárias brasileiras não se conhecem reitores negros, como não se conhece negro na presidência de uma das maiores cinco mil empresas privadas sediadas no país.
Nas salas de aula das universidades, graças às políticas de cotas implantadas nos governos Lula-Dilma, já se encontram alunos e alunas negras, mas os professores são majoritariamente brancos, como brancos são os mestres e os doutores de um modo geral.
Há uma clara intencionalidade nas crescentes restrições ao ensino público e gratuito (O Banco Mundial, por exemplo, em pesquisa encomendada e paga pelo governo brasileira, emite relatório recomendando à União deixar de investir no ensino universitário) de par com a expansão da escola privada em todos os níveis.
Esta opressão, em progresso (nos últimos 10 anos as agressões a negros, no Brasil, cresceram 200%!) se materializa quando nossa sociedade (insisto no termo sociedade para destacar a responsabilidade de todos) mata jovens negros, nega-lhes instrução, nega-lhes emprego, expulsa-os dos centros urbanos e finalmente com eles povoa os Carandirus espalhados por todo o país. É fácil de ver: a população carcerária deste país soma, hoje, 630 mil seres humanos, majoritariamente jovens, pobres e de baixa escolaridade. Desses, 61,6% são negros e pardos, diz-nos o Levantamento Nacional de Informação Penitenciária, do Ministério da Justiça.
Este é o retrato de nossa sociedade democrática e cordial.
Não pode ser natural, ou sadia, uma prática que confina e priva das noções mínimas de pertencimento, fruição ou exercício dos mais elementares direitos e garantias uma população de mais de 600 mil indivíduos, adrede selecionados para a exclusão, quer pelo nível de renda, quer pela cor da pele, ou por ambos, porque no Brasil a pobreza tem cor. Aqui a ordem social exclui para, primeiramente, explorar; depois, para prender e matar.
Após 400 anos de escravismo e quatro milhões de negros escravizados -- mal alimentados, condenados ao tacão do feitor, à tortura e ao pelourinho, caçados como bicho do mato quando ousavam buscar a liberdade, condenados a uma das mais baixas médias de vida dentre todos os negros escravizados -, o brasileiro médio acha que não existe racismo. Há, sim, e ele precisa ser combatido a toda hora e em toda e qualquer circunstância.
Dou a palavra à filósoofa e militante Angela Davis: “Numa sociedade racista não basta não ser racista. É necessário ser antirracista”.
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