25 de jun. de 2018

Linchamentos públicos no Brasil: uma expressão do racismo

foto  Wolfgang Stiller (German, born 1961)

por Justificando

Há décadas, matérias jornalísticas pelo Brasil noticiam repetidamente episódios de justiçamento social e servem quase como única fonte de análise para a construção de estudos sobre tal fenômeno de violência, sobretudo no que diz respeito à sistematicidade da figura do linchamento. Este, um ato que não se configura como um tipo penal específico e sim como um crime coletivizado que envolve tantos outros, não havendo, portanto, seu devido enquadramento nos inquéritos policiais e judicializações que podem surgir. Assim, José de Souza Martins[1], a partir de jornais e portais de notícias, conseguiu chegar ao seguinte resultado de extensa pesquisa: um milhão de brasileiros já linchou ou tentou linchar alguém nos últimos 60 anos, podendo esse número ser 50% maior.

Em termos resumidos, a prática de linchar é engendrada no espaço público dos centros urbanos por multidões constituídas pelos próprios moradores das comunidades em que determinados sujeitos são fisicamente violentados. Hoje, diferentemente das motivações racistas óbvias que explicavam o linchamento no país no século XIX, sua compreensão perpassa uma dita “complexidade” e motivações vistas como mais espontaneamente “súbitas” e “irracionais”, o que parece afastar o aspecto racializante da ótica de inteligibilidade que outrora lhe caracterizava. Como a categoria raça não se faz presente no tratamento midiático, logo ela é tomada enquanto um fator que não pode ser levado em consideração. Em consequência lógica disso, o racismo também não.

As notícias acerca de linchamentos públicos “só” fornecem, na esmagadora maioria dos casos, elementos que informam que os linchados são “homens jovens e adultos pobres, de baixa qualificação profissional e moradores de comunidades periféricas”. Assim sendo, a imagética do linchado vai ao encontro do padrão nacional de homens corporificaram as mortes no espaço público, em contrapartida às mulheres, crianças e idosos que são violentados e mortos no espaço privado, como argumenta Ariadne Lima Natal[2], de acordo com os dados do Ministério da Saúde do ano de 2008.

Todavia, por mais que haja uma indicação de que existe uma inclinação maior em se linchar, por exemplo, homens negros do que brancos, De Souza Martins afirma de modo categórico: “um negro não é linchado por ser negro”[3]. Mesmo que constatações de motivações e fatores outros tenham sido identificados, a ausência da raça não deveria ensejar uma conclusão tão certa desse tipo, primeiro, porque não existe identificação midiatizada que possa sustentá-la na criação de dados tão categóricos quanto e, segundo, porque essa falta de dados deveria despertar incerteza analítica. Afinal, os jornais não informam a raça por quê? Devido a uma impossibilidade? Por mera negligência? Ou até mesmo por uma opção ideológica que importa em invisibilidade?

Esses questionamentos deveriam se fazer presentes no momento em que uma notícia detalha (tão) bem as vítimas linchadas e apenas quanto a sua raça e/ou etnia ocorre o aparecimento de uma lacuna. Reitera-se, por quê? Esses questionamentos partem de uma premissa bastante pragmática: os homens vítimas de linchamentos não são sujeitos “desracializados”, a raça é um dos marcadores sociais da diferença que mais dão sentido às relações sociais brasileiras, sabidamente alicerçadas sob uma ordem econômico-escravocrata de colonização que perdurou por séculos, sendo o racismo “o amparo ideológico em que o país se apoiou e se apoia para se fazer viável“, segundo Flauzina[4].

A inexistência da raça nas narrativas midiáticas não implica, portanto, na inexistência automática do racismo como também fator condicionante dos linchamentos públicos. Se essa prática violenta persiste no país, se estamos diante de “formas arcaicas de punição sendo aplicadas em cenários modernos” e de uma “urbanização insuficiente e inconclusa”, na ótica martinsiana, as motivações racistas não igualmente persistiriam? Parece não ter como dissociar o racismo como componente do arcaísmo que produz os linchamentos públicos, porque, em um necessário olhar totalizante da realidade, não são só as formas punitivas arcaícas que persistem per se, as condições de vida das pessoas negras continuam imersas em desigualdades e violências diversas.

A mencionada marginalização da negritude também é territorializada, corporificando as próprias periferias dos centros urbanos, lugar em que o punitivismo em questão comprovadamente atravessa. A persistência dos linchamentos, então, pode sim ser parte do mesmo processo que localiza a negritude em tal patamar de exclusão social, entendendo tal localização como uma expressão clara de um arcaísmo modernizado que conserva um direcionamento racista, mesmo não tão escancarado, de papéis e posições sociais por meio de novas aparências.

Partindo desse pressuposto, o arcaísmo dos linchamentos atravessa ou é o mesmo arcaísmo que perfaz a marginalização da negritude, ainda mais porque a criminalização de corpos negros é imprescindível para forjar atualmente o que Rouquette[5] chama de cultura da violência. Esta seria o modo como a violência é gestada social e culturalmente, tendo as mídias de massa um importante papel nessa difusão, promovendo sociabilidades violentas e os corpos que devem ser objeto dessa violência.

A ação do ato de linchar é, assim, cognoscível e deveria romper com as explicações comuns que visam explicar as violências de massa, quais sejam, a “loucura do momento”, a patologia e o desajuste. O ódio cultivado no seio social materializa-se em quem Foucault[6] aponta como o outro marginal ou marginalizável, aquele que carrega em si mesmo o mau, a delinquência, a desobediência, que é também a personificação do porquê da existência da punição institucional na forma do encarceramento. Porque se pessoas negras são linchadas por serem vistas dessa forma em comunidades periféricas pelos próprios moradores desta, é muito provável que quem linche seja também negro. Dizer, então, que tal ato seria uma mera irracionalidade é essencializar tais sujeitos e retroalimentar o que Fanon[7] sintetiza bem isso ao dizer que sobre o negro há a imposição de um “desvio existencial”, passando a ser visto, inclusive, como “irracional”, propenso à criminalidade, sendo o feio e o próprio mau.

Se pessoas negras lincham pessoas negras tem a ver justamente com essa imposição no sentido fanoniano da coisa, em que a sociedade cultural branca marginaliza o negro e se opõe a este em uma aparência “civilizada”, enquanto na marginalidade, pobreza e escassez de recursos mínimos de existência, a reprodução da violência inter-pares é um dos poucos recursos frente a uma violência imposta bem maior, constituída no racismo. Inclusive, o surgimento do cárcere acompanha a ideia do Estado pacificador, humanista e civilizatório, que subverteu a lógica sanguinária da vingança por meio da positivação de uma ordem jurídica racional. Algo que é desconstruído por Rouland[8], que diz que “a supressão da vingança como instituição não é em absoluto sinônimo da supressão da violência”, que o monopólio da violência lícita atribuído ao Estado coexiste com a vingança, não se tratando, pois, de nenhum primitivismo derivado de sociedades não-estatais sua “persistência”.

Ainda para o autor, a única coisa que desapareceu foi o sistema vindicativo despudorado, não podendo o Direito Penal despertar a ingênua e acrítica percepção de vitória civilizatória contra a barbárie.  Pelo contrário, a ideia moderna de crime, acompanhada pelos seus processos de criminalização, contribui para a manutenção de um ambiente propício à existência de punitivismo e reações vingativas. Sendo fundante a violência colonial-racista no Brasil, o marginal foucaultiano, no âmbito do Direito Penal nacional, seria o negro.

Nesse sentido, pesquisas triviais, realizadas em ferramenta de busca online, sobre sujeitos “confundidos e linchados” mostram inúmeros resultados, dentre imagens de homens visivelmente negros de pele escura que vinculam e ilustram, pelo menos, as primeiras noticiais e o teor delas em si. Há, assim, várias matérias jornalísticas que noticiam episódios de linchamentos públicos caracterizados por uma dita confusão, ocorridos pelo país. Alguns, casos bastante emblemáticos, em que o que se tem são sujeitos que, de algum modo, assemelham-se a “estupradores”, “ladrões” e “bandidos” e, por isso, foram linchados ocasional e prontamente.

Percebe-se, rapidamente, que os quatro casos mais emblematizados são recentes, situam-se entre 2014 e 2016, em três regiões da federação, em grandes centros urbanos ou em regiões metropolitanas e têm os linchamentos públicos protagonizados por moradores dos bairros e/ou comunidades em que as impetuosidades aconteceram. As vítimas são todas homens, com idades que não chegam sequer aos trinta anos. No primeiro caso, a vítima foi confundida com o retrato falado de um sujeito que havia estuprado uma adolescente universitária de 19 anos, simplesmente, por estar caminhando pelo mesmo local em que tinha ocorrido o estupro, nas proximidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Não há foto ou informação quanto a raça ou etnia dessa vítima, entretanto, o retrato falado que serviu como base para a confusão é de um sujeito negro de pele clara.

O segundo caso, também de confusão em relação à identificação de um possível estuprador, foi motivada pela vítima estar nua andando desnorteada pelas ruas, após perder as roupas em um surto causado por transtornos psicológicos endossados pela sua condição, à época, depressiva. Durante o desorientado trajeto, o rapaz negro em sofrimento psíquico, de 28 anos, foi espancado, apedrejado e morto por uma multidão de cidadãos itanhaenses, não tendo a mesma “sorte” da vítima do primeiro caso, que mesmo igualmente espancada por muitos, inclusive tendo o corpo esfaqueado, foi hospitalizada em estado grave e, ao que tudo indica, sobreviveu.

Esses dois casos iniciais demonstram bem como o medo aliado ao ímpeto pelo combate à criminalidade ou à impunidade operam na criação de reações automáticas, súbitas. Mas tais respostas, o medo e o justiçamento, não parecem dar conta de explicar totalmente ambos os linchamentos.

Em São Paulo, um professor negro se exercitava correndo seus dez quilômetros diários. Percorria um trajeto tranquilo e familiar até começarem a espancá-lo, do nada. Uma multidão o acorrentou e iniciou a brutalização do seu corpo em praça pública. Um comerciante, que alegava ter acabado de sofrer um assalto, havia “reconhecido” o historiador como o assaltante, em seu displicente e calmo ato de correr, mesmo que não houvesse consigo a res furtiva. Acorrentado e espancando por inúmeros moradores, ele só conseguiu cessar o linchamento quando teve que provar que era professor de história do ensino fundamental, dando, a pedidos, uma aula aos seus desconhecidos espancadores sobre a Revolução Francesa. Bem, o que se sabe é que por não portar documentos e não trazer consigo seu diploma de ensino superior no momento, algo corriqueiro para qualquer bacharel desse país, ele foi o único conduzido à delegacia, ficando duas noites preso, até ser solto para responder em liberdade um processo penal por roubo simples (art. 157 do Código Penal).

O quarto caso guarda similaridades com esse terceiro, um jovem negro que trabalhava como soldador e residia no distrito de Humildes, Feira de Santana, ao ir ao encontro da namorada em um povoado em de São Gonçalo dos Campos, foi lido enquanto um assaltante e, de pronto, linchado por uma multidão de moradores. Ao ser levado ao Hospital Geral Clériston Andrade, foi recusado a ser atendido pela médica plantonista, que, segundo familiares, recusou-se devido ao fato da vítima supostamente ser (ou parecer) um bandido.

Ao contrário do primeiro caso, em que a adolescente não reconheceu a vítima como o agressor, em todos há sim a divulgação de fotos das vítimas, que se enquadram todos visivelmente na categoria negro de pele escura. Destarte, pode-se afirmar que muito provavelmente em todos os casos, e com precisão em 75% deles, a confusão se deu em relação a homens negros. Como se depreende, tendo como base os “incidentes” narrados, reitera-se que a compreensão de cultura do medo e violência endossada pelo conservadorismo vingativo não parecem ser a única explicação plausível. A raça opera fortemente no ímpeto da materialização de tal ato de violência.

As vítimas em geral do linchamento, não só nos casos em que ocorre “confusão”, são qualificadas com termos pejorativos e discriminatórios, é o que aponta o dedicado estudo realizado por Ariadne Lima Natal. Os termos “bandido”, “estuprador” e “assaltante” se repetem de um modo tão frequente e normalizante que desembocam em uma criminalização e/ou incriminação prévias das vítimas.

O próprio ato de linchar ganha uma certa conotação de legitimidade, subvertendo as vítimas dos linchamentos em culpados por excelência, narrativamente. Organiza-se, pois, sentidos e falas sobre o crime e a criminalidade, na produção de uma dinâmica no espaço urbano em que as interações sociais se dão com o intuito de organizar ou desencadear reações que possibilitem enfrentar o medo e a descrença generalizada nas intuições de ordem. Isso, como aponta Teresa Caldeira, “alimenta um círculo em que o medo é trabalhado e reproduzido, e no qual a violência é a um só tempo combatida e ampliada”[9].

No mais, assentado no problema da confusão, que importa em consequentes linchamentos, parece não ter como haver a dissociação do racismo como componente constitutivo dos linchamentos públicos, já que essa “confusão” parece só se direcionar, de modo essencialista, a homens negros, que são aqueles que se aproximam narrativamente da imagética social do que seria um “bandido”, “ladrão” e/ou “estuprador”. Entender de maneira significativa os linchamentos públicos, escancarando sua dimensão racista e colonial, é possibilitar que cesse uma, talvez só aparente, relativização que o racismo ou a violência racista recebe nas análises que versam sobre a sistemática das narrativas midiáticas acerca dessa “persistência” punitiva na pós-modernidade.

Ailton Medeiros de Souza Junior é graduando em Direito pelo Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (DCJ-UFPB); integrante da pesquisa acadêmica “Disputas acerca da vítima: conflitos e materializações nas narrativas judiciais sobre mortes de LGBT”, na qualidade de estudante financiado pelo PIBIC, orientando do Prof. Dr. Roberto Efrem Filho, e estagiário da Defensoria Pública da União em João Pessoa (DPU).

[1] DE SOUZA MARTINS, José. Linchamentos: a justiça popular no Brasil. Editora Contexto, 2015.
[2] NATAL, Ariadne Lima. 30 anos de linchamentos na região metropolitana de São Paulo-1980-2009. 30. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.
[3] Cf. DE SOUZA MARTINS, José. Linchamento, o lado sombrio da mente conservadora. 1996, p. 12.
[4] Cf. FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. O corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do estado brasileiro. 2006, p 13.
[5] ROUQUETTE, Michel-Louis. Ciência & Saúde Coletiva. Ciência & Saúde Coletiva, v. 4, p. 201-204, 1999.
[6] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Leya, 2014.
[7] FANON, Frantz; DA SILVEIRA, Renato. Pele negra, máscaras brancas. SciELO-EDUFBA, 2008.
[8] ROLAND, Norbert. Nos confins do direito: antropologia jurídica na modernidade; GALVÃO; Maria Ermantina de Almeida Prado (trad.). 2008.
[9] Cf. DO RIO CALDEIRA, Teresa Pires. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. 2000, p. 25.

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