por Eduardo NewtonEduardo Newton, Defensor Público, no Justificando
Talvez se possa ser considerada como postura apelativa, mas no lugar da fria descrição técnica elaborada por algum perito oficial ou médico, o o sucinto relato melhor traduz o sentimento de perplexidade de tudo o que ocorreu.
Mais uma audiência de custódia naquele sombrio cenário prisional – sim, no Rio de Janeiro, as centrais de audiência de custódia se encontram localizadas em cadeias, que com a presença deste preso adquiriu contornos dantescos. Porém, o assombro defensivo não foi captado por todos e somente ocorreu o prosseguimento da política do grande encarceramento.
Zé, alcunha fictícia, foi encaminhado para a Central de Audiência de Custódia em razão de suposto cometimento de roubo simples, que ensejou a sua prisão em flagrante. Diante das agressões sofridas, apresentava uma enorme dificuldade em se expressar. Em sua entrevista pessoal e reservada, afirmou ao seu defensor que foi confundido com o real roubador e por se encontrar em área dominada por milícia acabou recebendo o tratamento rigoroso daqueles que decidiram efetivar a própria concepção de tortura.
No primeiro encontro estabelecido ainda no parlatório, o vidro que divisa os espaços entre defensor e preso não conseguiu esconder a gravidade do quadro, mas somente com o contato visual próximo e direto é que foi possível ter dimensão da gravidade daquela situação. Em um país que o linchamento é visto pelo prisma da naturalidade[ii], Zé se apresentava como mais uma vítima dessa prática cujo intento é moer corpo e a própria estima.
Aliás, moer é o verbo apropriado para definir tudo aquilo que ele havia experimentado desde o seu aprisionamento promovido pelos justiceiros de plantão até a apreciação oficial e judicial de sua situação. Não se mostra possível mensurar a dor, porém o ocorrido na audiência de custódia, etapa final de todo esse processo de moedura, foi capaz de comprovar a capacidade destrutiva do silêncio.
No primeiro momento da audiência de custódia, Zé trouxe seus dados pessoais e relatou a tortura sofrida. Logo após, ao Estado-acusação foi franqueada a oportunidade de se manifestar, sendo certo que naqueles momentos de fala não foi abordada a questão da tortura, mas tão-somente se verificou o uso performático de um conceito jurídico indeterminado – a ordem pública – e, também, a instrumentalização do ser humano – para se garantir um suposto depoimento seguro da dita vítima, deveria Zé ser mantido enjaulado.
Mesmo com o esforço defensivo, que, para quem insiste em não compreender o modelo de persecução penal instituído em 05 de outubro de 1988, beira a uma histeria discursiva, Zé foi mantido preso. Os berros não foram de todo em vão, pois, ao menos, serviram para que surgisse uma promessa estatal de atendimento médico.
Muito embora tenha sido o caso mais emblemático, o silêncio quanto à tortura não é algo extraordinário nas audiências de custódia, vide o estudo realizado pela ONG Conectas Direitos Humanos[iii]. A proposta deste texto é compreender esse fenômeno à luz do funcionamento Estado brasileiro.
De um lado, não se pode ignorar o peso do passado, ainda mais quando se leva em consideração a permanência de uma mentalidade autoritária no cenário sociopolítico brasileiro. A partir de uma tolerada gradação de cidadanias[iv], a depender de quem suporta o abuso de autoridade, não se afere qualquer crítica ao ato ilegal. Há, assim, verdadeira naturalização/aceitação daquilo que formalmente é repudiado pela ordem jurídica. Um exemplo claro dissose mostra na vergonhosa relação direta estabelecida entre o CEP e a observância dos direitos e garantias fundamentais.
Caudatária dessa dinâmica autoritária, a empatia se mostra um exercício impossível de ser praticado, vez que o agente estatal simplesmente não consegue se colocar na posição do outro, daquele que é considerado como um cidadão de menor categoria do que a sua.
Não é demais frisar que pensar o conceito de empatia depende da colocação no local do outro:
“(…) empatia é a arte de se colocar no lugar do outro por meio da imaginação, compreendendo seus sentimentos e perspectivas e usando essa compreensão para guiar as próprias ações”[v].
Essa crise de empatia necessita ser articulada ainda com dois fatores. A uma, com a forma de seleção dos principais atores jurídicos, vez que, apesar da universalização formal do acesso aos cargos públicos, é sabido que os extratos sociais que suportam as práticas próprias das subcidadanias não conseguem obter o topo das carreiras jurídicas com a mesma facilidade que os conhecedores da cidadania constitucionalizada. A duas, com o fato de os ocupantes desses cargos se submeterem a processos seletivos que primam pela cultura triunfalista, o que repercute no desprezo do outro.
Mas, não só o déficit de empatia explica esse cenário de silêncio, Zygmunt Bauman e Leonidas Donskis, ao examinarem a dita modernidade líquida, voltam seus olhares para o fato de o sofrimento alheio ser objeto do fenômeno da adiaforização da conduta humana:
“‘Adiaphoron’ (plural ‘adiaphora’) em grego significa algo desimportante. (…) um ‘adiaphoron’ é uma saída temporária de nossa própria zona de sensibilidade; a capacidade de não reagir, ou de reagir como se algo estivesse acontecendo não com pessoas, mas com objetos físicos, coisas, e não seres humanos”[vi]
O mal suportado por um outro desconhecido é então considerado como algo indiferente, sendo certo que em um cenário de cegueira moral, a desgraça alheia somente é vista quando pode ser objeto de consumo.
Aliás, esse dado pode perfeitamente ser relacionado com o pensamento de Rubens Casara sobre o Estado Pós-moderno[vii]. Neste cenário, incumbe ao agente estatal somente intervir para a maximização de lucros. No caso específico do sistema de justiça criminal, cabe a função de segregar os que não possuem a capacidade de participar do mercado, isto é, aqueles que não se mostram capazes de consumir. Se a dor alheia não servir como mercadoria, resta o silêncio.
Outrora, subsistia uma ligação entre o cárcere e a fábrica. Os corpos insubmissos para uma lógica de produção necessitavam ser domados e a docilização[viii] se efetivaria com a experiência da prisão. Ressocializar, portanto, possuía um sentido de adestramento para a sociedade capitalista. Hodiernamente, essa preocupação não mais existe e o sistema prisional adquiriu a função exclusiva de depósito de quem não se enquadra na lógica do mercado, de quem não é consumidor. Logo, o corpo moído de mais um preso não se mostra objeto de preocupação por parte de quem integra o chamado sistema de justiça criminal.
A falta de empatia e o fenômeno da adiaforização da conduta humana permitem então desvelar as razões para os silêncios observados nas audiências de custódia. Com Zé não foi diferente. É inadmissível cogitar que os calados possam um dia realizar autocrítica e pedir escusas públicas. Todavia, com a crítica à razão neoliberal se mostrará possível questionar esse cenário de insensibilidade. Em um cenário em que o conservadorismo avança, não resta dúvida de que a censura à visão de mundo neoliberal será submetida aos duros questionamentos. Quem sabe uma saída nos seja fornecida pela antiguidade clássica para enfrentar esses silêncios destruidores, mais especificamente a lição do poeta romano Terêncio: Sou humano, nada do que é humano me é estranho.
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