por Leoni Alves Garcia em CEBs do Brasil
Ao completar 91 anos, no dia 16 de fevereiro de 2019, queremos homenagear a Dom Pedro Casaldáliga, pastor, profeta e poeta, que vive e testemunha com riscos de vida tanto a pobreza como a libertação dos mais oprimidos: os indígenas e os camponeses, expulsos pelo latifúndio em terras de São Felix do Araguaia matogrossense.
Que essa carta sirva de inspiração nesses tempos de retirada de direitos.
Que nosso presente seja seguir seus ensinamentos na fidelidade aos pequenos. VIVA A ESPERANÇA! VIVA PEDRO CASALDÁLIGA!!
Carta de Dom Pela de Pedro Casaldáliga ao Papa João Paulo II
Querido Papa João Paulo II, irmão em Jesus Cristo e Pastor da nossa Igreja.
Há muito tempo queria escrever ao senhor esta carta e há muito a venho pensando e colocando-a em oração.
Gostaria que fosse um colóquio fraterno – na sinceridade humana e na liberdade do Espírito – como também um gesto de serviço de um bispo para com o bispo de Roma, que é Pedro, para a minha fé, para minha co-responsabilidade eclesial e para minha colegialidade apostólica.
Há 18 anos estou no Brasil, para onde vim voluntariamente como missionário. Nunca mais regressei ao meu país natal, a Espanha, nem por ocasião da morte da minha mãe. Nunca tirei umas férias nesse tempo todo. Não saí do Brasil em 17 anos. Nestes 18 anos vivi e trabalhei no nordeste do Estado do Mato Grosso como o primeiro sacerdote a morar de maneira permanente nesta região. Já são 15 anos que sou Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia.
A região da Prelazia está situada na Amazônia Legal brasileira e abrange uma área de 150.000 quilômetros quadrados. Não conta até hoje com um palmo de estrada asfaltada. Só recentemente foi instalado o serviço telefônico. Frequentemente a região fica isolada ou a comunicação torna-se precária por causa das chuvas e inundações que interrompem as estradas. É área de latifúndios, nacionais e multinacionais, com fazendas agropecuárias de centenas de milhares de hectares, com os empregados vivendo frequentemente em regime de violência e semi-escravidão. Venho acompanhando a dramática vida dos indígenas, dos posseiros (lavradores sem título da terra) e dos peões (trabalhadores braçais do latifúndio). Toda a população em geral, dentro da Prelazia, tem sido forçado a viver precariamente, sem serviços adequados de educação, saúde, transporte, moradia, segurança jurídica e sobretudo sem terra garantida para trabalhar.
Sob a ditadura militar, o governo tentou, por cinco vezes, a minha expulsão do país. Quatro vezes foi cercada a Prelazia toda por operações militares de controle e de pressão. A minha vida e a vida de vários sacerdotes, agentes de pastoral da Prelazia têm sido ameaçadas e colocadas publicamente a preço. Em várias ocasiões, esses sacerdotes, agentes de pastoral e eu fomos presos; vários deles também torturados. O padre Francisco Jentel foi preso, maltratado, condenado a 10 anos de prisão, posteriormente expulso do Brasil, vindo a morrer exilado, longe de seu país de missão. O arquivo da Prelazia foi violado e saqueado pelo exército e pela polícia. O boletim da Prelazia foi editado de maneira falsificada pelos órgãos de repressão do regime e assim divulgado pela grande imprensa, para servir de peça de acusação contra Prelazia. Ainda neste momento três agentes pastoral acharam-se submetidos a processos judiciais, sob acusações falsas. Eu pessoalmente tive de presenciar mortes violentas, como o padre jesuíta João Bosco Penido Burnier, assassinado a meu lado, pela polícia, quando os dois nos apresentamos diante da delegacia-prisão de Ribeirão Bonito para reclamar oficialmente contra as torturas a que estavam sendo submetidas duas mulheres, lavradoras, mães de família e injustamente presas.
Ao longo desses anos todos multiplicaram-se as incompreensões e calúnias dos grandes proprietários de terras, nenhum dos quais vive na região, e de outros poderosos do país e do exterior. Também dentro da própria Igreja surgiram algumas incompreensões de irmãos que desconhecem a realidade do povo e da pastoral nestas regiões afastadas e violentas, onde o povo, com frequência, tem por ele apenas a voz daquela Igreja que tenta se colocar a seu serviço.
Além desses sofrimentos vividos no âmbito da Prelazia, como responsável nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e como membro participante do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), tocou-me acompanhar de perto as tribulações e até a morte de tantos indígenas, lavradores, agentes de pastoral e de pessoas comprometidas com a causa desses irmãos, proibidos, pela ganância do capital, até de sobreviverem. Entre esses encontra-se o índio Marçal, guarani, que saudou pessoalmente o senhor, em Manaus, em nome dos povos indígenas do Brasil.
O Deus vivo, o Pai de Jesus, é quem vai nos julgar. Deixe-me, entretanto, abrir meu coração para o seu coração de irmão e de pastor. Viver nessas circunstâncias extremas, ser poeta e escrever, manter contatos com pessoas e ambientes de comunicação ou de fronteira (pela idade, pela ideologia, pela alteridade cultural, pela situação social ou pelos serviços de emergência que prestam) pode levar a gestos e posturas menos comuns e por vezes incômodos para a sociedade estabelecida.
Como irmão e como papa que o senhor é para mim, peço-lhe que aceite a intenção sincera e a vontade apaixonadamente cristã e eclesial, tanto desta carta como das minhas atitudes.
O Pai concedeu-me a graça de não deixar nunca a oração, ao longo desta vida mais ou menos agitada. Preservou-me de tentações maiores na fé e na vida consagrada e possibilitou-me contar sempre com a força dos irmãos, numa comunhão eclesial, rica de encontros, estudo e ajudas. Certamente por isso creio que não me afastei do caminho de Jesus e espero, com isso, seguir por esse caminho, que é a verdade e a vida, até o fim.
Lamento incomodá-lo com a leitura desta longa carta, quando já tantos serviços e preocupações pesam sobre o senhor.
Duas cartas do Cardeal Gantin, Prefeito da Congregação dos Bispos, e um comunicado da Nunciatura que recentemente recebi levaram-me finalmente a escrever-lhe esta carta. Essas três comunicações urgiam minha visita ad limina, interpelavam aspectos da pastoral da Prelazia e censuraram minha ida à América Central.
Sinto-me um pouco pequeno e como que distante nesta Amazônia brasileira tão diferente e nesta América Latina tão convulsionada e frequentemente incompreendida.
Achei necessário fazer-me preceder por esta carta. Pareceu-me que só o contato sossegadamente pessoal entre nós dois, através de um escrito pensado e claro, me daria a possibilidade de aproximar-me do senhor.
A outra maneira maior de nos encontrarmos já está garantida: rezo pelo senhor, todos os dias, querido irmão João Paulo.
Não tome como impertinência a alusão que farei a temas, situações e práticas secularmente controvertidas na Igreja ou até contestadas, sobretudo hoje, quando o espírito crítico e o pluralismo perpassam também fortemente a vida eclesial. Abordar novamente esses assuntos incômodos, falando com o Papa, é para mim expressar a co-responsabilidade em relação à voz de milhões de irmãos católicos – de muitos bispos também – e de irmãos não-católicos, evangélicos, de outras religiões, humanos. Como bispo da Igreja Católica, posso e devo dar à nossa Igreja essa contribuição. Pensar em voz alta a minha fé e exercer, com liberdade da família, o múnus da colegialidade co-responsável. Calar, deixar correr, com certo fatalismo, a força de estruturas seculares seria bem mais cômodo. Não penso, porém, que fosse mais cristão, nem sequer mais humano.
Assim como falando, exigindo reformas, tomando posições novas, pode-se causar “escândalo” a irmãos que vivem em situações mais tranquilas ou menos críticas, assim também podemos causar “escândalo” em muitos irmãos, situados em outros contextos sociais ou culturais, mais aberto à crítica e a mudança da Igreja – sempre uma e “semper renovanda” – quando calamos ou aceitamos a rotina ou tomamos medidas unívocas, indiscriminadamente.
Sem “se conformar com este mundo”, a Igreja de Jesus, para ser fiel ao Evangelho do Reino, deve estar atento “aos sinais dos tempos” e dos lugares e anunciar a Palavra, num tom cultural e histórico e com um testemunho de vida e de prática tal que os homens e mulheres de cada tempo e lugar possam entender essa Palavra e se vejam estimulados a aceitá-la.
No que se refere ao campo social concretamente, não podemos dizer, com muita verdade, que já fizemos a opção pelos pobres. Em primeiro lugar, porque não compartilhamos a pobreza real por eles experimentada, em nossa vida e em nossas instituições, e, em segundo lugar, porque não agimos, em face da “riqueza da iniquidade”, com aquela liberdade e firmeza empregadas pelo Senhor. A opção pelos pobres, que não excluirá a pessoa dos ricos – porquanto a salvação é oferecida a todos e a todos se deve o ministério da Igreja – exclui, sim, o modo de vida dos ricos, “insulto à miséria dos pobres”, e seu sistema de acumulação e de privilégio, que necessariamente espolia e marginaliza a imensa maioria da família humana, povos e continentes inteiros.
Nã fiz a visita ad limina, mesmo depois de receber, como outros, um convite da Congregação dos Bispos, relembrando essa praxe. Eu queria, e quero, ajudar a Sé Apostólica a rever a maneira dessa visita. Ouço da parte de muitos bispos que a fazem uma crítica, pois, embora reconhecendo que ela propicia um contato com os dicastérios romanos e um encontro cordial com o Papa, ela se mostra incapaz de gerar um verdadeiro intercâmbio de colegialidade apostólica dos pastores das Igrejas particulares com o pastor da Igreja universal. Faz-se uma grande despesa, criam-se contatos, cumpre-se uma tradição. Cumpre-se, porém, a tradição de “videre Petrum” e de ajudar Pedro a ver toda a Igreja? Hoje, não teria a Igreja outros modos mais eficazes de intercambiar, de criar contatos, de avaliar, de exprimir a comunhão dos pastores e de suas igrejas com a igreja universal e mais precisamente o bispo de Roma?
Nunca pretenderia supor no papa um conhecimento detalhado das Igrejas particulares ou pedir a ele soluções concretas para a sua pastoral. Para isso estamos os respectivos Pastores, Ministros e Conselhos Pastorais de cada Igreja. Para isso estão também as Conferências Episcopais, que, no meu entender e no entender de muitos, não estão sendo devidamente valorizadas e são até preteridas ou injustamente marcadas por certas atitudes de algumas instâncias da Cúria Romana. Se as Conferências Episcopais não são “teológicas” ou “apostólicas” como tais poderiam não existir. Sem elas caminhou a Igreja. Tampouco são, em si, “apostólicas” ou “teológicas”, as cúrias, nem mesmo a Cúria Romana: Pedro presidiu e regeu a Igreja, de modo diferente, nas diversas épocas.
O Papa tem necessidade de um corpo de auxiliares, embora sempre mais simples e participativo, como dele também necessitam os bispos todos da Igreja. Entretanto, irmão João Paulo, para muitos de nós, certas estruturas da Cúria não respondem ao testemunho de simplicidade evangélica e da comunhão fraterna que o Senhor e o mundo de nós reclamam; nem traduzem em suas atitudes, às vezes centralizadoras e impositivas, uma catolicidade verdadeiramente universal, nem sempre respeitam as exigências de uma co-responsabilidade adulta; nem mesmo, por vezes, os direitos básicos da pessoa humana ou dos diferentes povos. Nem faltam, com frequência, em setores da Cúria Romana, preconceitos, atenção unilateral para as informações e até posturas, mais ou menos inconscientes, de etnocentrismo cultural europeu em face da América Latina, da África e da Ásia.
Ninguém pode negar, com isenção de ânimo, que a mulher continua a ser fortemente marginalizada na Igreja: na legislação canônica, na liturgia, nos ministérios, na estrutura eclesiástica. Parar uma fé e uma comunidade daquela Boa Nova, que já não discrimina entre “judeu e grego, livre e escravo, homem e mulher”, essa discriminação da mulher na Igreja nunca poderá ser justificada. Tradições culturais masculinizantes, que não podem anular a novidade do Evangelho, explicarão talvez o passado; não podem justificar o presente, nem menos ainda o futuro imediato.
Outro ponto delicado em si mesmo e muito sensível para o seu coração, o irmão João Paulo, é o celibato. Eu, pessoalmente, nunca duvidei do seu valor evangélico e de sua necessidade para a plenitude da vida eclesial, como um carisma de serviço ao Reino e como testemunho da gloriosa condição futura. Penso, entretanto, que não estamos sendo compreensivos nem justos com esses milhares de sacerdotes, muitos deles em uma situação dramática, que aceitaram o celibato compulsoriamente como exigência, atualmente vinculante para o ministério sacerdotal na Igreja latina. Posteriormente, por causa dessa exigência não vitalmente assumida, tiveram que deixar o ministério, não puderam regularizar sua vida, nem dentro da Igreja, nem, por vezes, diante da sociedade.
O Colégio Cardinalício é privilegiada, às vezes, com poderes e funções que dificilmente se coadunam com os direitos anteriores e com as funções mais Eclesiasticamente conaturais do Colégio apostólico dos Bispos como tal.
Das Nunciaturas tenho eu, pessoalmente, uma triste experiência. O senhor conhecer melhor do que eu a persistente reclamação de Conferências Episcopais, de bispos particulares, de presbitérios, de grandes setores da Igreja, em face de uma instituição tão marcadamente diplomática na sociedade e, com frequência, paralela em suas atuações junto dos episcopados.
João Paulo, irmão, permita-me ainda uma palavra de crítica fraterna ao próprio Papa. Para mais tradicionais que sejam os títulos “Santíssimo Padre”, “Sua Santidade” … – como outros títulos eclesiásticos de “Eminentíssimo”, “Excelentíssimo” -, resultam evidentemente pouco evangélicos e até extravagantes, humanamente falando. “Não se façam chamar de pais ou mestre”, diz o Senhor. Como seria mais evangélico – e também mais acessível à sensibilidade atual – simplificar a indumentária, gestos, distâncias, dentro da nossa Igreja.
Penso ainda que seria muito apostólico que o senhor procurasse uma avaliação, suficientemente livre e participada, de suas viagens, tão generosas, e até heroicas em muitos aspectos, porém tão contestadas e, no meu entender, nem sempre sem motivos. Não são elas conflitivas para o ecumenismo – testamento de Jesus, pedindo ao Pai que sempre fôssemos um -, para a liberdade religiosa na vida pública pluralista? Não exigem essas viagens grandes despesas das Igrejas e dos Estados, revestindo-se de uma certa prepotência e de privilégios cívico-políticos com relação à Igreja Católica, na pessoa do Papa, e se tornam irritantes para os outros?
Por que não reexaminar, à luz da fé, a favor de Ecumenismo, para dar testemunho ao mundo, a condição de Estado com que o Vaticano se apresenta, investindo a pessoa do Papa de uma dimensão explicitamente política, que prejudica a liberdade e a transparência do seu testemunho como pastor universal da Igreja?
Por que não se decidir, com liberdade evangélica e com o realismo também, por uma profunda renovação da Cúria Romana?
Sei do sofrimento do senhor em sua viagem à Nicarágua. Mesmo assim, sinto-me no dever de confiar-lhe a impressão – que outros muitos compartilham – de que seus assessores e a atitude do senhor não contribuíram para que essa viagem, extremamente crítica e necessária por outra parte, fosse mais feliz e sobretudo mais evangelizadora. Ficou uma ferida no coração de muitos nicaraguenses e de muitos latino-americanos, como ficou no coração do senhor.
No ano passado, estive na Nicarágua. Foi minha primeira viagem fora do Brasil depois de dezessete anos de permanência neste país. Pela amizade que eu tenho há tempos com muitos nicaraguenses, por contatos pessoais ou carta, senti que deveria fazer-me presente, como pessoa humana e como bispo da Igreja, numa hora de agressão político-militar gravíssima e de profundo sofrimento interno.
Não pretendi substituir o episcopado local, nem subestimá-lo. Achei, entretanto, que poderia e até deveria ajudar aquele povo e aquela Igreja. Assim o escrevi aos senhores bispos da Nicarágua, tão logo ali cheguei. Tentei conversar pessoalmente com alguns deles, mas não fui recebido. A hierarquia nicaraguense está abertamente de um lado; de outro, há milhares de cristãos, aos quais a Igreja também é devida.
Penso sinceramente que a nossa Igreja – eu me sinto Igreja da Nicarágua também, como cristão e como bispo da Igreja – não está dando oficialmente, naquele sofrimento país e com repercussões negativas para toda a América Central, o Caribe e a América Latina, o testemunho que deveria dar: condenando a agressão, defendendo a autodeterminação daqueles povos, consolando as mães dos caídos e celebrando, na esperança, a morte violenta de tantos irmãos, católicos em sua maioria.
Só com o socialismo ou com o sandinismo, não pode a Igreja dialogar criticamente, sim, como criticamente deve dialogar com a realidade humana? Poderá a Igreja deixar de dialogar com a história? Dialogou com o Império Romano, com o feudalismo e vem dialogando à vontade com a burguesia e com o capitalismo, muitas vezes sem críticas, como a avaliação histórica posterior veio a reconhecer. Não dialoga com a administração Reagan? O império norte-americano merece mais consideração da Igreja do que o processo doloroso com que a pequena Nicarágua pretende ser ela, por fim, arriscando e até cometendo erros, mas sendo ela?
O perigo do comunismo não justificará nossa omissão ou nossa conivência com o capitalismo. Essa omissão ou conivência poderá “justificar” dramaticamente, um dia, a revolta, a indiferença religiosa e até mesmo o ateísmo de muitos, sobretudo entre os militantes e nas novas gerações. A credibilidade da Igreja – e do Evangelho e do próprio Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo – depende, em grande parte, do nosso ministério crítico, sim, porém comprometido com a causa dos pobres e com os processos da libertação dos povos secularmente dominados pelos sucessivos impérios e oligarquias.
O senhor, como polonês, está em uma condições muito pessoais de entender esses processos. Sua Polónia natal, tão sofrida e forte, irmão João Paulo, tantas vezes invadida e ocupada, privada de sua autonomia e ameaçada em sua fé por impérios vizinhos (Prússia, Alemanha nazista, Rússia, Império Austro-Húngaro) é irmã gêmea da América Central e do Caribe, tantas vezes ocupados pelo Império do Norte. Os Estados Unidos invadiram a Nicarágua em 1898 e depois voltaram a ocupá-la com seus Marines 1909-1933, deixando em seguida uma ditadura que durou até 1979. O Haiti estave sob ocupação de 1915 a 1934. Porto Rico continua ocupado hoje, desde 1902. Cuba sofreu várias vezes invasões e ocupações, assim como os outros países da região, especialmente o Panamá, Honduras e a República Dominicana. Mais recentemente, Granada sofreu o mesmo destino. Os mesmo Estados Unidos exportam para esses países suas seitas que dividem internamente o povo e ameaçam a fé católica e a fé de outras igrejas evangélicas aí estabelecidas.
Sei também de suas preocupações apostólicas a respeito da nossa Teologia da Libertação, das Comunidades Cristãs no Meio Popular, dos nossos teólogos, dos encontros, das publicações e de outras manifestações de vitalidade da Igreja na América Latina, de outras igrejas do Terceiro Mundo e de alguns setores da Igreja na Europa e na América do Norte. Seria ignorar sua missão de Pastor universal pretender que o senhor não se interessasse e até se preocupasse com todo essa movimentação eclesial, sobretudo quando a América Latina, concretamente, representa quase a metade dos fiéis da Igreja Católica.
Outra vez, contudo, peço-lhe desculpas para expressar uma palavra sentida, com o modo como vêm sendo tratados pela Cúria Romana, a nossa Teologia da Libertação e o seus teólogos, certas instituições eclesiásticas – como a própria CNBB, em determinadas ocasiões -, iniciativas das nossas Igrejas e algumas sofridas comunidades deste Continente, assim como seus animadores.
Diante de Deus, posso dar-lhe o testemunho dos agentes de pastoral e das comunidades com as quais estabeleci contato na Nicarágua. Nunca pretenderam ser uma Igreja “paralela”. Não desconhecem a Hierarquia em suas legítimas funções e têm consciência de serem Igreja, manifestando sincera vontade de nela permanecerem. Por que não pensar que algumas causas desse tipo de conflitos pastoral possam provir da hierarquia também? Nós, com frequência, membros da hierarquia, não reconhecemos, de fato, os leigos como adultos e co-responsáveis na Igreja, ou queremos impor ideologias e maneiras pessoais, exigindo uniformidade ou fechando-nos no centralismo.
Acabo de receber a última carta do Cardeal Gantin, prefeito da Congregação para os Bispos. Nela, o senhor Cardeal, entre outros admoestações, recorda-me agora a visita apostólica que recebi e recebeu a Prelazia de São Félix do Araguaia, em 1977. Quero apenas ao senhor que essa visita foi provocada por denúncias caluniosas de um irmão do episcopado; que o visitador apostólico passou apenas quatro dias em São Felix, não visitando nenhuma comunidade, só aceitando conversar com pouquíssimas pessoas e ver o Arquivo da Prelazia, depois de termos insistido que ele fizesse. Nem ele, nem a Nunciatura, nem a Santa Sé, mesmo tendo eu solicitado, jamais me comunicaram as conclusões dessa visita.
Quero, finalmente, reafirmar-lhe, querido irmão em Cristo e Papa, a certeza da minha comunhão e a vontade prosseguir com a Igreja de Jesus, no serviço do Reino. Deixo a seu critério de Pedro da nossa Igreja a tomar a decisão que julgar oportuna sobre mim, bispo da Igreja também. Não quero criar problemas desnecessários. Quero ajudar, responsável e colegialmente, a levar adiante a missão evangelizadora da Igreja, particularmente aqui no Brasil e na América Latina. Porque acredito na perene atualidade do Evangelho e na presença sempre libertadora do Senhor Ressuscitado, quero acreditar também na juventude de sua Igreja.
Se senhor considera oportuno, pode me fazer indicar uma data apropriada para que eu vá visitá-lo pessoalmente.
Confio em sua oração de irmão e de pontífice. Deixo nas mãos de Maria, Mãe de Jesus, o desafio desta hora. Reitero ao senhor minha comunhão de irmão em Jesus Cristo e, com o senhor, minha condição de servidor de sua Igreja de Jesus.
Com a sua bênção apostólica,
Pedro Casaldáliga ,
Bispo de São Félix do Araguaia, MT-Brasil
22 de fevereiro de 1986
Festa da Cátedra de Pedro
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