Representações, raça e minoridade no filme Temporada, dirigido pelo mineiro André Novais de Oliveira, grande vencedor do Festival de Brasília em 2018
Imagem: cartaz do filme Temporada.
Por Marco Aurélio da Conceição Correa no Justificando
Protagonizando a vida comum
O filme Temporada (2018) dirigido pelo mineiro André Novais de Oliveira foi o grande vencedor do Festival de Brasília em 2018. O longa-metragem venceu nas categorias de Melhor Filme da Mostra Competitiva, Melhor direção de arte (Diogo Hayashi), Melhor fotografia (Wilsa Esser), Melhor atriz (Grace Passô) e Melhor ator coadjuvante (Russo Apr). Com todas estas conquistas, a premiação de Temporada se torna mais um acontecimento marcante para o cinema negro brasileiro, que vem a anos lutando por espaços nas telas de cinema transformando o tradicional Festival de Brasília em tensa arena de disputas e conquistas, como foi o caso de Café com Canela (2017) no ano anterior.
Por ter alcançados tais marcas pode-se esperar que Temporada se trata de um filme altamente engajado ou militante, devido ao acirrado cenário político brasileiro atual, ou então um filme altamente técnico e cheio de orçamento, o que não é verdade. Sem diminuir a qualidade técnica estética ou política do filme, Temporada se trata de um filme consideravelmente simples, como podemos ver por sua sinopse: Juliana (Grace Passô) se muda do interior de Minas para Contagem e começa seu novo emprego no combate de endemias na região. O filme retrata as transformações na vida de Juliana, com a rotina do novo emprego, as relações casuais com os novos colegas de trabalho, as mudanças nas relações familiares e os acontecimentos corriqueiros de seu cotidiano em Contagem, principalmente os ocorridos em seu inusitado trabalho de visitar e inspecionar as residências da cidade.
A poética do filme está exatamente nisso, em enfatizar os cotidianos de pessoas que normalmente não seriam protagonistas de um filme vencedor de festivais, não somente ao destacar os acontecimentos das vidas destes protagonistas desconhecidos, mas também ao retratá-las com uma sensibilidade e vivacidade estética única. Esta é a vitória cinematográfica e artística de Novais e toda sua equipe: conseguirem capturar de forma natural narrativas comuns do cotidiano com os filtros poéticos do cinema. São narrativas habituais para muitos, mas nada usuais ao protagonismo no cinema. Essa é a grande virada de Temporada, mostrar o protagonismo daqueles que foram impedidos dele na história do cinema brasileiro. Não é por acaso que a produtora que realiza Temporada se chama Filmes de Plástico. Apesar do que este nome pode sugerir em um primeiro momento, seus filmes não são meros produtos de plástico, mas sim filmes que lidam com a plasticidade, com a efemeridade da vida ordinária.
Táticas do cotidiano nas ações da democracia
Os cotidianos são espaços e tempos de criação e resistência, apesar de serem considerados momentos do ordinário, do comum. São nos cotidianos que se criam as táticas de organização contra as estratégias de dominação simbólica e física, estratégias de dominação material como as desigualdades sociais e econômicas e de dominação simbólica, no campo político e semântico da criação de hierarquias identitárias. Os cotidianos se inventam com mil maneiras “não autorizadas”. A beleza está nas táticas dos personagens de Temporada que se reinventam constantemente para viverem suas vidas, como na tática de Novais e seus parceiros em poetizar a vida de Contagem nas telas do cinema. Sobre as táticas, aponta Michel de Certeau, estas são:
“Mil maneiras de jogar/desfazer o jogo do outro, ou seja, o espaço instituído por outros, caracterizam a atividade sutil, tenaz, resistente, de grupos que por não ter um próprio, devem desembaraçar-se em uma rede de forças e de representações estabelecidas. Tem que ‘fazer com’. Nesses estratagemas de combatentes existe uma arte dos golpes, dos lances, um prazer em alterar as regras de espaço opressor. Destreza tática e alegria de uma tecnicidade” (1998, p. 79) [1].
A ambição moderna do cinema em sua concepção foi “capturar o real” através de suas lentes, tentando, assim, atingir a perfeição quase científica e positivista, com as lentes que registravam as imagens em movimento no final do século XIX. O cinema documental e de registro logo deu espaço as pretensões discursivas de montagem dos cinemas nas primeiras décadas do século XX, se consolidando com o projeto político-econômico da ideologia liberalista do American Way of Life. Com este movimento, o cinema passou gradativamente da tentativa da potência do real para a potência do falso.
A indústria cinematográfica de Hollywood foi o ápice desse movimento ao desenvolver um modelo estético que padronizou os referenciais do cinema e sua montagem, fantasiando as relações sociais, espetacularizando a realidade, criando clichês e estereótipos (GUÉRON, 2011) [2]. Não vivemos em uma sociedade das imagens, mas sim dos clichês (DELEUZE, 2013) [3]. Estes que aprisionam cada vez mais um grupo seleto de personagens conceituais ao campo da padronização e da estereotipação.
Temporada rompe exatamente com esta concepção sensório motora do clichê e do estereotipo. Não que ele seja uma quebra total com o cânone das representações da historiografia do cinema, mas este filme se torna um marco exatamente por sua qualidade e por suas contribuições. Ele traz a poesia do inesperado, esperamos constantemente que aconteça algo “marcante” no filme, algo que balance o enredo, o que acontece, mas não do jeito que esperamos. Não sabemos por completo do passado de Juliana e de seus colegas de trabalho, mas pequenos detalhes que nos dão são pontuais, como a inesperada história da gravidez perdida de Juliana, ou então a surpresa da paternidade de Russão após três anos de nascimento de seu filho.
O filme segue a ideia de um cinema menor, não no sentido qualitativo, mas na ideia de minoridade, no conceito de Deleuze, como ruptura com uma noção maior de cinema como espetáculo, da mesma forma que as minorias, também representadas neste filme, na verdade são maiorias na sociedade brasileira. Esta relação qualitativa e quantitativa,
“Antes, porém, de ser caracterizada por uma expressão numérica, uma maioria é um padrão, um ‘Alguém’ onde o senso comum aprisionou determinadas singularidades/acontecimentos e no qual os indivíduos devem-se enquadrar através da exclusão ou submissão de outras singularidades. Contudo, como a base da maioria quantitativa é um padrão restrito, os indivíduos componentes dessa maioria tornam-se, por uma razão ou outra, mal acomodados a ela sempre que algumas dessas singularidades que não cabem no padrão estabelecido escapam. Quer dizer, toda maioria freme com a agitação em que essas singularidades/acontecimentos aprisionados fervilham” (CARDOSO JR, 1999, p. 23) [4].
Onde, na democracia brasileira, apesar da ser minoritariamente política, a população marginalizada negra, indígena, feminina, LGBT se cansa da opressão diária e se agita em coletivo para começar a desequilibrar este status quo antidemocrático.
“São as minorias em seus movimentos de fuga que traçam os devires e as fronteiras do político em um campo social. São elas, enfim, que participam da lógica do acontecimento, contra-efetuando as oposições da linha segmentada” (CARDOSO JR, 1999, p. 28) [5].
A poética e a política de narrar o que não é narrado
O inusitado é uma constante no filme. O trabalho com visitas à domicílios para o controle de endemias pode parecer chato e tedioso, mas proporciona os encontros marcantes do enredo. Não só pelo inesperado como um encontro com algum escorpião ou cobra nas visitais aos quintais das residências, mas sim nos encontros sensíveis, como na visita à laje de um morador que ao conversar “em off ” com Juliana, conta um pouco sobre a vida de outros habitantes da região e sobre a paisagem do local. O cafezinho é também um inevitável momento nas visitas de Juliana. Apesar da simplicidade deste acontecimento, no encontro entre Juliana e uma senhora de idade, o momento do cafezinho rende uma conversa, ou quase que um monólogo, de uma senhora que encontra um ouvido amigo na companhia da estranha visita, que se perde nas velhas fotografias de rostos cujos nomes nunca conheceremos, mas que são uma marca do esquecimento ou então da memória de rostos de peles negras que não são lembrados nos álbuns de fotografia ou nas telas de cinema. Seria esta cena uma possível homenagem ao filme Travessia (2017) de Safira Moreira?
A narrativa do filme é tecida pelas vivências dos moradores da cidade de Contagem e as próprias memórias do diretor André evocam esse senso de pertencimento, de lugar de fala. Não que o mero pertencimento a um local, ou as próprias memórias dele, possibilitem uma criação mais original, de essência, mas ter vivido e compartilhado situações parecidas dão um tom mais sensível e contundente à história contada. Não também que um cineasta negro tenha que realizar sempre um filme altamente engajado para contar uma história importante para o cinema negro. É possível fazer muito e bem com muito pouco.
O ato de contar histórias é uma ação do pertencer em muitas sociedades tradicionais. No contexto brasileiro, muitas comunidades reelaboram estas práticas através de nossas influências africanas e indígenas. No caso do continente africano, era nos cotidianos onde se aprendia e onde se perpassavam os valores e costumes de uma comunidade. Aprendia-se vivendo com os outros. A figura do Griot, da oralidade, é muito cara a essa tradição. O Griot era aquele que contava, cantava e recontava os acontecimentos do passado como forma de dar continuidade às tradições culturais de uma sociedade.
“A tradição oral é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos. Pode parecer caótica àqueles que não lhe descortinam o segredo e desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas. Dentro da tradição oral, na verdade, o espiritual e o material não estão dissociados. Ao passar do esotérico para o exotérico, a tradição oral consegue colocar-se ao alcance dos homens, falar-lhes de acordo com o entendimento humano, revelar-se de acordo com as aptidões humanas. Ela é ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história, divertimento e recreação, uma vez que todo pormenor sempre nos permite remontar à Unidade primordial” (HAMPATÉ BÂ, 2010 p. 169) [6].
A palavra, as conversas e os diálogos são o que movimentam o filme. Juliana não conta muito sobre sua vida, mas aos poucos vai se abrindo, aos poucos que vai se adaptando à nova realidade. Ao contar para sua colega de trabalho que ficou anos de sua juventude sem falar, ela começa a rememorar o seu passado. O silêncio é as vezes a única alternativa para aqueles que não tem a oportunidade de falar. A vontade de se expressar e ser ouvido é uma luta para grande parte das pessoas que não são representadas pelo discurso hegemônico. A quebra do silêncio, tanto da personagem Juliana, como no conjunto de Temporada, é romper com a máscara que aprisiona os silenciados, do mesmo jeito que aponta Grada Kilomba: “Quem pode falar? O que acontece quando falamos? E sobre o que podemos falar?” (2010, p. 172) [7]
Na decisão da troca de penteado percebemos mais uma sutil colocação de Temporada, pois ao optar pelo cabelo natural, com discretas tranças na lateral, Juliana se emancipa. Aceitar a mudança, usar o crespo, é uma atitude de transformação, é uma opção estética e política. Juliana cada vez mais se emancipa e se permite, decide nem ouvir o áudio de whatsapp de seu marido desaparecido, aceita os convites dos amigos, se permite fazer sexo com um conhecido. As transformações vão fazendo parte do ritmo de sua vida.
É através dos pequenos detalhes existentes no filme, essas pequenas doses de posicionamento político, que se encontra a subversão de Temporada. Ao sutilmente inserir a discussão da questão racial no diálogo entre colegas de trabalho. No protagonismo de uma mulher negra. Na presença de corpos fora do padrão estético. Da possibilidade de felicidade e reinvenção apesar de todas as dificuldades da vida comum.
É desta forma que o cinema negro brasileiro vem vencendo, se levantando apesar de todas as rasteiras do sistema, das discriminações embrenhadas na sociedade e da desconsideração da grande crítica. Mesmo assim temos conquistas nestes espaços como no Festival de Brasília, com a premiação de Temporada e de muitos outros filmes dentro da categoria em homenagem à Zózimo Bulbul com um grupo de prêmios homônimos (melhor longa, melhor curta e melhor filme universitário). Ou então, no caso do International Film Festival Rotterdam com a mostra Soul in the Eye em homenagem à Zózimo, exibindo diversos filmes de cineastas negros brasileiros, inclusive Temporada.
Temporada é uma história de mudança, de transformação e continuidade. É a sutileza de seu enredo que captura as emoções de seus expectadores. É um filme com posicionamento político, crítico e contrário ao racismo, mesmo sem levantar bandeiras, pois é exatamente por sua morosidade e amenidade que o filme consegue ser tão cativante é contundente. As narrativas do cotidiano nos evocam, reelaboram e recontam histórias conhecidas, mas que nunca nos foram contadas no cinema.
Marco Aurélio da Conceição Correa é graduado em pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
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