Um aspecto polêmico do Pacote de Moro está na subjetividade imputada ao conceito de “organização criminosa”, que pode atingir movimentos social e sindical
Por Camila Marins para a Fisenge
Anunciado, no início de fevereiro, o pacote anticorrupção e de combate ao crime organizado, proposto pelo Ministro Sérgio Moro, entrou em tramitação no dia 19/2, no Congresso Nacional. A proposta pretende a alteração de 14 pontos do Código Penal, Código de Processo Penal, Lei de Execução Penal, Lei de Crimes Hediondos e Código Eleitoral. No entanto, alguns pontos do pacote atravessam a objetividade da legislação e afirmam uma subjetividade que pode aprofundar a seletividade da justiça, o encarceramento em massa, a letalidade policial e ferir a presunção de inocência. Algumas das polêmicas versam sobre a subjetividade imputada ao conceito de “organização criminosa”, que pode atingir movimentos social e sindical.
Com o objetivo de avaliar os principais pontos do pacote apresentado, a Fisenge entrevistou Rubens Casara, juiz de direito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, doutor em Direito e mestre em Ciência Penais. O jurista avalia as medidas como parte de um movimento chamado de “populismo penal”. Confira abaixo:
Qual a sua avaliação sobre o pacote anunciado pelo ministro Sergio Moro?
Um conjunto ineficaz de alterações legislativas para reduzir a criminalidade, mas que serão úteis tanto para reduzir os limites democráticos às ações do Estado quanto para potencializar o controle sobre os indesejáveis aos olhos do poder político e do poder econômico. O projeto insere-se dentro do movimento chamado “populismo penal”, em sua versão mais barata e vulgar, que visa enganar a população com a apresentação de medidas duras, mas ineficazes no combate ao crime. O projeto, aliás, é pessimamente redigido e apresenta uma visão simplória do fenômeno da criminalidade, o que dá a exata dimensão da fragilidade intelectual de seus redatores. Em um país de forte tradição autoritária como o Brasil, o objetivo do projeto é conseguir aplausos fáceis daqueles que acreditam no uso da força em detrimento da inteligência e são incapazes de pensar a complexidade de fatores que envolvem o crime, ao mesmo tempo em que tira a atenção da reforma da previdência e de outras medidas que destroem direitos da população. Em resumo, mais uma lei que não atingirá os objetivos declarados, mas que poderá ser usada politicamente tanto contra inimigos políticos quanto para agradar ignorantes.
Um dos pontos prevê a importação do modelo norte-americano de plea bargain, que, inclusive, já é contestado nos EUA. De que forma este dispositivo pode ampliar o encarceramento e a privatização de presídios?
O “Plea bargain” é um acordo entre o réu, culpado ou inocente, e o Estado, no qual se afastam as formas e as garantias processuais, o que pode gerar uma pena sem um processo adequado à descoberta da verdade. É um instituto que atende à racionalidade neoliberal. Os valores “liberdade” e “verdade” passam a ser objeto de negociação como se fossem mercadorias ou objetos descartáveis. A vida das pessoas passa a ser tratada como mais um objeto a ser negociado. A “verdade”, por sua vez, perde importância diante da versão acordada pelo agente do estado. Nos EUA, por exemplo, estudos apontam que pessoas inocentes passaram a aceitar cumprir penas mais leves diante da ameaça de condenações a longas penas privativas de liberdade.
Quais podem ser as relações dessas medidas com possíveis barganhas e negociações com a bancada da bala e empresários?
O sistema de justiça penal corre o risco de se transformar em mais um balcão de negócios. Não podemos nos esquecer que muita gente lucra com o encarceramento desnecessários de pessoas. Não raro, quem lucra com o aprofundamento do Estado Penal são pessoas que deveriam estar presas.
Especialistas, como o professor Paulo Sérgio Pinheiro, secretário de direitos humanos do governo FHC, veem a proposta como “apologia à violência policial”. Quais os perigos do excludente de ilicitude se basear em questões subjetivas como “medo e violenta emoção”?
A utilização de conceitos abertos como “medo” e “violenta emoção” podem servir à aplicação seletiva da norma penal e, em consequência, como o respaldo estatal para ações criminosas. Um modelo de legalidade estrita, adequado à democracia, nunca conteria uma excludente de ilicitude com essa redação. Leis como essa só servem para aumentar a seletividade do sistema legal, ou seja, permitir que os “amigos do poder” fiquem imunes à lei.
Que outras medidas poderiam ser propostas no sentido de diminuir a violência?
O que diminuiria a violência não pode ser explorado midiaticamente e de forma espetacular pelo governo. Portanto, esse tipo de medida acaba descartada. Em apertada síntese, a criminalidade tem múltiplas causas, algumas delas poderiam ser enfrentadas e superadas com investimentos sérios em educação e em políticas de redução da desigualdade. Precisamos, urgentemente, construir uma cultura de respeito aos direitos e garantias fundamentais, esse comum que permite a vida em sociedade. Se formos tratar a questão da segurança pública com seriedade, temos que perder a ilusão de que existem fórmulas mágicas ou heróis.
De que forma a alteração do conceito de “organização criminosa” pode atingir movimentos sociais e sindicatos, por exemplo? Em caso de greve de trabalhadores, poderia haver a possibilidade de imputação de crime?
O conceito de organização criminosa fornecido por esse projeto dá margem às perversões inquisitoriais, ao controle ideológico e ao ataque aos adversários políticos. A redação, que utiliza conceitos abertos e indeterminados, não permite controlar a atuação estatal. Será “organização criminosa” tudo aquilo que o interprete oficial, a partir de seus preconceitos e pré-compreensões, disser que é “organização criminosa”.
Se o projeto for aprovado em sua integralidade, você acredita que haverá questionamento no STF?
Provavelmente. Espero que o legislador tenha sabedoria para identificar o absurdo, coragem para enfrentar o apoio midiático e independência para rejeitar esse projeto. Caso contrário, restará torcer para que a maioria do Supremo Tribunal Federal coloque um freio à irracionalidade e às perversões do legislador.
A prisão em segunda instância pode contribuir para a prisão de pessoas inocentes?
Pessoas inocentes são presas todos os dias. Isso não é novidade. Agora, por evidente, toda flexibilização do princípio da presunção de inocência aumenta substancialmente o número de pessoas inocentes que passam a ser enjauladas e tratadas como a escória da sociedade. Por que existe o princípio da presunção de inocência? Porque se fez uma opção democrática de que era melhor culpados aguardarem o fim do julgamento soltos do que deixar inocentes presos desnecessariamente. Hoje, a idiotização e o autoritarismo crescentes na sociedade fazem com que a “presunção de inocência” seja atacada.
Outro ponto é a legalização do “informante do bem”, como vimos nas delações premiadas da Lava Jato, mesmo sem provas. Quais os problemas deste dispositivo?
Mais uma medida que trata os valores democráticos “liberdade” e “verdade” como mercadorias, como objetos a serem negociados. O projeto “morista” parece querer legitimar práticas ilegítimas e antiéticas que muitos atores estatais autoritários já usavam ao arrepio do devido processo legal.
Qual a sua posição sobre cumprimento de pena de forma imediata em regime fechado do réu que foi submetido a júri popular?
Nada garante que o julgamento júri popular seja justo. Em especial, porque os jurados não precisam fundamentar seus votos. Ou seja, pessoas podem ser condenadas com base em preconceitos de raça, gênero ou classe, e ninguém nunca vai saber o que realmente motivou a condenação. Aliás, nada garante que qualquer julgamento, mesmo aqueles proferidos por juízes togados, seja justo, pois erros e distorções em julgamento são inerentes à natureza humana. Por isso, a pressa em executar uma sentença mostra-se populista, pode agradar às hordas irracionais e ao sentimento de vingança social, mas está distante do ideal de justiça. Cada prisão desnecessária antes de se esgotarem todos os recursos é um atentado ao projeto civilizatório.
Fonte: Fisenge | Por Camila Marins
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