por Luciana Hidalgo !!
Na primeira greve em repúdio aos cortes de verbas na Educação (em 15 de maio), soube de uma carta escrita pelo pai de um aluno de um colégio particular carioca. Professores de uma escola católica no Leblon (uma das mais caras do Rio de Janeiro) haviam aderido à paralisação nas instituições públicas, num belo gesto de solidariedade, e o pai do aluno escreveu uma carta atacando “a submissão do corpo docente deste colégio ao Sindicato dos Professores, dominado pela ideologia marxista que é absolutamente contra o cristianismo”.
Em São Paulo aconteceu algo na mesma linha. Quando poucas escolas privadas aderiram à greve, o Sindicato de Estabelecimentos de Ensino de SP publicou nota xingando professores desses colégios de “esquerdopatas”. Tudo isso leva à pergunta: quem tem medo da “esquerda”?
E mais: o que é a “esquerda” hoje? Já ouvi gente dizendo que não existe mais diferença entre “direita” e “esquerda”. Bem, é claro que quem diz isso nunca foi realmente de esquerda e tem certo constrangimento em ser rotulado de “direita”. Pois eu, talvez por ser escritora e lidar diariamente com a semântica, com a linguagem em suas minúcias, ousaria dizer que a “esquerda” nunca esteve tão clara, definida e ativa no Brasil. Pode-se sim inventar outro rótulo, um neologismo até, afinal a língua é viva e mutante, mas o que importa aqui é a ideia de base: “esquerdistas” estão longe, muito longe de ser “esquerdopatas”, justamente porque defendem a vida acima de tudo, não apenas a própria vida, mas o bem-estar coletivo (não só dos mais abastados). Isso significa lutar diariamente pela redução da desigualdade social e pela aceitação total da igualdade entre mulheres e homens, negros e brancos, LGBTs e não-LGBTs.
A “direita” (ou outro rótulo que se dê) é formada por pessoas como o pai do aluno do colégio do Leblon, que pensa nele próprio, na família, nos bens que conseguiu acumular e ignora a desigualdade ao redor. Ignora até mesmo o sentido filosófico do cristianismo. Se tivesse lido e entendido cada palavra de Jesus Cristo, saberia que cristãos devem sim lutar por tudo o que no fundo a “esquerda” luta.
Tanto que o próprio Papa Francisco começou a ser tachado de “socialista” ao dizer o óbvio: Jesus pregou a igualdade e a aceitação de todos por todos sem exceção. Infelizmente a Igreja Católica (a Instituição), ao viver na opulência, às vezes vai contra os ensinamentos do próprio Cristo que a “fundou”; mas essa é outra história. O que importa agora é notar que conceitos como “marxismo”, “socialismo”, “comunismo” e o próprio “cristianismo” têm sido usados das formas mais levianas, por isso evito também usá-los.
Para falar a verdade, nem são mais tão necessários, porque todos sabemos o que está e sempre esteve em jogo desde que a humanidade é humanidade: existem aqueles que lutam para manter velhas tradições e privilégios, e resistem às mudanças (seja de ordem financeira, social ou moral), em geral porque nasceram privilegiados e talvez se achem no seu “direito divino”; e existem aqueles que lutam para revolucionar as tradições, porque o mundo gira, a lusitana roda, e pessoas têm sim o direito de escolher suas orientações sexuais, negros e brancos têm sim os mesmíssimos direitos (assim como mulheres e homens), e todos (independentemente da classe social, do gênero e da cor) devem ter direito a moradia, educação pública e saúde pública.
Essa é a verdadeira “polarização” no Brasil (e no mundo), e partidos políticos só ganham importância nesse cabo-de-guerra a partir do momento em que conseguem representar essas duas correntes. Conheço pessoas mais tradicionalistas que fazem caridade, e eu as admiro, mas tento explicar a elas, com amor e carinho, que não adianta apenas pegar uma sobra do dinheiro e dar uma esmolinha ao sem-teto na porta da igreja no dia da missa.
É sem dúvida uma boa ação, que eu mesma incentivo, por outro lado é uma ajuda de cima pra baixo que só confirma o poder de quem tem muito em detrimento dos que nada têm e nada terão enquanto o Brasil não for um país justo. Dou dois exemplos de países mais justos hoje (o que não quer dizer perfeitos): França e Holanda.
Mas atenção: esses países só se tornaram mais justos porque “esquerdistas” um dia revolucionaram as tradições, ousando tornar suas sociedades menos desiguais. E não fizeram isso dando esmolas, mas sim com a aplicação de políticas públicas formuladas por políticos inspirados em ideias de “esquerda”. Quando morei em Paris, ao andar pelas ruas, pude perceber que não havia um só dia na cidade sem que uma categoria profissional entrasse em greve, com o direito pleno de se manifestar na rua, atrapalhar o trânsito, deixar pessoas sem trem nem metrô.
Nem vou dizer isso ao pai do aluno do colégio do Leblon, porque a “Europa” que ele conhece deve ser outra, aquela imaginária, em que História e Política foram abolidas, e onde toda a beleza arquitetônica, as ruas limpas, a educação e a saúde gratuitas para todos os cidadãos, tudo isso simplesmente “apareceu” magicamente, de um dia para o outro. Não me darei ao trabalho de dizer isso ao pai do aluno do colégio do Leblon, porque no fundo, bem no fundo, sei que ele sabe a verdade, apenas prefere ter dois pesos, duas medidas. Afinal, ele deve ter dinheiro para manter seus privilégios no Brasil, então que “marxistas”, “esquerdopatas”, "pobres" e cia. se danem. Na cabeça de uma pessoa dessa, qualquer cidadão que lute contra a injustiça social num dos países mais injustos do mundo é “marxista”, “esquerdopata” etc.
É, esse tipo de ignorância não tem fim. No entanto, quanto mais pessoas assim esperneiam, mais percebo que as ideias consideradas de “esquerda” no Brasil se fortalecem – por isso, aliás, elas não param de espernear (mesmo estando no poder!). E para aqueles que acham a “esquerda” no Brasil atual fragilizada, sugiro que olhem ao lado, olhem bem, sem medo de olhar. As ideias de “esquerda” estão não só nas manifestações de professores e estudantes por uma Educação de excelência para todos, mas na empregada doméstica que não aceita mais dormir no emprego nem leva tanto desaforo pra casa, no funcionário que luta por seus direitos na Justiça, nos negros que se formam e ocupam altos cargos no mercado de trabalho, no feminismo que a cada dia denuncia mais e mais machistinhas de plantão, nos LGBTs que não só saem do armário mas se casam e se beijam na rua à luz do dia.
Toda essa revolução, digamos, de ordem “moral”, que em países como a França e a Holanda já ocorre há décadas, começou a acontecer no Brasil de forma mais sólida há apenas alguns anos. E não por acaso um governo de extrema-direita foi eleito recentemente por uma parcela da população brasileira na tentativa de frear essas mudanças.
Sim, os tradicionalistas andam atordoados. Para falar a verdade, tem até gente de “esquerda” duvidando da esquerda, abusando do “fogo amigo”. Tem coisa mais triste? Arriscaria dizer que gente assim nunca foi de esquerda nem tem a menor ideia do que é a luta diária na microfísica do poder (merci, Monsieur Foucault).
Porque toda essa luta para que o Brasil um dia chegue à mesma justiça social da França, da Holanda e de outros países europeus tem sim de passar pela Política, por partidos que implementem novas leis e tornem igualitários os direitos mais básicos.
E isso não inclui desapropriar terras como na Rússia de 1917 nem outros fantasmas do velho “comunismo”. Aliás, é bom esclarecer, França e Holanda não são países “comunistas”. E outra coisa: justiça social não é “comunismo”. Usar esses termos de maneira frívola para tocar o terror é má-fé e manipulação da ignorância alheia.
Vejo muita gente boa sendo manipulada, repetindo esses termos de forma ingênua, e nessa hora tenho muita pena de nós, brasileiros. Todo país justo se baseia na democracia e no direito pleno à greve e à manifestação. Quando um professor chama seus alunos para manifestações, dá a eles a melhor das lições: a da cidadania.
É meio óbvio isso, afinal, se um governo corta verbas do colégio público, o estudante que nele estuda tem de entender que isso o afeta diretamente: ele terá menos qualidade de ensino num país onde o ensino nas escolas públicas já deixa a desejar, o que certamente acabará com qualquer possibilidade de uma vida melhor no futuro.
O pai do aluno do colégio do Leblon sabe disso, mesmo assim ele prefere chamar professores manifestantes de “marxistas” etc., numa manipulação ao mesmo tempo tola e perversa. Por tudo isso espero que a Greve Geral no próximo dia 14 de junho seja uma das maiores, mais bonitas e democráticas manifestações contra o governo de extrema-direita que chama manifestantes de “idiotas úteis” e diz, a todos que têm ouvidos para escutar, que o Brasil está “ingovernável”.
Para bom entendedor, um adjetivo basta. Tudo que o governo busca agora é uma “justa causa” para aprovar na marra medidas que só fortalecerão o bolso do pai do aluno do colégio do Leblon e acabarão de exterminar trabalhadores de baixa renda.
Apesar de tudo isso, na minha utopia particular, ainda sonho com o dia em que o pai do aluno do colégio do Leblon será mais digno, humano, inteligente e solidário.
Até lá, toda greve é necessária: é preciso mostrar, com manifestações pacíficas e amorosas, que o Brasil, para se tornar um país mais justo e desenvolvido como França e Holanda, precisa com urgência que suas elites elevem o índice de humanidade. Sem isso não há país que avance. Boa greve a todos!
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