Dilma deixou o Palácio do Planalto em 12 de maio de 2016, O Senado consolidou seu impeachment em 31 de agosto |
Quanto mais tempo durar essa lógica de destruição de direitos e da soberania, muito mais gente vai sofrer. É urgente que o povo reaja, se erga e se defenda
Publicado por Paulo Donizetti de Souza, da RBA
São Paulo – O complexo processo político, jurídico e midiático que levou ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff dá margem para muitas efemérides. Dezembro de 2015, quando o hoje encarcerado Eduardo Cunha acolheu o pedido de impeachment elaborado por Janaína Pascoal e Miguel Reale Jr. Abril de 2016, quando a Comissão Especial aprova relatório favorável à abertura do processo, seis dias antes de, no dia 17, o plenário aprovar por 367 a 137 o encaminhamento do processo para o Senado.
No mês seguinte, a comissão do Senado dá andamento ao cortejo e, no dia 12 de maio, o plenário da Casa afasta Dilma Rousseff para que seu vice, Michel Temer, passe a ocupar interinamente o Palácio do Planalto. O Senado teria 180 dias de prazo para sacramentar o golpe, mas o consolidou mais rapidamente.
Em 31 de agosto, a presidenta eleita com 54 milhões de votos foi deposta, sem provas nem crime de responsabilidade, e definitivamente substituída por Temer. E as consequências dessa data para as mais diversas áreas de funcionamento do país inspiram a série de reportagens que a RBA passa a publicar a partir de hoje.
Reeleita em 2014 para um segundo mandato, Dilma derrotou nas urnas pela quarta eleição consecutiva, desde 2002, o projeto neoliberal então representado pelo finado PSDB de Aécio Neves. Apanhando da mídia desde a década anterior, o que seria o quarto mandato petista no Planalto deparou com um turbilhão de ataques concentrados desde as manifestações de junho de 2013.
O movimento popular nasceu modesto, contra o aumento de passagens de ônibus, e acabou rapidamente sequestrado pelas forças ocultas do poder econômico. Foi o nascedouro da serpente fascista criada com a sintonia entre os meios comerciais de comunicação e a então emergente indústria de fake news disseminada pelas redes sociais.
Como a própria presidenta observou recentemente, a democracia e o neoliberalismo não se bicam. Para que este se impusesse novamente como regente da República, foi necessário o uso violento dos sistemas de justiça, político e dos meios de comunicação disponíveis.
Tanto é que, pouco satisfeitas com o golpe de 2016, essas mesmas forças encaminharam a sua continuidade por meio da farsa eleitoral de 2018 – a que levou o Luiz Inácio Lula da Silva para a prisão em tempo recorde, sem crime e sem provas, para que Jair Bolsonaro vencesse.
O que se observou nos três anos completados neste 31 de agosto jamais teria sido viabilizado por vias democráticas, com debates transparentes para livre escolha da população, indignada e hipnotizada pelo discurso do suposto combate à corrupção por meio da qual o PT teria quebrado o Brasil.
Até quando?
O Brasil que começou a ser gestado em 2003, com a eleição de Lula, tinha como meta a inclusão social, e esta como motor do fortalecimento do mercado interno e do desenvolvimento nacional. O resultado que levou ao pleno emprego com crescimento econômico fortaleceu o Brasil que, naqueles anos, foi responsável por elaborar uma política interna e internacional que incomodou as estruturas reinantes desde 1500, com raros intervalos democráticos e de avanços civilizatórios.
Retirada do país do mapa da fome da ONU, criação dos Brics, fortalecimento do Mercosul, assento na direção do FMI e no comando na Organização Mundial do Comércio. O Brasil parecia deixar, gradual e seguramente, o passado de colonizado. Começava a trilhar uma trajetória de liderança mundial que levou Lula a ser reconhecido como “o cara” pelo presidente norte-americano Barack Obama, numa reunião do G20, em abril de 2009.
Três anos após o golpe, o Brasil enfrenta o pior momento de sua frágil democracia. Os Estados Unidos voltaram a ser referência para as decisões tomadas em terras brasileiras. Chegam a “indicar” o filho do presidente como embaixador. A soberania popular atropelada pela desinformação e por uma classe política que retrocede aos métodos dos anos 1950.
A soberania nacional é assombrada pela desmonte do aparelho estatal, com venda a preço de banana ou sucateamento de ativos públicos fundamentais para uma nação desenvolvida.
As reportagens que estão por vir têm por objetivo lembrar o país que fomos. Mostrar para onde estamos indo. E alertar para o que ainda podemos ser. Do golpe de 2016 ao caos representado pelo inacreditável governo de Jair Bolsonaro, o Brasil saiu dos trilhos e uma parte do povo brasileiro acompanha, entre incrédulo e desesperado, os estragos que consumirão décadas de reconstrução.
Uma outra parte, porém, ainda não se deu conta de associar e lei que escancarou as terceirizações ao golpe. E a reforma trabalhista que destruiu direitos a pretexto de criar empregos, e acabou foi destruindo. Foram 7 milhões de vagas extintas até aqui, desde 2014. E os empregos que se abrem são precários e mal pagos.
Não satisfeitos, governo e uma classe empresarial com mentalidade de século 19 jogam pesado para criar um ambiente ainda pior, em que o trabalhador que se dê por feliz com um pingado e um pão com manteiga, se não for incomodar.
E a reforma do ensino médio com vistas a empobrecer o ensino público e a estimular o ensino privado, a elitização do conhecimento. Com o estancamento dos investimentos na expansão do ensino público superior, na ciência e na tecnologia.
Quantos brasileiros se dão conta de que foi somente nos primeiros 15 anos deste século que o Brasil passou de 3,5 milhões para 7,2 milhões de matriculados no ensino superior – em universidades públicas, muitas delas abertas no interior, de onde os jovens não precisaram mais sair para estudar, e em particulares por meio de programas como ProUni e Fies?
Quantos sacaram que nesse universo, 22% eram alunos negros em 2001, e 42% em 2015? Quem tem noção de que a Lei de Cotas tem previsão legal de passar por análise e avaliação de seus resultados em 2020? Quem imagina o que pode ocorrer com essa que foi uma das mais importantes ações afirmativas e de inclusão se o atual estágio de estupidez governamental prosseguir?
É possível que muita gente esteja de olho nisso, porque foram a juventude e a preocupação com o desmonte da educação os grandes motores das maiores manifestações já enfrentadas nesses poucos meses de um governo devastador.
Quem se tocou que o programa Ciência sem Fronteiras, que já bancou mais de 100 mil jovens brasileiros para aperfeiçoar os estudos no exterior, está acabado?
E quantos recursos já foram retirados da agricultura familiar, responsável por sete em cada dez pratos de comida servidos na mesa dos brasileiros? E quanto já saiu e ainda sairá da saúde pública? E da cultura? E a aposentadoria, a de quem está quase lá e a de quem nem tem ideia de como vai ficar quando seu dia chegar? E a Amazônia, o que restará dela?
E foram apenas três anos. Quanto mais tempo durar essa lógica de destruição de direitos e da soberania, muito mais gente vai sofrer. E muito mais tempo levará o Brasil para voltar à superfície, depois de submergir como nação nesses apenas três anos.
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