"Acossado por um processo de impeachment que ninguém sabe muito bem se pode ou não prosperar no Senado, Donald Trump resolveu arregaçar as mangas e se precaver promovendo aquilo que a imprensa internacional mais ama: uma crise bélica em que as opiniões políticas se estilhaçam como fragmentos de granada", afirma o linguista Gustavo Conde, sobre os ataques de Trump ao Iraque e ao Irã
Gustavo Conde no 247
Gustavo Conde é linguista.
O cerco vai se fechando e os agentes políticos do horror partem para movimentos agônicos de tudo ou nada, calculando variáveis que vão desde a hegemonia política à economia, passando, sobretudo, pela batalha de comunicação nas redes sociais, a nova arena da disputa por influência global.
Acossado por um processo de impeachment que ninguém sabe muito bem se pode ou não prosperar no Senado, Donald Trump resolveu arregaçar as mangas e se precaver promovendo aquilo que a imprensa internacional mais ama: uma crise bélica em que as opiniões políticas se estilhaçam como fragmentos de granada.
É um movimento muito bem pensado, mas que aposta no caos do discurso para ganhar espaço político. Explico: enquanto a opinião pública internacional ficar especulando sobre as razões de Trump assassinar o general iraniano Qasem Soleimani e mais dois milicianos iraquianos no aeroporto de Bagdá - eles também têm milícias -, o rolo compressor da espionagem, do aparelhamento judicial, das sanções, do protecionismo e do fanatismo ocidental revestido de ódio vai prosseguir impávido e turbinado pela couraça do novo assunto galvanizante.
Depois de muito citarmos James Carville e seu “é a economia, estúpido”, é hora de começarmos a citar Chacrinha: “eu não vim para explicar, eu vim para confundir”, ou, pelo menos, adaptar para: “é a comunicação, estúpido”.
O general iraniano assassinado por Trump era uma estrela no Instagram. Isso certamente assustou mais os engenheiros da guerra que o fato de ele ser o general mais admirado do Irã. Em tempo de redes sociais e fake news, o exercício da influência política migrou da disputa rudimentar por petróleo ou dólares para o campo de guerra da comunicação digital. E eles irão matar por isso, como ficou claro com mais este atentado terrorista de Trump e com o atentado terrorista de Eduardo Fauzi, ídolo conceitual das jornadas de 2013 no Brasil.
O terrorismo de Estado está em alta, nos EUA, no Brasil e em boa parte do mundo. E ele se reaclimatou no Brasil, entre outras coisas, com o forro eficiente da premonição reversa, dispositivo retórico do universo Steve Bannon: lança-se o medo, através de especulações sobre o possível terrorismo de movimentos sociais populares, sindicatos e partidos (MST, MTST, CUT, PT), instala-se um discurso institucional para combatê-lo (Moro e seu projeto anticrime) e a palavra “terrorismo” passa a ser furiosamente usada por todos os veículos de comunicação, inclusive com a colaboração dos comentadores progressistas (que são obrigados a falar sobre o tema).
O sentido de terrorismo está em cena e passa a ser disputado por duas linhas políticas: a sem caráter (a extrema direita que é terrorista) e a ingênua (a esquerda que ainda sonha em convencer a opinião pública com argumentos racionais).
No Brasil, com o jornalismo que temos, fica fácil de prever quem leva a melhor.
Pior do que isso é a realidade incontornável dos fatos: a extrema-direita produz terrorismo, o Estado não se manifesta (e também produz terrorismo) e ambos acusam a esquerda de ser terrorista (basta pensar em Luciano Hang e em sua Estátua da Liberdade inflamável).
É o caos do sentido que acaba por favorecer os franco-atiradores de projéteis, extremistas de profissão, terroristas de discurso. Trump, Bolsonaro, Nethanyahu e racistas em geral, eles vieram para matar e o mundo inteiro sabe disso, inclusive e sobretudo o mundo jornalístico, que se abstém de emitir cifras de opiniões no corpo das matérias supostamente factuais em nome da neutralidade asséptica da informação.
Como na experiência do nazismo e do holocausto, depois é tarde para se arrepender.
O timing de Trump é perfeito. O terrorismo do Estado americano gosta de surpreender nos primeiros dias do ano cristão. É um recado daqueles que acreditam que uma nova era virá, a era de sempre, a era da guerra e da morte.
Trump garante, assim, sua reeleição. A Europa assiste inerte como sempre e a América do Sul respira, pois com as atenções realinhadas à clássica engrenagem EUA-Oriente Médio-Petróleo-Europa-Vassala, a energia necessária para prosseguir com a devastação institucional latino-americana será realocada.
Aliás, diga-se de passagem: a América Latina já foi destruída, com destaque para o Brasil. Não é mais preciso investir preocupações com este subcontinente sob escombros.
Curioso é constatar que tem muito brasileiro que se diz de esquerda que pondera sobre o dedo americano nas jornadas de 2013, no golpe contra a democracia e na eleição fraudulenta de Bolsonaro.
Eles veem um governo assassinar um general de outro país em um aeroporto internacional e oferecer as imagens como bônus midiático para uma imprensa internacional acuada pelo poderio semiótico das redes sociais e optam pela cegueira doméstica e pela ingenuidade generosa dos adesistas de turno.
O ataque dos americanos à soberania dos povos do Oriente Médio é um soco nesses brasileiros que negam o papel dos americanos nas jornadas de 2013 e nos golpes que se sucederam em toda a América Latina nos últimos 70 anos.
Jornais brasileiros costumam chamar cachorramente o discurso realista que destaca a ingerência americana sobre o Brasil de “antiamericanismo”. Para eles, o PT é antiamericanista - o que na tradução correta, torna-se um tremendo elogio (pois trata-se de um sinônimo de defesa da soberania).
A guerra da comunicação associada à carnificina das guerras tradicionais está de volta, com a pompa das velharias editoriais caquéticas das agências internacionais. Não é a toa que o sintagma “Terceira Guerra Mundial” tenha sido o assunto mais comentado do mundo, instantes após o atentado terrorista do governo americano em Bagdá.
Uma guerra sem Twitter, sem Instagram, sem Facebook, sem Google, simplesmente não existe no atual estado apodrecido de coisas. Ela começa nas redes e depois de alastra com os assassinatos (que a imprensa convencional chamará de “baixas” de guerra”).
Estamos, sem dúvida, diante de uma novidade. Essa guerra anunciada atende a todos os mesmos velhos interesses do império, mas tem-se agora o componente adicional das redes sociais, cujo significado prático ainda é uma incógnita.
Como vão se comportar as redes diante de uma guerra que também será cultural e narrativa? Como se comportarão os ideólogos do terrorismo digital como Steve Bannon e Carlos Bolsonaro diante de um novo estilhaçamento moral propiciado por imagens de crianças fuziladas e mulheres com a carne retorcida nos escombros de suas casas?
Um gesto terrorista de guerra como este de Trump é um acelerador de história. Teremos desafios importantes pela frente, não mais só recobrar a democracia perdida no Brasil, como recobrar a capacidade de repensar formas de governo e de civilização.
Trump deve conquistar a fatia do eleitorado americano com pendores racistas e provincianos com este ataque. Mas o mundo estará sendo lançado ao seu limite de tolerância contra a extrema violência dos fanáticos conservadores.
O Brasil, finalmente, pode ter encontrado o caminho para liberar as amarras de sua inércia social e confirmar o que 9 entre 10 analistas de América Latina têm defendido em suas leituras: o próximo país a entrar na engrenagem dos imensos protestos no continente será o Brasil.
Quando associada aos estudos da linguagem, a história costuma ser até um pouco previsível. Não é, não foi e nem será gratuito o retorno do tema “Jornadas de 2013” neste presente ingrato e complexo que nos rodeia. Trata-se de uma ferida ainda aberta na compreensão do Brasil recente.
A mera menção a 2013 está latejando na medula da história brasileira: “preparem-se, porque agora os protestos serão para valer”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário