Por Vinícius Sampaio no Justificando
A pandemia da Covid-19 foi ideologizada e tomada por objeto de embates políticos acalorados. A cínica e constante negação da verdade e de tudo o que vem da ciência por parte da extrema direita alcançou um novo patamar: superando a marca de 20 mil mortos pela doença no País, o chefe de Estado recomenda que a direita tome cloroquina e a esquerda beba tubaína. O medicamento em questão não tem comprovação científica de sua eficácia e sequer teve seu uso apoiado pelos dois (!) últimos ministros da saúde, escolhidos pelo governo.
Ao ideologizar a crise, a extrema direita cria dois trunfos àqueles que se contentam com sofismas: (i) a crise econômica é por culpa dos governadores que adotam medidas austeras para conter o contágio e impedem as pessoas de trabalhar; e (ii) as mortes só podem ser por causa de quem não oferece a cloroquina aos doentes. Nada surpreendente, vindo de um governo indiferente à vida e capitaneado por um sujeito que diz que “O erro da ditadura [militar de 1964 – 1985] foi torturar e não matar”.[1]
A cobertura da imprensa tem sido constante. Gráficos são apresentados diariamente, em todos os veículos de comunicação, dando conta do aumento do número de vítimas e contaminados pela doença. As manifestações dos órgãos governamentais são igualmente transmitidas, bem como informações sobre a corrida mundial por vacinas e medicamentos que solucionem o caos. A imprensa está tendo de resistir aos constantes ataques que sofre do governo atual[2], algo que se julgaria impensável sob a égide da Constituição Federal de 1988.
O papel da imprensa é fundamental e protegido por cláusula pétrea constitucional. Em outras palavras, faz parte do “núcleo irreformável da Constituição”[3], pela previsão do art. 5º, XIV, da Constituição Federal de que “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. Vale dizer, os ataques ideológicos do governo atual não têm espaço à luz da vontade do Constituinte, pois um dos valores do nosso ordenamento jurídico é o pluralismo político (art. 1º, V, CF/1988).
O mesmo dispositivo dá igual importância ao direito à informação, que segundo a doutrina (as abordagens acadêmicas do direito) compreende os direitos (i) a buscar informação, (ii) informar e (iii) ser informado. Daí um dos motivos pelos quais deve haver transparência dos atos e das informações estatais, assim como liberdade de imprensa. A questão mais desafiadora está na extensão semântica de “ser informado”. E isso se acentua em momentos de crise.
O que significa ter direito a ser informado? Naturalmente, levando-se em conta a interpretação teleológica do Direito (a finalidade da norma jurídica), isso não se resume a ter dados frios, que simplesmente relatem um fato. A informação deve ser contextualizada de modo que possa ser apreendida pelo público. E isso é um ônus do jornalismo, sem o qual mesmo os que se julgam muito inteligentes não têm condição de compreender, a fundo, o que significam as informações que lhes são passadas.
Nesse sentido, já é possível levantar a questão: relatar o número de infectados e mortos pela Covid-19 é suficiente a informar a população? A resposta é não. É imprescindível que a imprensa contextualize esses dados, não meramente estabelecendo a comparação com os números de outros países — abordagem que aparentemente tem sido bastante comum em diferentes veículos de comunicação —, mas apresentando parâmetros que deem o tom da gravidade de tudo aquilo a que estamos assistindo, seja em relação à própria pandemia (a letalidade da Covid-19 é comparável às de doenças mais conhecidas do público? quais? Isso deve ser repetido à exaustão, já que a falta de consciência reduz os níveis de isolamento), seja em relação às instâncias do Poder, devendo questionar: o que significa, em diversos contextos (jurídico, econômico, sociológico, político etc.), um Presidente da República insistir na oferta de um remédio sem o aval da ciência, dizendo que quem não quiser (ou for de esquerda) pode tomar tubaína? Pior: segundo o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, Bolsonaro tramou, nas dependências do Palácio do Planalto, uma nova bula para a cloroquina, atestando sua indicação para tratar pacientes com Covid-19.[4]
O horror a que estamos assistindo — e que aparentemente tende a piorar nas próximas semanas — está recordando juristas e jornalistas de algo primordial: o direito a ser informado, do qual toda e qualquer pessoa goza no Brasil, compreende o direito à informação contextualizada. Números isolados dizem pouco. Em tempos de intolerância do e no Poder, podemos nos manter neutros? Parece valer pouco um relato frio e inexpressivo de um âncora de televisão, se essa imparcialidade implica uma mensagem que não permite a conscientização e reflexão das pessoas.
Se todo problema for tratado como o País tem se comportado em relação ao Coronavírus, teremos que continuar convivendo com a paranoia das múmias da ditadura. A lista de “Comunistas!” só aumenta… Nesse narcisismo coletivo doente, a extrema direita não vai parar de excluir os diferentes para manter somente aqueles que “realmente fazem parte do grupo”. Continuarão a excluir tudo e todos, com a indiferença que só quem homenageia torturador pode ter. E nós continuaremos a assistir a esse circo sem entender nada, se a informação divulgada pela imprensa for simplesmente um relatório diário dos números.
Vinícius Sampaio é Mestre em Direito da Sociedade da Informação e bacharel em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas. Membro do grupo de pesquisa Ética e Democracia na Sociedade da Informação, da mesma instituição. Advogado em São Paulo.
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