Presidente da CPI da Pandemia, senador explica ao EL PAÍS que o foco da comissão, que volta nesta terça, será a denúncia de irregularidades e propinas na compra de vacinas contra a covid-19
AFONSO BENITES El País Brasil / Brasília
Há três meses, o senador Omar Aziz (Garça, SP, 62 anos) passou a ser presença constante na vida dos brasileiros que acompanham o noticiário nacional. Presidente da CPI da Pandemia, que apura como o Governo federal agiu no combate à disseminação do coronavírus no Brasil, ele é o responsável por dar o ritmo das apurações no colegiado. Engenheiro civil de formação, ex-governador do Amazonas e vice-presidente nacional do PSD, Aziz é um político experiente que tenta se manter em evidência como um opositor ao Governo de Jair Bolsonaro (sem partido). A atenção que tem recebido ultimamente vem com o ônus e o bônus da popularidade. Na CPI, já foi criticado por dar mais espaço aos opositores do que aos defensores do presidente, foi alvo de uma nota de repúdio de militares, mas diz que não se sente intimidado por eles. Atacado nas redes por bolsonaristas, recebe também flores de apoiadores da comissão.
Em uma entrevista por videoconferência ao EL PAÍS de sua casa em Manaus, no último dia 29, o senador, contou do tempo em que viveu no Peru quando criança, no início da década de setenta, e como viu tudo o que sua família tinha ser destruído por um terremoto. Foi aí que seu pai, um imigrante palestino, decidiu fincar raízes no Amazonas. Perdeu um irmão, Ismael Aziz, de acidente de moto nos anos oitenta, com apenas 21 anos. O senador amazonense tinha então 22. Neste ano, teve outro duro golpe com a morte de outro irmão, o empresário Walid Aziz, vítima de covid-19, no auge da crise sanitária em seu Estado. Ele não deixa de lembrar a seus interlocutores esse fato quando questionam os erros de gestão em Manaus. Nesta nova etapa da CPI, retomada nesta terça-feira após um recesso de duas semanas, ele conta que o foco das investigações será a denúncia de irregularidades e propinas na compra de vacinas contra a covid-19. Para ele, até agora, a investigação já tem um saldo positivo: o de fazer com que o presidente se explique para a sociedade como um todo, não apenas para seus militantes, como de costume.
Pergunta. Alguns perfis nas redes sociais parecem ter descoberto você somente agora. Como lida com essa fama nacional repentina, com as brincadeiras que o comparam ao personagem professor Raimundo, da escolinha criada pelo Chico Anysio, ou quando dizem que está roncando no microfone aberto?
Resposta. Roncando porque esse é meu jeito de ser. Eu falo assim meio rouco. Tem gente que gosta, né? Já ouvi, quando era mais jovem, que a minha voz era sexy e tal (risos). Mas na juventude você ouve de tudo, e eu não sou mais nenhum jovem. E sobre as brincadeiras da escolinha, faz parte. A gente chama a atenção de um, brinca com o outro, tenta dar uma amenizada no ambiente, que é muito pesado. Tenho uma relação muito boa com todos os senadores, mas ali tudo tem um limite, eles me respeitam bastante. Eu deixo primeiro todo mundo brigar, pra depois pôr ordem na casa. Todos são iguais. Eu estou presidindo, mas sou senador igual a qualquer membro.
P. Há alguns governistas que reclamam que, em determinados momentos, você age como um bedel. Dizem que você quer enquadrá-los. Esse é o seu papel? É possível dar o mesmo espaço para os dois lados?
R. Não tem isso. Cada um tem seu estilo. Alguns sempre batem na mesma tecla. E a gente tem de saber conviver. Por exemplo, o senador Luiz Carlos Heinze é meu amigo. Mas ele sempre insiste que a cloroquina salva vidas. Eu discordo dele. Toda vez que ele termina de falar eu tenho que dizer: “olha, o que o senador Heinze está dizendo não tem comprovação. Não vai tomar isso”. Eu respeito todo mundo. Embate tem e é um embate político.
P. O que foi feito pela CPI durante esse recesso?
R. Temos muitos documentos que estão sendo analisados. Todo dia aparece alguma coisa nova. Há indícios fortíssimos de que tiraram proveito da compra de vacinas, apesar de não terem pago. Deixou-se de comprar vacina mais barata de uma empresa reconhecida, com compliance, como a Pfizer, para dar atenção ao [Luiz Paulo] Dominguetti [representante autônomo ligado à empresa Davati, que prometia lotes da Astra Zeneca, e que teria recebido pedido de propina de 1 dólar por dose de vacina]. São claros os indícios. O fato de o Governo não ter pago a vacina não apaga a corrupção. É a mesma coisa de eu te dar um tiro e não te matar. Há crime ali. Houve a intenção.
P. O Ministério da Economia confirmou que atrapalhou as negociações com o consórcio Covax Facility por considerá-lo muito incerto e também que mandou tirar da MP das vacinas de 6 de janeiro, apesar de assinar como coautor, o artigo que permitiria a compra da Pfizer e Janssen. Vê crime de responsabilidade administrativa do ministro da Economia, Paulo Guedes?
R. Sim. Do ministro Guedes ou de quem sugeriu a ele que agisse assim. Estamos investigando nessa linha. Isso é sério. A Covax Facility ofereceu vacinas para imunizar 50% da população. Teríamos 100 milhões de pessoas vacinadas há muito tempo. E a gente não aceitou entrar. Só pedimos 10%. E o preço da vacina, segundo o que Eduardo Pazuello disse para a gente, era de 40 dólares, quando, na verdade, era de 10 dólares. Mais uma das várias mentiras desse Governo.
Há indício fortíssimos de que tiraram proveito da compra de vacinas
P. A Mayra Pinheiro, conhecida como capitã cloroquina, está lhe processando porque disse ter sido humilhada por você na CPI. Acha que errou na condução do depoimento dela? Como vai se manifestar na ação do STF diante do suposto vazamento dos dados de Mayra?
R. Eu disse pra ela que ela usou o Amazonas como cobaia e é verdade. Se isso é humilhação, o problema é dela. Meu problema é investigar. Eu não humilhei ninguém. Humilhado está o povo brasileiro porque já faleceram de coronavírus mais de 550.000 pessoas nesse país e tem milhões de pessoas com sequelas. A Mayra é das responsáveis por isso. E o ministro Marcelo Queiroga é tão dissimulado que ainda mantém ela lá com essa mesma política. É uma política negacionista. Ela é responsável por milhares de mortes. Quem vai processá-la por calúnia sou eu. A mesma coisa que a Mayra fez, com cobaias, são experimentos utilizados em guerras.
P. Estamos diante de uma PGR que pouco investiga o Governo Bolsonaro. Espera que, mesmo com a constatação de tantos crimes e omissões cometidos pela Gestão Bolsonaro a PGR desperte e aja?
R. Eu acredito no Ministério Público Federal, creio que o doutor Augusto Aras não vai se permitir não investigar, nós estamos esperando isso. Mas o Ministério Público Federal é um dos órgãos para quem nós iremos entregar o relatório, terá outros. Queremos levar para tribunal internacional.
P. Acredita que há um genocídio?
R. São crimes contra a vida e crimes sanitários. Não tem genocídio, não sou irresponsável de usar este termo.
P. O que for apurado pela CPI também deverá resultar em outros pedidos de impeachment de Bolsonaro. Mas na Câmara há um muro muito claro que impede a tramitação desses pedidos. Vê alguma chance de um impeachment prosperar?
R. Impeachment é uma questão política. Em política tudo é possível, você não pode dizer o que vai acontecer. Agora, tem muita gente colocando toda a responsabilidade sobre o senador Ciro Nogueira [(PP-PI), novo ministro da Casa Civil] como se ele fosse resolver todos os problemas que o Governo criou pra ele mesmo, e o Ciro não vai resolver. É impossível ele resolver sozinho todas as frentes que o Governo Bolsonaro abriu, contra o Judiciário, contra o Legislativo, contra a CPI.
P. Qual é a sua avaliação geral sobre a chegada do Ciro Nogueira à Casa Civil? Ele está diante de uma missão impossível?
R. Ele é meu amigo, até votou em mim para presidente da CPI, mas ele sabe muito bem que o momento político é complicado. É uma tarefa difícil porque você enfrenta a de dentro do próprio Governo, gente que está ali no entorno do presidente que não aceita o Centrão. O Centrão não entra pela porta dos fundos, ele entra pela porta da frente, com tapete vermelho. Ele não briga mais para nomear o diretor de uma estatal, de uma autarquia em um Estado. Ele está numa Casa Civil, onde tudo passa. É o órgão que dá toda a transversalidade do Governo, coisa que esse Governo não tem até agora e nem sabe o que é.
P. Na CPI, sempre se disse que havia o G7, grupo de sete senadores que faz oposição ao Governo. Mas nas últimas semanas, parece que houve uma mudança. Hoje, vocês são G6?
R. Nós não somos nem G6, nem G7. Nós somos mais de onze, né? Porque além da gente, tem senadores que são suplentes que atuam junto conosco, como o Alessandro Vieira, o Rogério Carvalho, e outras que não são diretamente da CPI, como a Simone Tebet, a Elisiane Gama, a Leila Barros.
P. Houve muitas críticas pela sua decisão de prender o Roberto Dias [ex-diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde]. Como recebeu essas críticas e por qual razão mudou de postura, quando na ocasião de flagrantes mentiras do Fabio Wajngarten [ex-secretário de Comunicação da presidência da República] você disse que não seria carcereiro de ninguém?
R. O Fábio Wajngarten foi o cara que deu o start da CPI. Sem ele a CPI não teria chegado aonde chegou. Ele foi o grande responsável pela gente descobrir que o Governo brasileiro nunca teve a intenção de comprar vacinas, quando ele entrega aquela carta da Pfizer, que não tinha sido respondida pelo presidente. Ali, nós estávamos na terceira audição. Foi ele quem deu um direcionamento que hoje nós chegamos aos desdobramentos da suspeita de corrupção na compra da Covaxin, na não aquisição das vacinas da Covax Facility, tudo isso foi decorrente de uma entrevista que ele deu à VEJA. Se ele não tivesse dado aquela entrevista nós não teríamos chamado ele nunca. E se eu prendo ele ali, era tudo o que o Bolsonaro queria. Nós estávamos ainda incipientes, não tínhamos essa credibilidade junto à população brasileira e eu teria politizado a CPI. A diferença do Roberto Dias é que eu dei várias oportunidades para ele contribuir com a CPI. Ele não deu uma contribuição, sequer. O Wajngarten deu.
P. Na sua visão, o Wajngarten seria um boi de piranha?
R. Sim. Seria o boi de piranha. O Roberto Dias estava com tanto apoio do Governo na CPI que quem mais se mobilizou, quem mais gritou pela prisão foi a base do Governo. Ora, era pra eles me aplaudirem. Deviam dizer: “olha, você acabou de prender o cara que quis fazer corrupção dentro do Governo Bolsonaro, nós não aceitamos isso”. Se eu fosse o Bolsonaro, mesmo com as divergências que tem contra mim, diria: “senador Omar fez muito bem, esse bandido estava dentro do meu Governo, tentou roubar, coloquei pra fora e tem que ser preso mesmo”. Não foi o que ocorreu, pelo contrário.
P. O deputado Luis Miranda (DEM-DF) sinalizou que o presidente sabia da tentativa de cobrança de propina por membros do Ministério da Saúde na aquisição da vacina Covaxin. Espera que ele apresente a gravação do diálogo que o deputado teve com o presidente?
P. Depois da nota das Forças Armadas e do Ministro da Defesa criticando sua postura na CPI, decidiu rever algum de seus posicionamentos?
R. Não tiro uma vírgula do que eu falei. Continuo dizendo a mesma coisa. É uma parte das Forças Armadas que se sujou. Eu conheço bem as Forças Armadas. Você acha mesmo que um oficial que está no interior da Amazônia pegando malária, leishmaniose, tem alimentação precária, está feliz em ver general, tenente-coronel, coronel envolvidos com desvios e principalmente com uma gestão que é horrível? Não, de jeito nenhum. As Forças Armadas estavam fora do jogo político e de sujeiras havia muito tempo.
P. Você se sentiu intimidado pelos militares?
R. Intimidado, não, de jeito nenhum. À essa altura do campeonato? De jeito nenhum. O que eles vão fazer? Me matar? Que matem. Se eu morrer, foram eles (risos).
P. Defende a convocação do ex-ministro da Casa Civil e atual ministro da Defesa, Walter Braga Netto, para depor na CPI?
R. Defendo a convocação de qualquer um contra quem haja fatos concretos. Até hoje, não têm fatos concretos contra o Braga Netto. Mesmo na Casa Civil, não tem nada até hoje. Inclusive tem um fato favorável a ele. Fato dito pelo ex-ministro da Saúde [Luiz Henrique] Mandetta e dito pelo presidente da Anvisa, [Antonio] Barra Torres, que quando levaram a mudança da bula da cloroquina para o Braga Netto, ele disse que não seria feito e rasgou o documento.
P. Diante de tantas ameaças e discursos radicais vindos do presidente e de seu entorno, acha que a nossa democracia está em risco?
R. Um golpe não duraria nem três dias. Há uma diferença muito grande entre o que aconteceu em 1964 e o que está acontecendo hoje. Em 64 houve uma mobilização popular contra o comunismo. Desde quando a União Soviética tentou colocar aqueles mísseis em Cuba, os Estados Unidos despertaram. Tanto é que não foi golpe só no Brasil, mas em vários países da América do Sul. Os Estados Unidos não queriam uma base soviética dentro da América Latina. Lá tinha as condições subjetivas e objetivas para um golpe.
P. E agora não há?
R. Não há. Objetivamente, em 1964, o Governo vinha mal, houve a renúncia, entra um presidente [João Goulart] meio à esquerda, criaram uma versão sobre ele, que ele queria implantar o comunismo. Aí você vê o Conselho Nacional dos Bispos do Brasil se mobilizando, a grande imprensa brasileira se mobilizando, havia um apoio para o golpe. E havia a promessa de que eles iam tomar o poder e entregar a um civil logo, mas se passaram vinte e poucos anos assim. Hoje o Brasil não aguentaria três dias de boicote internacional se acontecesse aqui um desalinhamento democrático. Até acredito que com Donald Trump como presidente dos Estados Unidos poderia acontecer, mas com o [Joe] Biden, não! Chance zero. Tanto é que o Brasil que no primeiro momento dava um apoio muito grande à invasão da Venezuela deu uma recuada.
P. Onde estará na disputa eleitoral de 2022? Estará no palanque do ex-presidente Lula (PT)? Buscará uma terceira via?
R. Sou vice-presidente e fundador do PSD. Nós ainda vamos ter de discutir isso partidariamente.
P. Você já foi filiado ao PCdoB. Quando os apoiadores do presidente dizem que é comunista, eles estão errados?
R. Eu já fui comunista. Eu era de movimento estudantil. Viajei o Brasil inteiro fazendo política. Naquela época a vanguarda dos movimentos populares saia das universidades. Ali a luta era entre nós mesmos, tinha trotskista, convergência socialista, liberdade e luta, o MR8. Eu era do PCdoB, que ainda era um partido clandestino, e eu atuava numa tendência estudantil que se chamava Viração. Nós tínhamos visões juvenis, e o país que a gente tinha como referência era a Albânia do Enver Hoxha (ditador entre 1944 e 1954). A gente acreditava que lá existia o comunismo. A União Soviética e China eram revisionistas. Cuba, nem se falava.
P. Quando mudou sua compreensão?
R. Depois de um tempo você entende alguns princípios democráticos e percebe que nenhuma ditadura é boa. Nem de direita nem de esquerda. A melhor coisa que existe é uma democracia plena em que a população tenha esse direito de escolher quem ela quer pra governar e não aqueles que se impõem. O que acho é que, de verdade, não tem comunista no mundo. Aquilo que Karl Max pregava é utopia pura. E as ditaduras sempre falam de pátria, família. No meu caso, eu evoluí. Eu respeito todas as posições, mas combato a direita do Bolsonaro.
P. Quando fala de pátria e família nos remete muito ao nosso Brasil de hoje. Consegue enxergar similaridades do governo Bolsonaro com o nazismo, com o fascismo ou com alguma outra ideologia radical?
R. Eu consigo. Mas eu acho que eles não têm nem conteúdo pra debater este tema. Nesta semana uma TV austríaca me entrevistou porque queria entender o que estava ocorrendo em Manaus. A repórter estava estarrecida porque o presidente recebeu uma deputada nazista, da Alemanha. Aí, você vê a hipocrisia de vincularem o Governo Bolsonaro com Israel. O que houve no Holocausto foi incomparável, não tem perdão. Não dá pra você abraçar e tirar uma foto sorrindo com uma nazista. É condenável essa atitude. Eu sou filho de imigrante palestino. E eu mesmo sempre tive uma relação muito grande com a comunidade judaica.
P. Você postou nas redes que tem recebido flores ultimamente em agradecimento à CPI. Recebe só flores ou tem recebido algo incômodo também?
R. Recebi flores várias vezes. E só flores. Nunca recebi nada que seja de forma pejorativa, não.
P. Mas na internet não são só flores, né? Tem sido muito criticado por apoiadores do presidente Bolsonaro.
R. A internet é uma terra de muro baixo. O que aconteceu com a CPI é que a imprensa brasileira toda não conseguia se contrapor ao presidente. E ele levava pro campo dele, trazia pro cercadinho do Palácio da Alvorada. Então, saía uma matéria séria contra ele e ele alegava que o jornal queria dinheiro, queria anúncio e que ele fechou a torneira. Ele não entrava no debate porque nunca interessou para ele.
P. O que está dizendo é que a CPI amplificou essas denúncias que vinham sendo feitas pela imprensa?
R. Sim. Amplificou demais. Houve o debate, conteúdo. Ele teve que se explicar oficialmente, ainda que por meio dos seus senadores aliados. A CPI fez com que o Bolsonaro tivesse de sair do cercadinho dos militantes e se explicar à sociedade.
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