Lee Miller na banheira
Uma mulher lavando-se numa banheira de uma casa qualquer – nada há de extraordinário na cena que a foto retrata.
É nos pormenores cuidadosamente escolhidos pelo fotógrafo David E. Scherman que percebemos o que a torna intrigante: o retrato de Hitler atrás da modelo, a escultura clássica à frente, as botas da tropa que deixaram manchas de lama no tapete, o uniforme lançado para a cadeira: o mundo de onde veio Lee Miller, a mulher na banheira, está demasiado sujo.
Nada nestes elementos faria da foto um clássico, mas a casa onde Lee Miller e David E. Scherman se encontram é a de Adolf Hitler: aquela é a sua casa de banho, a sua banheira, o seu tapete que um dia foi imaculadamente branco.
A foto foi tirada a 30 de abril de 1945, mas por esta época já era longo e sinuoso o percurso de Lee Miller, que tinha 38 anos quando entrou na banheira do ditador nazi.
Começara a sua carreira como modelo em Nova Iorque, aos 19 anos, mas no final da década de 20 mudara-se para Paris, iniciando uma carreira ainda mais promissora como fotógrafa de moda. Em 1932, regressou a Nova Iorque. Dois anos depois, abandonou uma carreira de sucesso como fotógrafa para casar com um homem de negócios egípcio. Em 1937, cansada de uma vida monótona no Cairo, deixou o marido e regressou a Paris, onde conheceu o segundo homem da sua vida, o pintor surrealista britânico Roland Penrose.
A guerra alcançou-a em Londres, quando a partir de meados de agosto de 1940 se iniciou a Batalha de Inglaterra – uma gigantesca ofensiva aérea alemã destinada a arrasar as principais cidades ingleses e a moral das populações. Ignorando os pedidos de amigos e familiares para regressar de imediato aos EUA, Miller decidiu tornar-se correspondente de guerra para a Vogue. Os seus primeiros trabalhos documentam os bombardeamentos alemães.
Em 1942, um mês depois do Dia D, já se encontrava em França. Fotografou a libertação de Paris e os horrores dos campos de concentração em Buchenwald e Dachau. Foi depois de Dachau que ela e o fotógrafo David E. Scherman partiram para Munique, a cidade onde Hitler vivera desde a década de 20, «o berço do terror» cuja queda ambos ansiavam por fotografar.
Quando lá chegaram, já a cidade caíra às mãos da 45ª Divisão do exército dos Estados Unidos. Sabiam a morada da casa de Hitler e para lá se dirigiram. Depois de comprar o edifício em 1935, o chanceler transformara a cave num abrigo contra bombas e o rés-do-chão e primeiro andar em aquartelamentos para os guardas, fixando-se no último piso.
Miller e o colega, que por esta altura se tornara seu amante, entraram nos aposentos de Hitler, observando quadros «de arte medíocre», armários «com as iniciais A.H.» e uma mesa de reuniões onde o ditador se sentara, planeando com os seus capangas nazis a implementação da Solução Final». Passaram horas naquela casa, desfrutando dos confortos modernos: a água corria quente nas torneiras, a eletricidade ainda funcionava.
Pela primeira vez em muito tempo, podiam tomar banho como pessoas normais. E a ideia da foto tomou forma, com Miller afirmando mais tarde que usara a banheira de Hitler para «limpar o pó que trouxera do campo de concentração de Dachau».
A encenação de fotos não era atividade estranha à dupla de fotógrafos, que horas antes convencera um soldado a deitar-se na cama de Hitler, fingindo que estava a ler um exemplar da famosa auto-biografia política e ideológica do ditador, Mein Kampf.
O retrato, a estátua, as botas, o uniforme, tudo foi cuidadosamente colocado como se estivessem a preparar uma foto para uma revista de decoração. E Miller ficou colocada entre dois extremos, o monstruoso Hitler e a beleza clássica de uma obra de arte, a mão tocando no ombro com toda a leveza do mundo, o rosto mostrando uma expressão ambígua, quase indecifrável.
Dachau também tinha os seus próprios «banheiros», recordava-se Miller, aquele em que as vítimas eram forçadas a despir-se, julgando que iriam tomar banho, para depois morrerem gaseadas. E depois, para tornar a ocasião (e a foto) ainda mais memorável, pouco antes da meia-noite receberam a notícia de que Hitler, refugiado no bunker de uma Berlim em ruínas, se suicidara para evitar ser capturado pelos soldados soviéticos. Um mundo temporariamente mais limpo.
do sitio http://www.bitaites.org/
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