Alba Figueroa Guarani Kaiowá vive na França e tem uma filha que é Professora no Distrito Federal, Daiara Figueroa. A Professora Diara foi violentada na adolescência mas não contou nada para a família durante anos e após um doloroso processo de cura, ela se libertou do terror da violência sexual.
De Brasília
Joaquim Dantas
Para o Blog do Arretadinho
O relato de mãe e filha, publicado na página de Daiara no feiçibuqui, é impressionante e retrata muito bem o horror que vive uma vítima de violência sexual, mostra também que é mais comum do que muitas pessoas acham, ou se negam a encarar.
Confira:
"Essa é a minha filha. A sua dor é a minha. A sua cura ajudará a minha. A luz se fez finalmente neste caso, pois fico sabendo publicamente neste instante que abro o face de aspectos que desconhecia. A Daia tem razão, estupro não é um evento da intimidade como tant@s defendem, segundo pesquisa do IPEA, entre os quais, assustadoramente, uma maioria de mulheres.
Estupro é um fato que afeta brutalmente a sociedade não somente a família, não somente as mulheres. É a inscrição corporal da vontade de dominação, da subordinação de uma metade da humanidade pela outra metade. É a estrutura elementar da violência em todas as suas expressões e dos descaminhos da humanidade, porque cria a ilusão no estuprador de que dominar rende... O quê?
O mundo de relações sociais e ambientais que está aí, não muito longe do abismo, se uma cura generalizada e em todas as escalar e inter-relações não se acelerar. A cura começa pela consciência e se continua pelo gesto e o compromisso pessoal de mudar e ajudar na mudança social. Compartilhem esta mensagem.
Alba Figueroa Guarani Kaiowá"
Sair do armário faz parte do processo de cura.
Por Daiara Figueroa.
Aconteceu quando tinha 15 anos.
com onze anos fui morar na frança e voltei quatro anos depois para a colômbia onde tinha passado minha infância: meu corpo era outro sem que eu mesma percebesse, e isso foi notado por pessoa muito próximas.
meu estupro aconteceu no seio de minha própria familia, por isso assim que tive a oportunidade de voltar para o brasil decidi que não queria voltar lá tão cedo, apesar de amar o restante de minha família e a cultura desse que também é meu país.
O processo de sobrevivência a um estupro é algo lento e demorado.
Se hoje falo abertamente disso, o faço com tranquilidade: não me envergonho, pois sei que eu não tive culpa de nada.
O ato foi violento, foi assim que perdi minha virgindade e até hoje não tolero que alguém segure meus pulsos com força. no primeiro momento o sentimento do horror, do nojo do próprio corpo, do ódio, o enjoo, a sujeira era muito grande. fiquei um bom tempo me ocultando com roupas largas e escuras: não queria aparecer ou chamar a atenção novamente.
Em seguida o sentimento de vingança tomou conta de mim, e fiz terror e pânico de meus relacionamentos adolescentes. me sentia justiçada em fazer homens sofrer recusando-os, atraindo-os e humilhando-os. fui muito cruel com pessoas que não mereciam e que não faziam ideia de porquê agia assim, ou pelo que tinha passado.
Como muitas mulheres não falei nada para minha família, pois tinha medo da reação, da tristeza que isso poderia gerar, e também não queria que outras pessoas se sentissem responsáveis por isso. queria poupar as pessoas que amava e que me criaram com tanto carinho lá onde estava longe de meus pais.
Quando tive a oportunidade de voltar ao brasil foi um alívio, uma fuga que tirou de mim o peso de conviver com meus agressores. foi aqui que conheci finalmente o amor, a confiança, a intimidade serena e a calma. todos os meus namorados souberam o que tinha acontecido comigo: sempre fui franca com relação a isso. todos me respeitaram e apoiaram e por isso lhes sou muito grata, pois foram esses relacionamentos que me colocaram de encontro com meu corpo novamente. falar com eles foi o primeiro passo de meu processo de cura.
Crescendo e deixando a adolescência de lado consegui me abrir com meus amigos, em especial minhas amigas, e fui me dando conta de como era comum esse tipo de violência. a verdade e que todos nós já conhecemos uma mulher que um dia já foi violentada.
Conseguir me abrir com minhas amigas me deu coragem de me informar melhor a respeito e superar o trauma da lembrança: por dez anos qualquer cena de filme ou tv relacionada me fazia chorar. os pesadelos eram recorrentes. e não era apenas uma lembrança visual, mais física, que baixava minha pressão, me enjoava e fazia até vomitar.
Compreender que não era a única, e o sentimento de não estar sozinha, mesmo que todas estivéssemos caladas me deu força para superar esses sentimentos de repulsa a minha própria história.
Pesquisando os diferentes tipos de violência e reeducando minha memória me dei conta que meu estupro não tinha sido a primeira violência sexual da qual tinha sido vítima. me dei conta que em minha memórias confusas da pequena infância eu já tinha sido molestada (talvez não por acaso) por uma das pessoas que voltaria a abusar de mim depois. Mas como era criança não tinha percebido ou entendido o que tinha acontecido. Só percebi adulta: lembrei daquilo que aparente tinha ocultado em minha mente para me proteger.
Recentemente, já com trinta anos tomei coragem e pude me abrir com minha mãe. minha única e essencial família. era um dos últimos fardos que tinha para me libertar de tanta dor. o silêncio de quinze anos tinha feito horrores com nosso relacionamento. apenas o distanciamento e o tempo me permitiu notar como a culpei e a fiz sofrer por algo que ela tampouco sabia. foi uma conversa dolorosa, necessária, com alguns tropeços mas finalmente reconciliadora. Eu sei o quanto nos amamos, e certamente nos amamos cada vez mais.
No começo de março dei em minha escola uma aula sobre o tema do dia internacional da mulher. como militante feminista, considero meu dever alertar as futuras gerações para combater e denunciar essas violências. Apresentei dados, e fiz algumas perguntas em sala: perguntei quantas das meninas já tinham se sentido incomodadas com cantadas e olhares na rua e todas levantaram a mão. meus alunos tem entre 10 e 13 anos.
Conversando sobre as estatísticas muitas crianças se abriram e contaram a história de suas famílias. alguns eram casos de terror. uma delas tinha procurado ajuda quando o pai espancava a mãe; outra tinha uma prima que foi estuprada e morta; outra tinha sido vítima de tentativa de sequestro (e o sequestro feminino geralmente inclui o estupro no pacote)... outras alunas choravam em silêncio na sala, dando a entender as violências que assistiram ou passaram mas não tinham coragem de contar.
Hoje está tendo este ato virtual em resposta à pesquisa que mostrou que a grande parte da população brasileira culpa a mulher pelo estupro.
Decidi participar e me mostra como indígena que sou, pois no brasil as mulheres indígenas são um dos grupos mais propensos a violência sexual. São Gabriel da cachoeira, cidade perto da aldeia de minha tribo é conhecida como uma das capitais da prostituição infantil e tráfico de mulheres, e a grande maioria destas mulheres são indígenas.
A figura da mulher indígena, assim como a da mulher negra é violentamente sexualizada em nosso país. isto é algo que não podemos aceitar e que também devemos combater.
tudo isto fez parte de meu processo de cura.
A violência sexual existe, e o estupro é algo comum.
Aproximadamente 80% dos estupros acontecem dentro do circulo familiar: são parentes e amigos próximos. as estatísticas do abuso infantil são semelhantes.
Mesmo que inaceitável, muitas pessoas convivem com a memória dessas violências. é uma convivência dolorosa, mas toda dor pode também se transformar em cura.
Curamos a nós mesmos quando entendemos que não estamos sós. e que somos mais fortes e não precisamos gerar mais violência, pois violência se cura com amor e paciência.
Curamos a nós mesmos quando apoiamos os outros, os escutamos, ou simplesmente acompanhamos: a cura é algo de mão dupla.
Curamos a nos mesmos quando alertamos sobre a violência, e educamos para que ela cesse.
Este é meu processo de cura
#EuNãoMereçoSerEstuprada
#NinguémMerece
estou em paz com isso.
podem ficar tranquilos.
I'm freaking fabulous!
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