28 de out. de 2017

"Uma visão feminista e comunista: como conciliar classe, etnia e gênero?"

Nos Estados Unidos, do final do século XX ao início do século XXI, um peculiar paradigma político reina sobre a esquerda. 
Você pode visitar qualquer universidade, blog ou website progressista, e as palavras “identidade” e “interseccionalidade” irão surgir como teoria hegemônica. Mas, como todas teorias, isso corresponde à posição da classe trabalhadora em relação a atual composição do capital. Teoria não é uma nuvem que flutua sobre a classe chovendo de pensamentos e ideias, mas, como Raya Dunayevskaya escreveu, “as ações do proletariado geram possibilidades para o intelectual criar teoria” (Marxism and Freedom, 91). Portanto, para entendermos as teorias dominantes de nossa época, precisamos entender o real movimento de classe.” (MITCHELL, 2013)

Antes de falar um pouco sobre esse momento histórico específico, e sobre o surgimento da teoria da interseccionalidade, gostaria de voltar um pouco mais atrás. A história, a partir da perspectiva liberal, definiu como “ondas do feminismo” o período de atividade feminista a partir do início do século XX, estritamente restrito a países Europeus e ao Estados Unidos. Com o filme “As Sufragistas” chegando, estaremos enfrentando mais de perto o seguinte debate: qual o espaço para o “feminismo marxista” nessa história? A maior parte das historiadoras da primeira onda do feminismo parece ignorar que as mulheres soviéticas já votavam, tinham direito a aborto seguro e legal e participavam da vida política, quando as sufragistas conquistaram (de forma seletiva, ainda por cima) o direito ao voto. Dessa forma, o que foi colocado pela Raya Dunayevskaya descreve sucintamente a idéia que venho propor: a verdadeira teoria feminista é fruto das ações das mulheres operárias, não da aristocracia. Sendo assim, já podemos perceber que o feminismo socialista teria dificuldade de disputar o movimento feminista, que tinha sua narrativa construída pelo ocidente. Maria Spiridonova, contemporânea de Kollontai, disse em entrevista a Louise Bryant (esposa do John Reed, que assim como ele documentou o processo revolucionário) que “não pretendo soar como uma feminista, mas… irei dizer para você minha teoria”. Isso acontecia não por ignorância das trabalhadoras soviéticas, mas sim porque as autodenominadas feministas se referiam a Kollontai e outras mulheres comunistas como “demônios vermelhos”. Havia uma real divisão entre feministas e comunistas, e o feminismo era visto como de direita — exatamente por ter nascido como um movimento social do seio da burguesia.

Não podemos perder de vista que, em todas as historicizadas ondas do feminismo, tal como hoje, existiam diversas correntes que disputavam hegemonia e que vivenciaram múltiplos embates teóricos dentro do movimento. A corrente a qual se alinhavam as sufragistas, por exemplo, colocavam como um dos argumentos ser o voto algo que as possibilitaria exercer melhor seus papeis de mães e esposas, ao passo que Kollontai e as marxistas operárias já se posicionavam radicalmente contra a prostituição, o modelo familiar burguês, os papéis domésticos da mulher e levantavam, então, bandeiras como a da união livre, do aborto, da socialização do trabalho doméstico etc. As operárias soviéticas não se reconheciam como feministas, pois trabalho, para elas, não era algo a ser conquistado, mas um dever colocado por sua classe. Sendo assim, atravessamos a “primeira onda do feminismo” e podemos, a partir daí, compreender o posicionamento das russas e perceber sua coerência.

Alguns anos depois, com o enfraquecimento das lutas dos anos 60 e 70, os primeiros teóricos da interseccionalidade começam a surgir e ganham força no início dos anos 80, reagindo ao que era conhecido como “segunda onda do feminismo”. Desse modo, detenho-me, a partir de então, à comparação entre essas duas teorias: interseccionalidade e consubstancialidade — sendo a primeira, de acordo com historiadoras feministas, Kimberlé Williams Crenshaw a precursora do termo, e a segunda mobilizada pela socióloga e feminista francesa Danièle Kergoat. Naturalmente, é preciso elencar as suas semelhanças: ambas as teorias percebem uma excessiva unilateralidade nos debates feministas na metade do século passado. Isto é, o debate partia de uma generalização tosca do que é ser mulher, o que acabava considerando como ponto de partida a mulher branca européia.

Isto posto, proponho comparar a metodologia de ambas as teorias a partir de uma análise um pouco mais prática: segundo o ministério do trabalho existem hoje 7 milhões de empregadas domésticas no Brasil. Dentre elas, uma ampla maioria negra e pobre. A consubstancialidade entende essa questão como uma forma de alienação exclusiva e única, que não abarca, portanto, o racismo enfrentado por todos os negros e o machismo enfrentado por todas as mulheres. “A minha tese (…) é: as relações sociais são consubstanciais; elas formam um nó que não pode ser desatado no nível das práticas sociais, mas apenas na perspectiva da análise sociológica; e as relações sociais são coextensivas: ao se desenvolverem, as relações sociais de classe, gênero e “raça” se reproduzem e se coproduzem mutuamente.” (KERGOAT, 2010) Isto é, não se pode entender esse caso a partir de uma política da diferença, da seccionalização das opressões que se agrupam de forma quantitativa, como é formulado pela teoria da interseccionalidade. Eve Mitchell nos explica:

“Teóricos da interseccionalidade defendem que nossas várias identidades, como raça, classe, gênero e sexualidade etc, necessariamente nos diferenciam de pessoas que não compartilham dessas identidades. Então, um homem da classe dominante, gay e negro terá uma experiência diferente, e assim, uma política diferente, de uma mulher branca e hétero da classe trabalhadora. Por outro lado, as pessoas com identidades compartilhadas, como ser negras ou lésbicas, terão uma experiência em comum que organicamente une os indivíduos. (…) Esse é o alicerce da teoria da interseccionalidade: alguns indivíduos ou grupos são diferenciados de outros grupos ou indivíduos baseado em suas experiências. Isso pode ser definido por meio de diferentes linhas identitárias” (MITCHELL, 2013).

Em uma hipotética greve organizada dessas 7 milhões de empregadas domésticas, por exemplo, não estariam elas atacando o racismo, o machismo e capitalismo de forma localizada e espaçada. Estariam, em uma greve longa e bem estruturada, desestabilizando TODO o tecido social brasileiro criado pelo novelo capitalismo-racismo-patriarcado, parando completamente o país. Percebemos, então, a partir daí, que uma mulher não é dupla ou triplamente discriminada, pois “o nó, formado por estas três contradições, apresenta uma qualidade distinta das determinações que o integram. Não se trata de somar racismo + gênero + classe social, mas de perceber a realidade compósita e nova que resulta desta fusão. (…) Não se trata de variáveis quantitativas, mensuráveis, mas sim de determinações, de qualidades, que tornam a situação destas mulheres muito mais complexa.” (SAFFIOTI, 2004). Assim, concordando com Kergoat, Saffioti também afirma que o conceito de superexploração é insuficiente.

Em suma, acredito ser a diferença fundamental a proposição de eixos de opressão pela interseccionalidade, que possuem funcionamento, origem e sentido próprios, que se acumulam e incidem em sujeitos específicos. Ao passo que a consubstancialidade concebe as opressões de outra forma , em que não entende ser possível identificar tão analiticamente onde começa o capitalismo e onde começa o patriarcado, uma vez que entende a existência de um a partir do outro. Através do apartheid sexual, por exemplo, o capitalismo extrai das mulheres o trabalho reprodutivo (cuidar da casa, dos filhos etc) necessário para manutenção estável da sociedade, ao mesmo tempo em que garante aos homens o poder sobre a sexualidade feminina; bem como através do racismo, o capitalismo consegue mão-de-obra para realização de trabalhos que a burguesia considera inferiores.

Em seu livro “Feminismo e consciência de classe no Brasil”, a autora Mirla Cisne afirma que “as discriminações do sexo no trabalho não são uma especificidade das mulheres, mas elementos fundamentais que estão na base da dominação da classe operária”,seguindo a mesma linhaelaborada por Elizabeth Souza-Lobos em seu livro “A classe operária tem dois sexos”. A consubstancialidade tem precisamente esse sentido, em que as opressões não se acumulam, mas se realizam umas nas outras, dando substância e formato ao tecido social que chamamos de realidade material. Esse tecido precisa ser entendido na sua totalidade, e seccioná-lo, mesmo com fins analíticos, pode desacertar nosso entendimento do dinamismo dos fenômenos.

O conceito de interseccionalidade e, de maneira geral, a idéia de intersecção, dificulta pensar uma relação de dominação móvel e historicamente determinada […]. Em outros termos, a interseccionalidade é um instrumento de análise que coloca as relações em posições fixas, que divide as mobilizações em setores, exatamente da mesma maneira pela qual o discurso dominante naturaliza e enquadra os sujeitos em identidades previamente definidas. (Elsa Dorlin); “Em seguida, um imperativo histórico: o caráter dinâmico das relações sociais é central para a análise. Elas devem ser historicizadas, pois possuem uma estrutura que permite sua permanência, mas também passam por transformações que correspondem a períodos históricos e a eventos que podem acelerar seu curso. No entanto, não se deve jamais historicizar uma relação social em detrimento de outras. Isso significaria transformar a relação em categorias caracterizadas pela metaestabilidade. (KERGOAT, 2010).

Achar que se pode entender a situação das empregadas domésticas primeiro como classe e, depois, como raça (ou vice-versa), torna o objeto sociológico (no caso, as empregadas) um quebra-cabeça que nunca conta com todas as peças. Temos, então, de forma sintética que o ponto de partida da teoria interseccional é conceituar o sistema de opressão, categorizá-lo e depois entender sua interação. O ponto de partida da teoria consubstancial é procurar os movimentos entrelaçados destas estruturas de poder na história como constituidores interdependentes do eixo de reprodução da própria realidade.
Um marxismo interseccional é possível?

Como o conceito de consubstancialidade não foi tão popularizado, textos relacionando o marxismo à teoria interseccional se tornaram cada vez mais constantes e, no início da década de 1980, a interseccionalidade já tinha se tornado termo usual entre a esquerda. Constantemente se voltavam para a seguinte questão: será que tudo é mesmo fundamentalmente uma questão de classe?

A questão-chave sempre foi o conceito da palavra “classe”. O que se debate aqui não é somente a importância da classe nas relações sociais, mas sim qual a composição dessa classe e como se originou tal conceito para a teoria marxista. A partir daí, veremos porque essa pergunta por si só não faz sentido, dentro do que a tradição marxista entende como classe. Classe, para o marxismo, não pode ser entendida como um grande grupo heterogêneo, no qual pessoas possuem uma renda/patrimônio médio em comum, tendo o pertencimento/despertencimento de posses materiais como seu elemento identificador. Não se pode dividí-la em faixas de riqueza — Classes A, B, C, D. Este é um erro crasso de uma confusão de abordagens sociológicas, pois esta é a definição de classe social pela sociologia de Max Weber. Esta limitação do conceito marxista de classe serve como espantalho para as críticas que Saffioti classifica como “as assim denominadas suspeitas, e até mesmo recusas veementes, com relação às explicações universais, não justificam a acusação de que os conceitos marxistas são incapazes de perceber o gênero.” (SAFFIOTI, 2004)

Ademais, Saffioti assume-o anacrônico e adverte ser a teoria weberiana quem exerce grande influencia na atualidade da fundação sociológica de diversas teorias burguesas, além de se propor a superar Marx: “Weber está na base de porção significativa dos pensadores pós-modernos, sem que seus porta-vozes mais proeminentes, ou nem tanto, se interroguem a que conduzirá tão extremado relativismo [fragilidade da consistência da classe] ou se seus tipos ideais podem ser corretamente utilizados quando aplicados a situações distintas daquelas com base nas quais foram formulados. Grande conhecedora da obra de Weber (1964–1965) Maria Sylvia de Carvalho Franco (1972) mostra como o ordenamento dos fenômenos sociais é feito com princípios a priori — não apenas pelo autor em questão, mas também por outros idealistas alinhados ao pensamento kantiano.

A autora detecta, no pensador em pauta, a presença uma “subjetividade instauradora de significados” [há, portanto, uma capacidade ilusória de criação de sentido por aquele que é objeto da relação] como alicerce do objeto, o que lhe permite afirmar, a respeito da tipologia da dominação [estudo das diversas dominações, separadas em tipos. ex: machismo, racismo, lgbtfobia, capacitismo], que o sentido empírico específico [o próprio significado] das relações de dominação é produzido pela atividade empírica de uma subjetividade [mais conhecida como vivência hoje em dia]. Este mesmo sentido [vontade do sujeito] define o objeto [o próprio sujeito] e constitui a auto-justificação, por meio da naturalização das desigualdades. Weber analisa, assim, as bases da legitimidade recorrendo a fatos sempre redutíveis a subjetividade [vivência], inscrevendo-se a autojustificação [e autoidentificação dentro desta realidade] como processo pelo qual se erige em lei universal o conceito subjacente à dominação. (p. 99)

A teoria marxista entende as classes, antes de tudo, como sujeitos históricos concretos. Para Marx, a sociedade é marcada por um antagonismo fundamental entre todos aqueles responsáveis pela produção e reprodução da realidade social, e aqueles responsáveis por criar suas diretrizes. A questão fundamental nunca esteve ligada à quantidade de moeda impressa que cada um tem ou qual a função que as pessoas precisam desempenhar para obte-las, mas sim a produção da vida real. Marx afirma que a vida é anterior à criação de um sistema econômico, este que é apenas uma forma de atender as necessidades da vida, mas que uma classe dominante faz parecer que é ele o meio pelo qual a vida existe e que as relações interpessoais só se dão através dele.

Weber cumpre exatamente este papel, de disseminar — muitas vezes de forma discreta — a ideologia burguesa, como Ranieri Carli examina em seu livro “György Lukács e as raízes históricas da sociologia de Max Weber”:

A análise do conceito de classe social em Weber precisa estar atenta para alguns pontos. Antes de tudo, 1) a responsabilidade por estar em determinada classe social é atribuída por inteiro ao sujeito; as oportunidades estão dadas no mercado e cabe ao sujeito aproveitá-las da maneira que lhe convém, conforme sua valoração subjetiva. Os homens apresentam-se em igualdade de condições ao mercado, é dada a largada, as chances são oferecidas e veremos quem terá sucesso ao fim. A superficialidade do conceito weberiano não nos diz absolutamente nada sobre as condições concretas de que partem os homens, sobre as contradições postas no processo produtivo, as quais já determinam sob que condições os homens chegarão ao mercado. Marx afirma que a produção determina a distribuição não só por realizar os objetos que serão distribuídos, mas por condicionar as formas particulares de participação no mercado. […]

Além de que, 2) o conceito weberiano une inextricavelmente a situação de classe à situação de mercado. Não há classe quando não há mercado; as várias situações de classe estão sendo distribuídas diariamente no mercado e apenas nele. O destino casual no mercado prescreve o pertencimento de classe. Os homens que não estão livres para ir ao mercado não representam uma classe: “aqueles cujo destino não é determinado pela oportunidade de usar, em proveito próprio, bens e serviços no mercado, isto é, os escravos, não são, porém, uma ‘classe’, no sentido técnico da expressão. São, antes, um estamento” (Weber). A conjunção absoluta do autor entre mercado e classe continua: “segundo nossa terminologia, o fator que cria 'classe' é um interesse econômico claro, e na verdade, apenas os interesses ligados à existência do mercado”(Weber). Logo, as classes sociais são um espaço fluido — de acordo com a nossa sorte no mercado, estaremos em determinada classe hoje e em qualquer outra amanhã. Deduz-se que os trabalhadores terão a opção de transformar-se em capitalistas assim que o humor do mercado lhes beneficiar.

Gênero como mais uma classe weberiana
Se pararmos para refletir, portanto, a própria definição do conceito de gênero, sob a luz da teoria interseccional, é uma classe weberiana. Um conjunto de características específicas (feminilidade ou masculinidade) é o suficiente para determinar uma classe, tal como as definições de sexualidade acabam “criando” a “classe weberiana” dos gays, lésbicas, etc. Enquanto isso, a teoria marxista aponta para outra análise:

A sexualidade é para o feminismo o que o trabalho é para o marxismo: aquilo que mais nos pertence, e o que mais nos é tomado. Assim como a expropriação organizada do trabalho de alguns para o benefício de outros define classe e trabalhadores, a expropriação organizada da sexualidade de algumas para o uso de outros define sexo e mulheres (…) A teoria feminista do poder é a de que a sexualidade é “generizada” e o gênero é sexualizado. Em outras palavras, o feminismo é uma teoria de como a erotização da dominação e submissão cria o gênero, cria mulheres e homens na forma social na qual nós os conhecemos. Portanto, a diferença de sexo e a dinâmica dominação-submissão definem uma à outra. O erótico é o que define o sexo como desigualdade e, por isso, como uma diferença significativa. Isso é, na minha visão, o significado social da sexualidade, e a consideração distintamente feminista da desigualdade de gênero. (MACKINNON, 1987).

É possível então traçar que desde o início da história da luta de classes a mulher foi relegada ao trabalho reprodutivo — o que não deve ser associado somente à geração de uma nova vida, mas também a limpar a casa, cuidar dos idosos, preparar a comida para o marido, isto é, todas as funções domésticas que garantem ao patriarca exercer sua função produtiva no capitalismo. Além do mais, com o advento do salário, o trabalho reprodutivo continuou não remunerado, até os dias de hoje. Como, por exemplo, você convence uma mulher ser natural a tripla jornada de trabalho (profissional, maternal e conjugal), muitas vezes sem receber quase nada? Da exata mesma forma que você convence um cobrador de ônibus que seu trabalho não é alienado. Uma mulher precisa se identificar com o famigerado estereótipo de ser mulher para se tornar um ser inteligível na sociedade. Por conseguinte, é imensamente conveniente ao patriarcado que esse estereótipo dite que mulher é frágil, submissa, e não competitiva. Fosse o contrário, as mulheres seriam uma ameaça para os homens. A função da sociologia weberiana, meio a isso tudo, é classificar as pessoas nos mais variados grupos identitários, identidades essas deduzidas de modelos ideais que o mercado demanda. Para que funcione, o sistema necessita de pobres, mulheres e negros — e a sociologia weberiana está aqui para dividi-los todos em caixas chamadas “classes”, ainda que estes não tenham qualquer controle sobre isso. Eve Mitchell esclarece:

Colocando de outra forma, sob o capitalismo, nós estamos forçados a uma caixa: nós somos motoristas de ônibus, cabeleireiros, ou mulheres. Essas diferentes formas de trabalho, ou diferentes expressões de nossa atividade humana (meios pelos quais nós interagimos com o mundo a nossa volta) limitam nossa habilidade de sermos humanos multifacetados. (…) Políticas identitárias defendem “eu sou um homem negro”, ou “eu sou uma mulher”, sem completar o outro lado da contradição, “…e um ser humano”. Se o ponto de saída e de chegada é unilateral, não há possibilidade de abolição das relações sociais racializadas e generizadas. Para apoiadores das políticas identitárias (apesar de dizerem o contrário), a feminilidade, uma forma de existência dentro da sociedade, é reduzida a uma identidade natural e estática. Relações sociais como a “feminilidade”, ou simplesmente o gênero, tornam-se objetos estáticos, ou “instituições”. Logo, a sociedade é organizada em indivíduos, ou grupos sociais com características naturais. Por consequência, a única possibilidade de luta dentro das políticas identitárias está baseada na distribuição igual ou no individualismo (MITCHELL, 2013).

Uma saída pela esquerda (marxista-leninista)

Cada vez mais o movimento feminista sente a insuficiência do debate que tem sido pautado pelos teóricos do pós-modernismo. Portanto, a palavra final precisa ser dada pela teoria feminista marxista, como explica Mirla Cisne em “Feminismo e luta de classes no Brasil”:

“Para sermos mais claras, partimos do pressuposto de que classe, “raça” e relações sociais de sexo (incluindo a sexualidade) não compõem apenas relações superpostas, tampouco adicionais ou mesmo com “intersecções”, como defende Crenshaw (1995) entre as relações de “gênero” e “raça”. Ao considerar, por exemplo, que elas seriam relações adicionais, ou seja, somáveis, cairíamos na segmentação positivista de entendê-las como relações separadas e não enoveladas”.

É necessária a compreensão de que pelo entrelace, pelo contato dessas condições umas com as outras, elas adquirem uma dinâmica própria e outra, que não é mais a mesma quando isoladas. E essa nova dinâmica se adapta a uma realidade também outra que, para que não se mantenha cristalizada, deve conter — de cada condição — seu acento histórico. E é somente a partir dessa concepção que não deixaremos que seja diluído o conceito marxista constatado pelo materialismo-histórico-dialético, que nos inquieta e que nos move, por sua complexidade, especificidade e contradição, — e é este o conceito de classe,enquanto una,enquanto nó.

Referências:
CARLI, Ranieri. As raízes históricas da sociologia de Max Weber. Rio de Janeiro: UFRJ/ESS, 2008. 267 p. Orientador: José Paulo Netto. (Tese de Doutorado).

CISNE, Mirla. Feminismo, Luta de Classes e Consciência Militante Feminista no Brasil. Tese de doutorado em Serviço Social defendida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro: UERJ, 2013. 409 f.

KERGOAT, Danièle. Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais. Novos estud. — CEBRAP, São Paulo , n. 86, p. 93–103, Mar. 2010.

MACKINNON, Catherine. Feminism Unmodified: Discourses on Life and Law. Harvard University Press, 1987.

MITCHELL, Eve. “Eu sou uma mulher e um ser humano: uma crítica feminista Marxista à teoria da interseccionalidade”. 2013. 

Acesso em: 
https://traducoesfemininjas.wordpress.com/2015/11/19/eu-sou-uma-mulher-e-um-ser-humano-uma-critica-marxista-e-feminista-a-teoria-da-interseccionalidade-de-eve-mitchell/
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado e violência. Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.

Acesso em: http://www.contag.org.br/imagens/f759ontogenesedogeneroHELEIETHSAFFIOTI.pdf

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