8 de jan. de 2018

As novas alterações no Código de Trânsito Brasileiro e a atividade jurisprudencial

Surgiram controvérsias sobre se o crime de embriaguez ao volante (art. 306, CTB) seria absorvido ou não pelo crime de homicídio culposo em veículo automotor (art. 302, CTB).

por Victor Augusto Estevam Valente no Migalhas

No decorrer do tempo, foram editadas as seguintes legislações que alteraram o Código de Trânsito Brasileiro (lei 9.503, de 23 de setembro de 1997): (i) lei 11.705/08 ("Lei Seca"); (ii) lei 12.760/12; (iii) lei 13.281/16; e (iv) lei 13.546/17, que acrescentou nova redação aos crimes de homicídio culposo (art. 302, §3º), lesão corporal culposa (art. 303, §2º) e à competição ilegal ou demonstração de perícia em via pública (art. 308, "caput"), além de disciplinar diretrizes para a dosimetria da pena-base (art. 291, §4º).

Em 2014, a lei 12.971 havia alterado o CTB da seguinte forma: (i) inseriu a qualificadora referente à embriaguez no §2º do artigo 302 (homicídio culposo), cominando pena de reclusão, de 2 (dois) a 4 (quaro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor; e (ii) acrescentou dois parágrafos no artigo 308 (competição ilegal em via pública), tornando a pena qualificada se o agente, a partir do "racha" (dolo), causasse involuntariamente lesão corporal grave (§1º) ou morte (§2º)1.

Porém, a lei 13.281/16 revogou o §2º do artigo 302 do CTB, razão pela qual a conduta de dirigir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão de influência de álcool ou de outra substância psicoativa passou a configurar, em regra, a modalidade prevista no artigo 302, "caput", do CTB2.

Sob essa ótica, algumas questões passaram a ser refletidas na prática forense.

Primeiramente, seria mais razoável, por razões de política criminal, a punição por homicídio culposo (reclusão, de 2 a 4 anos), que propriamente pelo crime de homicídio simples, na forma dolosa (reclusão, de 6 a 20 anos), sob o fundamento de que, em certos casos, seria punir em demasia o condutor a título de dolo, a ponto de ofender o princípio da proporcionalidade, máxime o da proibição de excesso.

Além disso, surgiram controvérsias sobre se o crime de embriaguez ao volante (art. 306, CTB) seria absorvido ou não pelo crime de homicídio culposo em veículo automotor (art. 302, CTB).

Para a primeira corrente, configurar-se-ia concurso de crimes entre a embriaguez ao volante e o homicídio culposo.

Por outro lado, consistiria em conflito aparente de normas, sob o argumento de que o crime de embriaguez ao volante3 seria antefactum impunível do crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor, visto que a embriaguez era considerada uma intensificação da violação do dever de cuidado e, portanto, uma fase necessária com o potencial de gerar o resultado morte, tendo em vista o desdobramento natural dos fatos (id quod plerumque accidit)4.

Entendemos, no entanto, que somente seria possível a absorção desde que a embriaguez ao volantefosse o único elemento ensejador da culpa. Isto porque "Sem a embriaguez, não teria havido culpa, e, sem ela, a conduta praticada pelo agente seria um indiferente penal."5. Em caso de concorrência da ebriedade com outras circunstâncias fáticas, caberia o concurso de crimes, pois a ebriedade não seria considerada meio para o homicídio culposo, afastando a possibilidade de aplicação do princípio da consunção6.

E, para outro posicionamento, aplicar-se-ia o princípio da subsidiariedade, posto que os tipos penais se referem à violação de um mesmo bem jurídico (leia-se, a disponibilidade da vida), embora cada qual descreva violação em níveis diferentes. Logo, se de um delito de mera conduta (embriaguez ao volante) sobrevém crime material (homicídio culposo), deve o agente responder pelo último7.

Independentemente da corrente perfilhada, a jurisprudência apresenta um ranço nas decisões envolvendo acidentes de trânsito e embriaguez. Acusa-se, por exemplo, que não foram aplicadas ao longo do tempo, de forma apropriada e minuciosa, as bases teóricas do princípio da consunção, levando ao desenvolvimento de uma exegese desproporcional e assistêmica, incompatível com a teoria do delito e com a responsabilidade subjetiva.

Nessa esteira, a lei 13.546/17 acrescentou uma qualificadora no parágrafo 3º do artigo 302 do CTB, criando figura específica para o homicídio culposo na direção de veículo automotor em razão de o condutor estar sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência8.

Entendemos que a nova previsão legal encontra lastro na vedação da dupla punição pelo mesmo fato (ne bis in idem). É, a priori, uma solução à problemática do concurso de crimes, pois tal não é mais possível entre o homicídio culposo (qualificado pela ebriedade) e a embriaguez ao volante.

Cuida-se de qualificadora que eleva sobremaneira a pena, em razão da particular situação ou condição do autor do delito, configurando culpa temerária ou crime hiperculposo, porquanto maior a intensidade de violação do dever objetivo de cuidado e das normas elementares de trânsito.

Trata-se de crime de dano, tendo como elementar diferenciadora do artigo 121 do Código Penal, o fato de o agente praticar o delito, culposamente, na condução de veículo automotor e em estado de embriaguez. Possui dupla objetividade jurídica: (i) de um lado, tutela-se a incolumidade pública (segurança viária); e (ii) de modo secundário, a vida dos condutores.

Ademais, a pena privativa de liberdade de reclusão pode ser cumprida em regime inicialmente fechado. Difere-se da pena prevista para o homicídio culposo do "caput" do artigo 302, que é de detenção e, via de consequência, de regime inicial semiaberto. Há, nesse viés, uma diferença qualitativa entre as penas do "caput" e do §3º.

Sem embargo, uma das principais mudanças trazidas pelo novel legislativo diz respeito à diferença quantitativa da pena, que passou a ser de cinco a oito anos. Essa alteração legislativa guarda harmonia com a proporcionalidade, tendo em vista que a sanção penal prevista no "caput" (detenção, de 2 a 4 anos) se tornou proporcional em relação à pena cominada à qualificadora do §3º (reclusão, de 5 a 8 anos).

Também se aplica à modalidade a sanção administrativa que suspende ou proíbe o motorista de obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Contudo, revela-se desproporcional a nova reprimenda se comparada com a do homicídio doloso (art. 121, CP), cuja sanção mínima é de 6 anos.

Ademais, a previsão legal da ebriedade como culpa (arts. 302, §3º, e 303, §2º) supera, em grande parte, as controvérsias sobre o dolo eventual e a culpa consciente. A tendência é a de que, na prática, ganhará força a tese da culpa consciente, já que disciplinada na forma qualificada do homicídio culposo em estado de embriaguez, reduzindo a margem de reconhecimento do dolo eventual.

Essa previsão parece seguir a jurisprudência no Brasil em crimes de trânsito.

No início, o Supremo Tribunal Federal firmara o entendimento de que configurava dolo eventual o homicídio praticado na direção de veículo automotor, caracterizando homicídio simples. Aplicava-se a "actio libera in causa" não só para a embriaguez completa preordenada, mas também para a incompleta – o que contrariava a essência dessa teoria, já que destinada, em verdade, somente para a embriaguez completa.

Atualmente, não é incomum o entendimento dos tribunais pátrios de que, com relação ao elemento volitivo, há dolo eventual quando o agente conduz o veículo automotor em estado de embriaguez ou emulativo, sobrevindo o falecimento da vítima.

Em que pese esse entendimento, apontam-se críticas a respeito, pois a análise do elemento subjetivo do agente não deve se restringir a condições específicas e isoladas do caso concreto, como no caso de considerar tão somente a ebriedade.

Ao longo do tempo, o Pretório Excelso refinou seu posicionamento, sob o argumento de que configura, em regra, culpa consciente o homicídio praticado na direção de veículo automotor em estado de embriaguez.

Registra-se o voto do ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, em 2011, sob o fundamento de que, na morte culposa na direção de automotor, prevalece que a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção ante a embriaguez alcoólica eventual, razão pela qual há que se falar de culpa, em especial de culpa consciente9.

Acrescenta-se que, conforme decisão da sexta turma do Superior Tribunal de Justiça proferida em dezembro de 2017, no julgamento do REsp 1.689.173, a embriaguez do condutor do veículo não é suficiente para caracterizar dolo eventual, cabendo, na análise do caso concreto, a desclassificação do crime de homicídio doloso para o delito de homicídio culposo.

Segundo o voto do relator, ministro Schietti, a prática forense tem seguido uma perigosa tendência ao determinar a responsabilidade penal em acidentes de trânsito envolvendo embriaguez ao volante e excesso de velocidade. Isto porque, segundo o relator, o entendimento automático e mecanizado de que deve ser imputado ao condutor o dolo eventual tem gerado, na maioria dos casos, uma insólita e famigerada interpretação de institutos que compõem a teoria do crime, forçando uma conclusão desajustada à realidade dos fatos.

E, seguindo a dinâmica da jurisprudência, em casos de dúvida entre culpa consciente e dolo eventual, recomenda-se a aplicação do in dúbio pro reo. Porém, há casos em que, no júri, se impôs a pronúncia do réu, com base no in dubio pro societate, haja vista que, ainda que tênues as linhas entre dolo eventual e culpa consciente, pesaram indícios de que o réu, mesmo que avistando crianças à sua frente, imprimiu velocidade arriscada em seu veículo10.

De todo caso, a Suprema Corte já firmou o entendimento de que, em caráter excepcional, é possível a configuração de dolo eventual, caso em que restará aperfeiçoado o crime de homicídio doloso simples11.

À guisa de uma política criminal simbólica e emergencial, o Direito Penal de Trânsito é um "caminho sem volta" no Brasil, pois, além da sinuosa jurisprudência, há a persistência da edição de diversas legislações que ainda não propiciaram uma resposta criminal eficaz e coerente para a repressão das infrações no tráfego viário12.

__________

1 A partir dessa alteração legislativa, a prática forense teve que encarar a problemática do concurso de crimes nas seguintes situações: (i) entre o homicídio culposo e a embriaguez ao volante; e (ii) entre o §2º do artigo 302 e o §2º do artigo 308 do CTB.

2 "Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor: Penas: detenção, de 2 a 4 anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. §1º. No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena é aumentada de 1/3 à metade, se o agente: I – não possuir Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação; II – praticá-lo em faixa de pedestres ou na calçada; III – deixar de prestar socorro quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do acidente; IV – no exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de transporte de passageiros.".

3 A partir da lei 11.705/08, cuja redação foi mantida pela lei 12.760/12, prevalece que a embriaguez ao volante, outrora classificada como delito de perigo concreto, tornou-se crime de perigo abstrato, consumando-se com a conduta de o agente conduzir o veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou qualquer outra substância de efeito análogo (art. 306, “caput”), cuja constatação far-se-á (§1º): (i) por concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou (ii) sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora. A objetividade jurídica é a incolumidade pública, ou seja, a segurança do tráfego viário, cuja proteção se destina a bens jurídicos supraindividuais.

4 A aplicação da consunção se condiciona às circunstâncias do caso concreto, não possuindo uma fórmula abstrata e genérica para todos os casos, ao contrário do que ocorre com o princípio da especialidade. Acusa-se, com a devida vênia, que a jurisprudência não tem aplicado a consunção de forma proporcional nos delitos de trânsito. Por exemplo, há casos em que, embora excepcionais, o crime menos grave absorve o mais grave. Para Freitas: "São esses os fundamentos que justificam, em determinadas circunstâncias, que o delito de embriaguez ao volante, para o qual a lei cominou pena de detenção de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, seja absorvido pela lesão corporal culposa de trânsito, crime para o qual a lei cominou pena de detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos. É o típico caso em que o crime de perigo (embriaguez ao volante) foi apenado de forma mais severa que o delito de dano (lesão corporal culposa). De toda sorte, se houver excessiva desproporcionalidade entre o crime menos grave (absorvente) e o crime mais grave (absorvido), não haverá como aplicar a consunção." (FREITAS, Roberto da Silva. Homicídio culposo de trânsito, embriaguez ao volante e princípio da consunção. In: Revista do Ministério Público do Distrito Federal, Brasília, n. 9, p. 267-316, 2015, p. 285).

5 FREITAS, Roberto da Silva. Homicídio culposo de trânsito, embriaguez ao volante e princípio da consunção, p. 304.

6 Para Freitas: "Para ser fiel aos postulados teóricos do princípio da consunção, a embriaguez ao volante só restará absorvida pelo homicídio culposo de trânsito se aquela situação (embriaguez) for o único elemento ensejador da culpa, elemento normativo imprescindível à caracterização do tipo penal do art. 302 da lei 9.503/97. Com efeito, sendo a condução do veículo automotor sob a influência de álcool o fator a desencadear a situação de culpa e não sendo possível cindir a embriaguez da culpa necessária à consumação do homicídio, é inviável imputar ao agente a responsabilidade pelas duas condutas." (FREITAS, Roberto da Silva, p. 285).

7 Cf. BEM, Leonardo Schmitt de. Direito penal de trânsito. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 190 e ss.. Entendemos, com a devida vênia, que não é cabível a aplicação do princípio da subsidiariedade, posto que os tipos penais da embriaguez ao volante e do homicídio culposo não protegem o mesmo bem jurídico em níveis, etapas e graus de violação diferentes.

8 De acordo com a nova previsão, basta que, para a configuração do homicídio culposo, o condutor esteja sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência, ou seja, basta a demonstração de que ingeriu a substância. Já na lesão corporal culposa praticada na direção de veículo automotor em estado de embriaguez (art. 303, §2º), exige-se que o agente conduza o veículo com "capacidade psicomotora alterada". Contudo, entendemos que essas diferenças são prescindíveis, pois a resolução do Contran 432/13 disciplina um único procedimento para apuração da embriaguez.

9 STF, HC 107.801/SP, Rel. Min. Luiz Fux, Julgado em: 06/09/2011.

10 FUKASSAWA, Fernando. Crimes de trânsito. 3. ed. São Paulo: Associação Paulista do Ministério Público, 2015, p. 156.

11 STF, Segunda Turma, HC 115352/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Julgado em: 16/04/13.

12 A propósito do tema, cf. obra a ser lançada: VALENTE, Victor Augusto Estevam. Direito penal: fundamentos preliminares e parte geral (arts. 1º a 120). V. I. Coleção Concursos Públicos. Salvador: Juspodivm, 2018.

__________

*Victor Augusto Estevam Valente é professor em Direito Penal da PUC-Campinas. Coordenador do Curso de Especialização de Criminologia, Direito Penal e Processo Penal da PUC-Campinas. Advogado.

Nenhum comentário: