Para o especialista, optar por cortar investimentos do Estado agravam ainda mais a crise social pela qual o país atravessa Divulgação |
Professor do Instituto de Medicina Social da Uerj afirma que país faz opção "absurda" para combater crise fiscal. "Ficam procurando bode expiatório, a reforma da Previdência, mas é o modelo econômico que é fundamentalmente falho e perverso.
As medidas de austeridade, características da lógica do neoliberalismo, aprofundam os efeitos da recessão, exercendo duplo efeito sobre a saúde da população: aumenta a probabilidade de desenvolvimento de doenças e compromete as políticas sociais que poderiam combatê-las. A análise é do professor Kenneth Camargo Jr, do Instituto de Medicina Social da Uerj (IMS/Uerj), em entrevista ao blog do CEE-Fiocruz. O professor, que participou do painel Os Efeitos da Austeridade na Saúde, realizado pelo IMS em dezembro passado, contesta o discurso que sustenta que cortes nos gastos públicos pelo Estado levam ao aumento dos investimentos privados. “Historicamente essa lógica se mostrou equivocada. Tentar resolver uma crise fiscal fazendo cortes de gastos aprofunda a crise, retarda o movimento de recuperação e agrava suas consequências”, aponta.
O Estado, segundo Kenneth, tem o papel fundamental de indutor do crescimento. “Se o país não voltar a crescer, não teremos como gerar recursos para fazer frente aos desafios que estão colocados. Essa deveria ser a prioridade de cada governo”, observa o professor, que também ressalta a importância do investimento estatal em políticas de saúde. “As políticas de saúde têm o potencial de reduzir os efeitos deletérios que uma economia em má condição gera para a população”, explica.
Confira a íntegra da entrevista:
Qual a relação entre austeridade e neoliberalismo? Mesmo governos não liberais são pautados por essa agenda. Como isso tem se dado no Brasil?
As propostas de austeridade derivam de um modelo, de uma forma de entender a economia, que historicamente tem se mostrado equivocada. O economista [americano] Paul Krugman enfatiza que, se o Estado cortar bastante seus gastos, os investimentos privados vão voltar. Isso é chamado de fada da confiança. A questão é que não se estabelece a confiança do mercado fazendo cortes na economia. Resolver assim uma crise fiscal aprofunda a crise, retarda o movimento de recuperação e agrava suas consequências. Vários economistas não ortodoxos têm mostrado que na história isso não funciona.
A teoria neoliberal é mal definida, mas de qualquer maneira essa perspectiva ideológica e essa visão de mundo estão atreladas a duas ideias fundamentais. A primeira é que o mercado é um ente autônomo frente ao Estado, que necessariamente se autoequilibra e, portanto, qualquer tentativa de intervenção no mercado é considerada negativa, porque levaria ao seu desequilíbrio. Outra característica importante, consequência dessa primeira, é que, no fundo, trata-se de uma perspectiva antidemocrática. Postula-se que qualquer interferência do Estado e, portanto, da política democrática, no mercado seria indevida.
É o que estamos assistindo no Brasil de forma completamente absurda. Para se dar conta de uma crise fiscal que tem predeterminantes bastante complexos, adota-se uma retração absoluta que está levando a uma recessão. Isso agrava o cenário, uma vez que com a recessão, há queda da arrecadação e o Estado tem menos capacidade de intervenção, o que compromete as políticas públicas...
O que foi feito no Brasil é temerário, sem querer fazer trocadilho, por incluir essa medida na Constituição [com a Emenda Constitucional 95, do teto de gastos públicos]. Em um momento em que o orçamento já estava bastante restrito.
O orçamento de 2018 foi aprovado em 13 de dezembro....
Com cortes enormes em Ciência & Tecnologia, entre outros. Essa política privilegia o rentismo. Superávit primário, austeridade fiscal, tudo isso tem como pano de fundo a ideia de que o compromisso básico do Estado é pagar juros da dívida. O resto que se dane.
Estamos vivendo isso no Rio de Janeiro. O contrato com o funcionário é o primeiro que “dança”, bem como todas as políticas públicas, porque é preciso honrar a dívida. E ficamos nessa situação peculiar, com um país em franca recessão há anos e os bancos realizando os maiores lucros de sua história.
Há uma série de medidas, como a desvinculação de receita orçamentária, implementadas para arrancar dinheiro das políticas sociais e destinar ao pagamento de juros da dívida. Ficam procurando bode expiatório para isso, a reforma da Previdência, mas é o modelo econômico que é fundamentalmente falho e perverso.
A outra grande questão é que temos uma estrutura tributária que é regressiva – e também perversa. Proporcionalmente, quanto menos você ganha, mais você paga de imposto. Mesmo que não pague imposto de renda, os impostos que existem sobre o consumo são muito altos. Uma pessoa pobre, que não tem condições de fazer poupança, que gasta praticamente tudo o que ganha para sua subsistência, compromete mais, proporcionalmente, sua renda com imposto.
Só o Brasil e a Estônia não taxam dividendo, por exemplo. Há uma elite que paga muito pouco imposto, se é que paga, deixando-se a carga tributária toda em cima das classes de menos renda. Um quadro complicado, cujo modelo tem que ser repensado e revertido. Temos que voltar a crescer e temos que ter uma política redistributiva, se não seremos o país mais desigual do mundo, preso nesse ciclo de armadilhas em que estamos agora.
Quais as diferenças e aproximações entre as medidas de austeridade aplicadas na Europa e as que estão sendo aplicadas no Brasil?
A lógica é a mesma: cortar o gasto do Estado e, principalmente, os gastos com políticas sociais. É cortar aposentadoria, recursos para a saúde... No caso da Europa, já vem de longo tempo a erosão do Estado de bem estar social; não é de hoje que vêm sendo implementadas medidas que restringem direitos que haviam sido conquistados. Isso se acelera a partir da queda do Muro de Berlim e do fim da União Soviética. Deixa-se de ter o “período vermelho”, deixa-se de ter motivação ideológica para implementar políticas que favoreçam o trabalhador.
A Espanha, que supostamente está começando a se recuperar, tem taxa de desemprego de 25%. Na verdade, só quem marchou contra essa maré de provocar e aprofundar a recessão foi a Islândia e, atualmente, Portugal. Só que, no caso Europeu, as decisões tomadas em um determinado ano, poderiam ser revertidas no ano seguinte.
No Brasil, essa regra passou a fazer parte da Constituição por 20 anos, amarrando quatro mandatos presidenciais. Trata-se de uma política completamente equivocada, que, para ser revertida, precisa de três quintos dos votos da Câmara em duas votações e mais três quintos no Senado. Criou-se um constrangimento voluntário do Estado brasileiro, que chamou a atenção até mesmo de revistas internacionais mais conservadoras, como a [inglesa] Economist, que diz se ser essa a mãe de todas as políticas de austeridade. Os efeitos podemos ver hoje, e continuaremos vendo.
O Banco Mundial recentemente divulgou o relatório ‘Um ajuste justo: análise da eficiência e da equidade do gasto público no Brasil’, que critica o país por gastar muito com políticas sociais, que considera ineficientes. Como o senhor avalia esse discurso da cobrança pela eficiência que sustenta o corte de serviços e a redução dos gastos públicos?
Trata-se de um discurso falacioso que não se sustenta tecnicamente. Esse relatório é claramente uma peça ideológica, feita para justificar a política inadequada que vem sendo implementada. Essa lógica existe desde aqueles programas de ajuste estrutural dos anos 1980, em que a ideia é o predomínio da iniciativa privada, privatizar tudo, o Estado não oferece assistência.
Na verdade, o problema da arrecadação tem dois aspectos fundamentais: a queda da atividade econômica, que provoca mais recessão porque a arrecadação cai cada vez mais, e a política fiscal completamente imprópria. O que começou a gerar o problema foi o processo equivocado de desoneração que, em determinado momento do governo Dilma foi implementado e tirou receita do Estado: não é que o Estado esteja gastando demais e sim, arrecadando de menos.
As políticas sociais são extremamente necessárias. O Brasil está entre os países mais desiguais do mundo e todo o processo de inclusão social que o país conseguiu fazer ao longo dos últimos 12 anos está sendo desfeito de forma acelerada. O estudo do Banco Mundial é falacioso, enviesado ideologicamente e trabalha com dados completamente equivocados.
Mais especificamente em relação à saúde pública, quais os efeitos da austeridade sobre a população?
Há um livro muito interessante, traduzido para o português, cujo título original é The body economic: Why austerity kills, de David Stuckler e Sanjay Basu, que chama atenção exatamente para as consequências dessas políticas sobre a saúde. Eles dizem que o efeito da recessão na saúde não é tão direto e imediato quanto se possa pensar.
Na redução da atividade econômica, há menos transporte de carga, por exemplo, menos carros, menos caminhões na estrada e, com isso, reduzem-se os acidentes e o congestionamento. O que acaba sendo determinante para a saúde das pessoas é a resposta que o Estado dá para a recessão. Se essa resposta é mais recessão, os efeitos se aprofundam.
Vive-se em situação de precariedade, com menos recursos, com redução de políticas que poderiam estar compensando os danos criados pela recessão, como está acontecendo com o Bolsa Família, cujo número de beneficiários está sendo cada vez mais reduzido. A epidemiologia social vem mostrando o quanto o modo como as pessoas vivem é determinante para a maneira como adoecem.
No cenário de recessão, aumenta a probabilidade da doença por um lado, e, por outro, as redes de proteção que permitiriam fazer frente a isso são cortadas. O problema é que esses efeitos não são sentidos de imediato. Os resultados efetivos, alguns deles, só vão poder ser vistos daqui a algum tempo. As doenças crônicas, por exemplo, não se manifestam imediatamente.
De qualquer forma, a gente já vê efeitos na organização do sistema de saúde, como falta de remédios e cortes em diversas áreas. Se o SUS nunca foi financiado como deveria, agora está na pior situação possível. É como disse Gastão Wagner [presidente da Abrasco –Associação Brasileira de Saúde Coletiva]: é a primeira vez na história que um ministro da Saúde é contra o SUS.
Existem políticas de saúde que, mesmo em situação econômica desvantajosa, podem ter efeitos positivos. Vou citar um exemplo do Brasil: durante a chamada década perdida, os anos 80, em que a economia ficou patinando, conseguimos fazer reduções importantes na mortalidade infantil, com incentivo à vacinação e agentes comunitários de saúde. As políticas de saúde têm o potencial de reduzir os efeitos deletérios que uma economia em má condição gera para a população.
Existem alternativas para conter o avanço da agenda de austeridade no Brasil? Governos de centro-esquerda são capazes, neste momento, de resistir a essa agenda?
Espero que sim. O governo Lula, por exemplo, tentou se caracterizar por uma política de conciliação. Enquanto estava em tendência de crescimento, conseguiu pegar as sobras desse crescimento para investir na população mais pobre ou mais carente, sem mexer nos privilégios do que alguns jornalistas chamam de andar de cima.
Nas condições atuais, sem uma reforma tributária não se consegue. E não sou eu que estou dizendo. Thomas Piketty, que já mencionei, autor da obra fantástica O capitalismo no século 21, mostra que se você não tem regulação e intervenção pesada do Estado, a tendência do capitalismo é criar cada vez mais desigualdade e favorecer cada vez mais a concentração de renda.
Se não tivermos medidas para reduzir essa concentração de renda – o que significa criar um imposto de renda progressivo, taxar as camadas mais altas, taxar o grande capital, instituir, como está na Constituição, o imposto sobre grandes fortunas – não vamos conseguir reverter essa situação. Nesse sentido, o Estado tem papel fundamental de indutor, para que seja retomado o crescimento. Se o país não voltar a crescer, não teremos como gerar recursos para fazer frente aos desafios que estão colocados. Essa deveria ser a prioridade de cada governo.
Quais as possibilidades de instituirmos hoje esse caminho no país?
A trajetória histórica do Brasil sempre foi de oligarquias extremamente opostas e antagônicas a essa perspectiva. Sempre que se tenta caminhar um pouco nesse sentido, vemos a reação desses grupos. Vargas, por exemplo, foi levado ao suicídio; Juscelino quase foi impedido de tomar posse; vemos o que aconteceu com Jango [parlamentarismo e depois golpe militar] e estamos vendo isso também agora, com essa perseguição judicial ao Lula.
Precisamos mobilizar e esclarecer a população quanto ao que está sendo perdido. As pessoas estão começando a sentir os efeitos dessas medidas de austeridade no bolso. A agenda conservadora foi imposta com velocidade e intensidade tamanhas, que não permitiu que as pessoas organizassem uma reação logo no início. Já agora, está sendo mais difícil, por exemplo, aprovar a reforma da Previdência.
Em algum momento, espero que consigamos reverter o que foi feito em relação à nossa legislação. A primeira agenda, portanto, é anular todas essas medidas equivocadas que foram implementadas por esse governo pós-golpe, para depois pararmos para pensar soluções para país no futuro.
Fonte: RBA
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