Marco Feliciano PSC/SP Foto Joaquim Dantas |
Cazuza, nos anos 1980, muito bem formulou “eu vejo o futuro repetir o passado” e, de fato, nos últimos tempos é isso que temos visto, um passado temeroso que nos espreita, nos observa, esperando uma pequena distração para retornar. A política, de certa forma, pode ser vista de forma pendular, um pêndulo que ora está na extrema direita, ora descansa no centro, mas, infelizmente, ainda não chegou, de fato, à esquerda – embora lutemos para que isso um dia aconteça. E o pêndulo da política brasileira, que ficou nos últimos anos estacionado no centro-esquerda, tem dado uma bela jogada para a direita, de forma escancarada e incontestável. Contudo, essa atual guinada à direita não é fruto de um movimento de “políticos”, trata-se de interesses econômicos dos mais ricos, da mídia conservadora, de relações escusas entre políticos e elite e, incontestavelmente, da ação de certos segmentos religiosos na política nacional. Nesse cenário, é necessário discutir essa relação bastante sórdida entre o Estado e os religiosos — digo religiosos, pois a Religião, em si, não estabelece essas relações e, sim, seus líderes.
Estamos num momento muito delicado da política brasileira, julgamentos enviesados, uso político do judiciário, prisão de um ex-presidente, que teve início com uma perseguição declarada ao Lula e ao PT— ou alguém discorda que esse circo armado, com redes de TV, jornais, rádios e com tudo, foi uma tática para tirar Lula do pleito de 2018?
E, é nesse caldeirão que mais uma vez temos que assistir pastores, lideranças e diretorias de Igrejas Evangélicas induzirem as bases de suas igrejas ao apoio do que há de mais sórdido, perverso e sombrio na política: o benefício de poucos em detrimento das garantias de direitos da população.
Assim, precisamos ver na história o quão prejudicial as lideranças protestantes e evangélicas já foram à democracia brasileira. Diga-se de passagem, uma democracia ainda débil, que está engatinhando e, haja vista os últimos acontecimentos, não sabemos se chegará a andar. Para tanto, farei uma pequena regressão à década de 1960, pouco antes de Castelo Branco assumir a Presidência, momento no qual Eneas Tognini, o então presidente da Convenção Batista Brasileira (CBB) conclamou a Igreja Batista a jejuar e orar para que Deus livrasse o Brasil da “ameaça comunista” e abençoasse o governo militar. Dentre tantas demonstrações de apoio que Igrejas Protestantes deram à Ditadura civil-militar, escolho esse episódio já que após 50 anos dessa conclamação Batista, o atual Presidente da Convenção Batista Brasileira (CBB), pastor Luiz Roberto Sivaldo, publicou nas redes sociais um vídeo convocando os evangélicos para uma campanha de jejum e oração em prol do “futuro da nossa nação e pelos juízes do STF”, em ocasião da votação do Habeas Corpus do Lula. Em outras palavras, religiosos convocam atos de Fé em prol da nação, quando, na verdade, estão conduzindo o povo para quem confiar e apoiar politicamente. E qual a grande armadilha dessa postura? Parece que não se trata de política, parece que são pessoas religiosas e que estão recorrendo a Deus para que seja feita “a vontade Dele” – uma grande mentira e uma grande cartada.
Líderes religiosos são fundamentais para a manutenção do status quo da sociedade, pois para quem tem Fé, a “vontade de Deus” é argumento irrefutável. A grande pergunta que temos que fazer é: será que esses homens (sim, grande maioria desses líderes são homens, e brancos) são representantes de Deus, ou de interesses bem específicos, daqueles setores que têm dinheiro e poder político?
Na década de 1960, os argumentos dos pastores evangélicos para que os fiéis apoiassem a ditadura versavam sobre: “os comunistas vão pegar metade de tudo que vocês têm. Imaginem: metade da nossa Igreja confiscada por eles?”; “Eles vão implementar um Estado Ateu, vão perseguir os cristãos”; “Eles vão acabar com a família, influenciar nossos filhos”, dentre outros absurdos. E dessa postura criticável da Igreja, quais foram as heranças mais terríveis? A primeira, foi ligar o comunismo ao ateísmo, e, consequentemente, à esquerda e às pautas dos direitos humanos e de Justiça Social. Sim, uma ligação extremamente arbitrária e infundada. A segunda herança dessa postura conservadora assumida por muitas igrejas cristãs, foi a criação de uma esfera de pânico que ligou diretamente os “comunistas” ao fim da liberdade religiosa, tornando-se, na época, a única alternativa apoiar a Ditadura civil-militar. Hoje, essa postura se manifesta em forma de apoio a boçais como Jair Bolsonaro, Marco Feliciano, Magno Malta, dentre outros, como se esses fossem os únicos capazes de livrar o Brasil da “ameaça” comunista.
Foi no bojo dessa esfera de pânico, que se criou no imaginário dos crentes a ideia de que pautas progressistas são incompatíveis com a Fé — como se para ser favorável a um governo de esquerda, fosse necessário abandonar a Fé, negar a Jesus e à Bíblia. Uma grande lorota. A própria Teologia da Libertação, que nasce no coração da Igreja Católica, assim como a Teologia da Missão Integral, de origem protestante, versam sobre Justiça Social e Direitos humanos, sobre a preocupação com os mais pobres e são altamente críticas ao sistema econômico atual.
Gerar pânico entre os fiéis cumpre um duplo papel: apoio político e um rebanho mais presente na igreja. Afinal, por conta do medo, as pessoas vão acreditar no que os “pastores” dizem e, por outro lado, quanto mais medo as pessoas tiverem, mais elas frequentarão a Igreja — pois os cristãos têm um antigo hábito de atrair as pessoas para a Igreja pelo medo, nunca pelo amor. Isto é fácil de perceber, basta fazer uma pequena consulta no perfil de alguns religiosos e veremos essa tática em ação: uma mistura de pânico e histeria.
– em 06/04, Silas Malafaia publicou em seu perfil do Twitter: “ESQUERDOPATAS! PETRALHAS! COMUNISTAS! CALADOS! Vocês não tem moral para acusar ninguém. Podem me caluniar, difamar. A caravana passa e os cães ficam latindo. ENTENDEU? Só kkkkkk muito kkkk de vocês kkkkkkk”;
– em 04/04 o Senador Magno Malta publica: “General Vilas Boas, meu apoio e solidariedade”;
– em 06/04 Marco Feliciano declara: “A nossa bandeira nunca será vermelha!” (em alusão à proibição da venda de Bíblias na “China Comunista”).
Essas manifestações públicas desses pastores são um misto de violência, má fé e deboche. Atrás de cada uma dessas expressões está implícita a ideia de que: “Deus jamais apoiaria esses comunistas”; “Deus é pela ordem”, “Deus é pela pátria” e, para fechar, “Feliz a nação cujo Deus é o Senhor” (a frase que é a capa do Perfil do Deputado Marco Feliciano). Pergunto a vocês, que deus eles querem que seja o senhor do Brasil: o deus da injustiça social, do privilégio para poucos, do sucateamento do SUS, da opressão de gênero, da censura? Esse não é o meu Deus, com certeza!
E a boçalidade é tanta, que qualquer um que defenda um mínimo de dignidade humana para o outro é tachado de “comunista”, “esquerdopata”, “petralha” e, no limite, de intolerante religioso! Sim, meus caros, sim, de “intolerante religioso” contra os cristãos. Quando da discussão da votação do relatório da PEC 181/2015, o Deputado João Campos
(PRB) disse que ser contra a aprovação da PEC 181/2015, era uma questão de intolerância religiosa, contra princípio religioso do aborto ser pecado (parece que para esses políticos a moralidade cristã equivocada que eles pregam, é maior que a Constituição Federal). Pois bem, é um absurdo deputados legislarem com princípios religiosos, e é mais absurdo ainda que se apresente nesses termos questões que são políticas, de direitos e não de fé. Assim, defender qualquer pauta que verse sobre “Direitos Humanos”, faz de você um anticristão, te coloca contra Deus — ironicamente, são esses mesmos senhores que reproduzem a intolerância religiosa no cenário público, com insultos às outras formas de espiritualidades.
E a ofensiva conservadora não tem pudor algum em falar que está do lado do “Deus Cristão”, o que é uma arbitrariedade e um afronte à constituição de um país que se diz laico. Uma das grandes mostras de força destes apoiadores, foi a Marcha da Família Com Deus Pela Liberdade, que organizou uma série de manifestações ocorridas entre 19 de março e 8 de junho de 1964, mostrando-se favorável ao regime mais cruel que nosso país viu nas últimas décadas. Desse mesmo discurso que versa pelo “bem da família brasileira”, derivam a intolerância religiosa, o machismo, a homofobia, a transfobia e o ódio aos marginalizados pela sociedade.
Por outro lado, se os líderes religiosos aproveitam de seus meios de comunicação de massa, dos púlpitos e do medo dos fiéis para promover uma política conservadora, nefasta e suja, os que se dizem progressistas não param para refletir que no Brasil, hoje, são aproximadamente 100 milhões de cristãos (entre católicos e protestantes) e que a liderança religiosa não representa essa população. Eu sempre me pergunto, quem está falando com essa gente toda? Quem tem se preocupado em tecer diálogos com uma grande parte da população que se vê encurralada entre a pobreza e o discurso de ódio? Afinal, grande parte da população que “apoia” esses canalhas é de pessoas pobres, as mais afetadas pela ofensiva conservadora.
Dado o panorama, insisto que os progressistas precisam descer de seus poleiros político – acadêmicos e ir, respeitosamente, às comunidades religiosas e conversar com as pessoas que as frequentam. Precisamos entender que essas pessoas têm sido preteridas de nossos belos discursos pelos Direitos Humanos, pela justiça social e tudo mais. Enquanto isso, líderes religiosos mal intencionados aproveitam desse silêncio para propagarem ideias conservadoras em nome de Deus. Há resistência progressista no meio cristão? Há, sem dúvidas. Contudo, essa resistência acontece sem recursos financeiros, sem apoio de partidos políticos ou de programas de TV e, por isso, não consegue acessar o grande grupo de religiosos que é a base eleitoral desses tiranos disfarçados de pastores.
Temos a dificuldade da mídia, da falta de dinheiro para o tanto de atividades que gostaríamos de fazer? Sim. Mas, por outro lado, qual esforço temos feito para conversar com os mais de 100 milhões de brasileiros que são cristãos? Sem ataques, sem considerar que essas pessoas sejam alienadas? Sem tratá-las como incapazes de entenderem os dilemas políticos? Será que nós estamos dispostos a conversar com a base que sustenta esses políticos religiosos no poder? Se a revolução virá das camadas populares, essa é a cara das igrejas evangélicas no Brasil, justamente, a população pela qual dizemos lutar, mas não ousamos, sequer, ouvi-la. Precisamos aprender atacar esses falsos moralistas, sem atacar a base da igreja. É preciso abrir diálogo, estourar a bolha, alcançar, de fato, essas populações. Temo que a esquerda brasileira se torne um museu de grandes novidades, daquelas que nunca alcançaram quem precisa ouvi-las.
Simony dos Anjos é graduada em Ciências Sociais (Unifesp), mestranda em Educação (USP) e tem estudado a relação entre antropologia, educação e a diversidade.
fonte Justificando
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