Um dos aspectos negativos da “cultura” das redes sociais é uma espécie de superindividualização aparente.
por Paulo Vinícius no Portal Vermelho
A rede semeia ilusões. Esclarece Eva Illouz em “O Amor nos tempos do Capitalismo” que certas prenoções que nos aparecem como dados de realidade, acabam sendo intrinsecamente falsas. A internet baseia-se em grande medida na assunção dos pressupostos do “credo psicológico”: 1) seria possível descrever a si mesmo e com fidelidade através de palavras; 2) uma tal transcrição da personalidade poderia ser traduzida para os algoritmos e formulários que compõem os nossos avatares, perfis, o que permitiria a identidade entre o que somos e nossa apresentação nas redes; 3) haveria equivalência das relações humanas virtuais e reais, entre perfis e personalidades; 4) a constituição de um mercado de personalidades, cuja interação ampliaria nossos horizontes, inclusive afetivos. Ora, já calejados, é fácil perceber o engodo, se miramos bem no olho do bicho, nem maior, nem menor do que é.
Nesse “decifra-me ou te devoro” pós-moderno, o mundo da auto representação mercantil das redes diferencia-se muitíssimo do que somos em realidade. Sentimos a solidão, que não diminui com os novos laços que se dão dentro dessa fôrma, que visa sobretudo ao lucro e ao controle. Observamos a crescente dificuldade dos seres humanos em diferenciar realidade e o “real” pintado na rede. As notícias falsas que criam os cachorros loucos do fascismo são um fenômeno tão estrutural quanto o mapear espião a serviço das agências de segurança com fins políticos e militares. O “big data” é o grande irmão, novo oráculo dos anseios humanos, reduzidos ao fetiche da mercadoria. Liberdade vira controle. Individualidade e identidade tornam-se padronização. E somos tangidos a acreditar que esse é o único espaço válido para a política, a afetividade, o conhecimento, a ponto de carregarmos para o vaso sanitário um GPS, uma câmera de vídeo e um gravador e acharmos isso normal. Sorria, você está sendo manipulado.
Como não poderia deixar de ser, a política é profundamente influenciada por essas concepções habilmente urdidas. O maquiavelismo de um Steve Bannon é apenas a face visível de algo mais profundo, estrutural, que está na gênese da internet e nos seus desdobramentos, como o inverno fascista que sucedeu a dita “primavera árabe”. A não ser que acreditemos no conto da carochinha do espontâneo que une numa mesma quadra histórica a internet, os celulares e o ressuscitar do fascismo como alternativa politica. No capitalismo é assim, todo o progresso da humanidade é pervertido pelo fetichismo da mercadoria a serviço dos oligopólios e dos super-ricos, os semideuses que compõem o 1% que define os destinos do planeta em sua marcha da insensatez.
É nesse ambiente cada vez mais árido, de pescoço duro de tanto olhar o celular, que vemos surgir a militância que se esgota nas redes. Mesmo entre os encarnados, proliferam concepções estranhas, comportamentos “lacradores”, que é o que se exige como critério de sucesso na rede. Há até quem se diga comunista e não compreenda nem o valor da luta coletiva nem da linha política. “Onde você milita? Nas redes, e só.” A política das personalidade equivale à entronização da cultura dos avatares e youtubers, agravada com a autonomização das máquinas eleitorais. De repente, nesse mundo de aparência e voto, a complexidade da política e da militância passa a resumir-se a uma espetacularização sem fim. E, para tanto, a agressividade é imprescindível. Tem que “lacrar”. Tem que “causar”. Tem que ter “likes”, seguidores, e essa acriticidade pode estar na raiz das derrotas que temos sofrido, um fenômeno mundial, inscrito na estratégia de guerra híbrida, golpe suave e avanço do irracionalismo, do fascismo e da extrema direita.
Escandalizam-me a perda do valor do coletivo e as ilusões superindividualistas, que criam entre nós mesmos essas personalidades que se lastreiam apenas em máquina e nuvem. A competição para “lacrar” é tamanha que a reflexão fica em segundo plano. E aí, desperdiçamos o mais transcendente patrimônio da vigência heróica do leninismo, que é a capacidade de elevar incontáveis indivíduos atomizados sob opressão à unidade do coletivo que constrói a “linha”, a política, o caminho e mudam em profundidade a realidade. Mas parece que o “bonito” é afirmar-se contra a linha política, em vez de a compreender e aplicar. Do mesmo modo que somos lindos e maravilhosos, felizes, bem sucedidos para além da medida em nossos perfis – só que não – comportamo-nos como manada ao achar que nossa individualidade é mais importante que o nosso conhecimento, a teoria, a organização, toda essa riqueza que é o único caminho para ser comunista. Teóricos de orelha de livro, analistas do efêmero, vaidade das vaidades, nada disso vale um cibazol partido, não nos iludamos.
Curiosamente, são comportamentos altamente padronizados, coletivos, que ocorrem não apenas na esquerda, mas compõem também os perfis “bolsominions” que ridicularizamos. No mundo de espelhos da pós-modernidade e da pós-verdade, a ilusão é tudo, e a realidade é nada.
Daí me vem à memória o personagem célebre do cartunista Péricles, o Amigo da Onça, notável em sua capacidade de mal aconselhar e pôr os “amigos” em dificuldade, daí o nome: não era o teu amigo, mas da onça que te queria devorar. A recordação emergiu em meio às polêmicas quanto aos desdobramentos da linha política do PCdoB: a defesa de uma Frente Ampla para que o Brasil possa superar a dramática encruzilhada histórica que se reafirma: Soberania, Democracia ou Direitos ou entreguismo, ditadura e escravidão.
É nesse contexto que surgem diversos conselhos de amigos da onça. Causa um ciúme grande essa tradição do PCdoB pensar por si. Por um lado, “amigos” propõem-nos o gueto do sectarismo, que representaria a “pureza” da esquerda, quando em verdade significa apenas a derrota e a subordinação ao hegemonismo deste ou daquele partido e cacique político. Por outro, ouvimos a cantilena eleitoreira do oportunismo sem base nem ligação com o povo, que nos aconselha atalhos para o precipício. E, sabe-se lá por que e com que interesses, viceja, mesmo entre nós, certo tipo de miopia que tem tudo a ver com o advento das redes e dessa cultura de avatares e perfis “lacradores”. De um lado e de outro, o radicalismo é equivalente à pobreza de argumentos e teoria. O senso comum, as piadinhas, os ataques e a superficialidade substituem um amplo e generoso caudal teórico em que sequer se põem os pés. Daí a um “Adeus Lênin”, é um pulo. De há muito os comunistas sabemos diferenciar aparência e essência, desviando-nos de radicalismos estéreis e oportunismos igualmente auto-destrutivos.
Parece que a “linha” é um detalhe, ou um desafio a ser batido. Mas a nossa linha política, aprendi ao longo do tempo, é uma riqueza, uma luz, um caminho. Não é um guia infalível, nem é imutável. Desenvolve-se com a minha e a tua ação concreta, na vida e nas redes, e permite reconhecermo-nos como aquilo que somos, se somos comunistas, que têm linha, coletivo, têm uma têmpera especial. E é tudo isso que nos permite ligarmo-nos ao povo.
Nesse caminho de buscar a ligação com as massas, não há atalhos, mas há caminhos. A UJS de há muito, e a CTB mais recentemente, hão demonstrado a utilidade das escadas que permitem ao nosso povo avançar para a consciência avançada e de vanguarda. Nós defendemos uma ampla aliança e somos cuidadosos e igualmente amplos no contato com o povo. O forte anticomunismo que se cevou em nossa pátria e no mundo nunca nos impediu de trabalhar com a situação concreta e a realidade concreta, e toda batalha é um capítulo para o avançar da consciência. Comunista que se assusta com isso, vacila, apenas. Tarimbados nas lidas da clandestinidade, serenos face às dificuldades, cheios de esperança na nossa gente, habilmente o PCdoB defende uma Frente Ampla, o Movimento Comuns e o Movimento 65 como espaços para crescer nosso diálogo, influência e a consciência do nosso povo, são caminhos da guerrilha política para vencer o cerco.
Os “amigos”que por isso se doem, que se apressam a decretar nosso fim, que nos “denunciam”, cobrando de nós o patíbulo, a burrice e o martírio, perfilam-se ao lado do personagem de Péricles, amigos da onça, anseiam pelo nosso fracasso, é indisfarçável. Teremos cada vez mais chapas e candidaturas próprias, o PCdoB se afirmará e crescerá porque tem a política mais justa e generosa. Temos as lições do passado, o coração com o povo e os olhos no futuro. Há que focar no que soma e ouvir quem conosco está, muito ajuda quem não atrapalha.
Nossa política é densa, profunda, complexa. A Frente Ampla não é a descaracterização de nosso Partido, a perda da capacidade de pensar por nós mesmos. É, em verdade, a mais refinada e sincera manifestação de solidariedade com o nosso povo sofrido, o único caminho viável para determos a escalada de derrotas que nos abatem desde o Golpe de 2016, é combater nosso isolamento, estigmatização, por um lado, e a pasteurização e a esterilização do reformismo, de outro. Muitos seguiram, no passado e no presente, o caminho fácil da cantilena eleitoreira. Sua “genialidade” deu em desmoralização e derrotas, não é à toa que desde fora nos conclamam a seguir para o pântano. No caminho do centenário, somos desafiados a pensar no movimento presente com o olhar no futuro; e sem Partido Comunista não haverá socialismo nem futuro para a humanidade. Como dizia o ideólogo do PCdoB, João Amazonas, há neste princípio de século luzes e sombras, mas a humanidade há de testemunhar grandes esperanças. Mas apenas, como ensinou Renato Rabelo, se não perdermos de vista o grandioso ideal socialista.
Paulo Vinícius
Sociólogo e Bancário. Membro da direção Nacional da CTB.
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