Por João Claudio Pitillo e Roberto Santana Santos –
Com a chegada da Uber no Brasil no ano de 2014 uma polêmica se estabeleceu: que tipo de serviço essa empresa prestava? Já que ela mobilizava milhares de carros, mas negava que fosse empresa de transporte; empregava milhares de pessoas, mas dizia que não contratava ninguém; poluía e causava engarrafamentos, mas afirmava que era moderna e antenada; ganhava milhões, mas não pagava impostos; dizia ser “VIDA”, mas não tinha nenhum fim social. Por último, delimitava o preço, mas não pagava salário e nem reconhecia as Leis Trabalhistas.
Anunciado inicialmente como aplicativo de carona, logo se revelou uma máquina voraz de cooptar “corações e mentes”, fazendo de seu objetivo primaz (depois seguida por várias outras empresas), o transporte individual privado, uma concorrência desleal com os taxistas de todo Brasil. Mas, para tanto, estabeleceram um lobby voraz e edificaram uma máquina de propaganda faraônica. A partir dessa junção criaram um tráfico de influência gigantesco, capaz de colocar os então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM), o presidente do Senado Federal, Eunício Oliveira (MDB) e o próprio Presidente da República Michel Temer (MDB) de joelhos a partir da vinda ao Brasil do presidente da Uber, Dara Khosrowshahi, em novembro de 2017.
Recebido com pompas e circunstâncias, Khosrowshahi foi saldado pelo Ministro da Fazenda, à época Henrique Meireles, como chefe de Estado.2 A presença do presidente da multinacional foi tão significativa que ocasionou uma mudança radical no projeto de lei aprovado na Câmara dos Deputados meses antes, que estabelecia marcos regulatórios que evitavam o dumping social provocado pela Uber. Em uma virada fantástica, o Senado, a comando de Eunício e depois a Câmara comandada por Maia, criaram a lei 13640 que garante o direito da Uber e demais aplicativos de transporte a ignorarem o CBT (Código de Trânsito Brasileiro) e transportar pessoas sem nenhuma regulamentação, contribuindo assim para o sucateamento do transporte público, além de condenar à extinção o modal de táxi.
Saudados por muitos como inovação, a Uber na verdade intimava um processo perigoso de exploração da mão de obra e precarização do trabalho, criando uma condição análoga à escravidão. Onde pessoas sem nenhuma experiência pegam um carro, que muitas das vezes está com a manutenção comprometida, e começam a transportar pessoas de um lado para o outro sem a menor regulamentação. Não demorou a aumentarem os engarrafamentos, as taxas de poluição, sem falar na enxurrada de crimes cometidos por delinquentes que fingem ser motoristas (roubos e estupros lideram as ocorrências). Para um país onde o transporte público é um caos, graças à privatização, esses carros de transporte a um custo pequeno parecem ser um bom negócio.
Essa é uma questão nevrálgica: o preço. Como esses aplicativos conseguem ter um preço tão baixo? Simples! O não pagamento de impostos e a superexploração desses motoristas, que chegam a trabalhar por 16 horas diárias sem nenhum direito ou garantia trabalhista, permitem que esses “aplicativos” estrangeiros, geridos por bancos, obtenham lucro máximo com custo mínimo. A garantia de impunidade está sendo continuamente referendada por uma série de tribunais Brasil a fora. Esses aplicativos têm conseguido a anuência em grande parte do Judiciário, Legislativo e Executivo para explorarem os brasileiros, poluir e destruir as cidades e por último, evadir bilhões de reais para as suas matrizes sem nenhum controle.
Para o processo de ataque aos trabalhadores brasileiros e a violação do Estado nacional, o processo de uberização tem sido uma grande ferramenta. Com as Reformas Trabalhista e da Previdência (realizadas por Temer e Bolsonaro), a legislação foi adequada ao processo de uberização, isto é, a direita brasileira deixou o campo aberto para a livre ação desses aplicativos de transporte, que depois de subverterem as leis de Trânsito, também alienaram as leis de proteção ao trabalhador, sagradas há mais de 70 anos atrás por Getúlio Vargas, o mesmo que alertara sobre a sanha do imperialismo contra o povo brasileiro, lá nos anos 1950.
O fim do governo Temer e a sua política neoliberal não foi um problema para a Uber e suas co-irmãs. Com a eleição de Jair Bolsonaro, um entusiasta desse tipo de serviço, eles ganharam de presente uma lei que determina que todo motorista de aplicativo deve ser MEI (Microempreendedor Individual). Dessa maneira, os “aplicativos” puderam fugir das obrigações trabalhistas. Além disso, receberam do STF o direito de captarem cada vez mais veículos, sem limitação, impondo um duro golpe na Mobilidade Urbana e ao Meio Ambiente. Seguindo a tendência de total liberdade aos “aplicativos”, o governo Bolsonaro nomeou Secretário de Privatizações o dono da locadora de carros Localiza, Salim Mattar, um dos homens que mais lucram com os “aplicativos”, já que aluga sua frota de carros para a realização desse serviço. Outro entusiasta desse serviço na equipe de Bolsonaro é o Ministro da Fazenda Paulo Guedes, que faz questão não só de fazer propaganda do mesmo, como divulgar suas andanças nesses carros.
Desde de 2014 que o Uber e a uberização têm se tornado uma tendência mundial. Os países que perceberam a gravidade desse tipo de serviço reagiram de imediato, proibindo, taxando e regulamentando; mas os Estados que se encontram acocorados diante do capital estrangeiro, têm tido dificuldade para entender o tamanho do perigo que esse processo representa para a sua soberania e para o bem-estar de seus trabalhadores. A OIT (Organização Internacional do Trabalho) já alertou a todos os países da gravidade para o mundo do trabalho, que o processo de uberização representa. Explica ela, que os trabalhadores ficam completamente expostos a precarização a partir dessas plataformas de serviços.
A uberização é o Cavalo de Troia do neoliberalismo, ela destrói o Estado nacional, escraviza os trabalhadores, rouba as informações desses usuários e mapeia o país a partir da geolocalização. Isto é, deixa um país inteiro e sua sociedade exposta a um algoritmo controlado a partir do Vale do Silício nos Estados Unidos. Tudo isso saudado como o “admirável mundo novo da modernidade” em transporte, onde os passageiros, são induzidos a serem “parceiros” desse processo de exploração. Desviando o foco da população pela luta de uma cidade mais limpa e com menos carros, onde o transporte público, de massa e não poluente deveriam ser os únicos a existirem.
Na luta contra esses aplicativos estão os taxistas de todo o mundo. No Brasil, os quase um milhão de taxistas têm sido a linha de frente nessa batalha, amargando uma crise no setor devido ao dumping social provido por essas multinacionais e abandonados à própria sorte pelos governos neoliberais dos últimos 4 anos. Essa categoria tem lutado praticamente só, sem apoio até mesmo de setores da esquerda e progressistas, que devido ao atrelamento ao liberalismo, não conseguiram até o momento entender que a luta “Nação x Império” hoje passa pelos taxistas. Uma categoria que na sua maioria é composta por autônomos, que não gozam de suporte para enfrentar o poderio econômico dessas multinacionais.
No dia 1º de julho os motociclistas que fazem entregas denunciaram a exploração que são vítimas, vinda desses mesmos aplicativos, durante a pandemia. Expostos a todas as intempéries do trânsito e da COVID-19, esses motociclistas decidiram denunciar o grau de precarização que estão submetidos. Fizeram uma paralisação para mostrar como têm sofrido para realizar as entregas, enquanto esses aplicativos ganham milhões sem nenhuma contrapartida. Ganham cobrando taxas dos estabelecimentos comerciais e lucram pagando valores ínfimos para esses entregadores, que muitas das vezes nem motocicleta possuem, realizando as entregas de bicicletas ou até mesmo a pé.
É inconcebível que alguém projete um Brasil desenvolvido com parte significativa de seus trabalhadores reféns desses “aplicativos” estrangeiros. Os motoboys conseguiram em poucas semanas mostrar o que os taxistas vêm passando há seis anos sem a menor ajuda do Estado brasileiro. Talvez os gritos dessas duas categorias possam mostrar para as três esferas de poder do país que esses “aplicativos” precisam ser detidos e sujeitados às leis de defesa do Trabalho, Meio Ambiente e Trânsito. É necessário que esses aplicativos sejam enquadrados como promotores de precarização, de evasão de divisas e de ampliadores da desigualdade social. Eles são uma ameaça à nossa soberania nacional, por isso precisam ser contidos.
Uber Go Home!
João Claudio Platenik Pitillo – Doutorando em História Social pela UNIRIO, pesquisador do Núcleo de Estudos das Américas da UERJ (NUCLEAS) e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
Roberto Santana Santos – Doutor em Políticas Públicas e Mestre em História Política pela UERJ. Atualmente Professor da Faculdade de Educação da UERJ e Secretário-executivo da REGGEN-UNESCO. Militante das Brigadas Populares.
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