21 de ago. de 2020

O desmentido de Bia Doria


Imagem: Fredy Uehara – Edição: Gabriel Pedroza / Justificando

Por Luiza Azevedo Duarte no Justificando

Na quinta-feira, dia 3 de julho, a socialite Val Marchiori publicou uma entrevista feita com Bia Doria, primeira-dama do estado de São Paulo, que viralizou nas redes sociais em razão de seu conteúdo discriminatório contra a população em situação de rua.[1]

Ao conversarem sobre os projetos sociais desenvolvidos por Bia, a mesma afirmou que não seria correto “chegar lá na rua e dar marmita e dar porque a pessoa tem que se conscientizar que ela tem que sair da rua. Porque a rua hoje é um atrativo, a pessoa gosta de ficar na rua”. Val complementa com a seguinte colocação: “Você estava me explicando e eu fiquei passada. Eles não querem sair da rua porque em um abrigo eles têm horário para entrar, eles têm responsabilidades, limpeza, e eles não querem, né”. Bia concordou e declarou que a pessoa em situação de rua quer “receber, ela quer a comida, ela quer roupa, ela quer uma ajuda e não quer ter responsabilidade”.

Para entender as nuances deste discurso, que não é nem um pouco inédito na sociedade brasileira, é imprescindível analisar dois aspectos: “quem fala” e “de quem se fala”. Primeiro, observa-se que as enunciadoras são duas mulheres cis brancas pertencentes a uma elite econômica privilegiada e que se beneficiam diariamente das estruturas do sistema em que estão inseridas. Bia Doria é ainda presidente do Fundo Social de São Paulo sendo responsável por promover ações de solidariedade para a população em situação de rua.

Segundo, sobre “de quem se fala?”, interessa trazer o processo de criação e anulação de estranhos da obra “O Mal Estar da Pós Modernidade”, de Zygmunt Bauman. Para o autor, esses estranhos englobam as pessoas consideradas “diferentes”, as que transgridem a ordem determinada e não se encaixam no mapa cognitivo, moral e estético do mundo. De acordo com o sociólogo: “Todas as sociedades produzem estranhos. Mas cada espécie de sociedade produz sua própria espécie de estranhos e os produz de sua própria maneira, inimitável”[2]. As pessoas em situação de rua, majoritariamente negras, são parte dos estranhos produzidos especificamente por uma sociedade capitalista racista. É sobre esses estranhos que as duas mulheres se referem: sempre objetos de discursos, nunca sujeitos deles; sempre massa homogênea, nunca indivíduos particulares. 

Por escancarar violências e desigualdades que são constantemente negadas e evitadas, homens, mulheres, idosos, adolescentes e crianças que vivem em situação de rua causam desconforto, incômodo, medo e vergonha nos domiciliados. Eles trazem à tona verdades que ameaçam o status quo e por este motivo devem ser anulados. 

Bauman ressalta que há duas estratégias distintas e complementares para enfrentar a desordem e este mal-estar causado pelos estranhos. A primeira é de caráter antropofágico, buscando a total assimilação desses estranhos e sua incorporação ao tecido social através da retificação de anomalias. A segunda estratégia é a de caráter antropoêmico, que nas próprias palavras do filósofo intenta “vomitar os estranhos, bani-los dos limites do mundo ordeiro e impedi-los de toda comunicação com os do lado de dentro”[3]. O objetivo é a total exclusão dos estranhos através do confinamento dos mesmos dentro de guetos, ou ainda, quando se demonstrar necessário e oportuno, a literal destruição física desses estranhos. 

É com este paradigma em mente que a entrevista de Bia Doria deve ser analisada. A primeira dama dá uma orientação muito clara aos ouvintes: não se deve dar marmita às pessoas em situação de rua para que assim se convençam a procurar acolhimento em abrigos públicos. No entanto, é preciso ressaltar que, de acordo com a nota oficial lançada pelo Ministério dos Direitos Humanos[4], somente a cidade de São Paulo tem 33.808 famílias em situação de rua (Cadúnico, março de 2020) e as vagas para acolhimento não chegam nem a 18.000. Além disso, as péssimas condições de infraestrutura da maioria desses abrigos e os inúmeros casos de abusos morais e maus tratos perpetrados por agentes públicos nestes locais acabam por afastar a população usuária. Não basta dar um teto para essas pessoas, é preciso proporcionar condições dignas e atendimento humanizado.

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