5 de jan. de 2017

Até quando?

Como professor de psicopatologia, sei que é questionável fazer afirmações categóricas sem examinar pessoalmente um paciente. Mas, no caso da recente chacina à sangue-frio de 12 pessoas em Campinas, arrisco-me a dizer algumas coisas, pois envolvem reflexões necessárias e urgentes sobre o adoecimento de nossa sociedade. 

Em primeiro lugar, chama a atenção a ausência de qualquer alteração psicopatológica óbvia na carta deixada pelo assassino. Em termos formais, não se verificam alterações de pensamento, conteúdo delirante, alterações de sensopercepção...

Descartando uma alteração de consciência, observa-se um discurso coerente e bem organizado, típico de uma pessoa com formação cultural relativamente elevada, que busca desenvolver uma justificativa...

Sidnei justifica a chacina múltipla que cometeu, inclusive do filho e da ex-mulher, seguida de suicídio, como um ato de heroísmo exemplar contra as leis de "um paizeco feito para bandidos e bandidas". A carta é raivosa, mas não é irracional. Na tipologia de suicídios proposta por Durkheim, podemos falar dum suicídio de tipo altruístico....

Dois temas percorrem a carta de alto a baixo: a misoginia e o ódio. A palavra "vadia" é repetida dezenas de vezes, como sinônimo de mulher. O aparente enquadramento de Sidnei na lei Maria da Penha e sua proibição de ver o filho, segundo ele, por imposição da ex-mulher, teriam sido os elementos que detonaram a sua "loucura". Para Sidnei: "na verdade, somos todos loucos, depende da necessidade dela aflorar". Mas o que nele aflorou, ao invés de loucura, foi ódio passional de tipo fascista.

Um outro aspecto chama a atenção na carta de Sidnei. Ela nos parece estranhamente familiar. Na realidade, é. A carta é um apanhado de quase todos os lugares comuns do pensamento de extrema-direita que tomou conta do Brasil nos últimos anos. A raiva, a misoginia, o horror ao feminismo, o desprezo à democracia, o discurso fanático anticorrupção, o ódio aos direitos humanos, ao Estado, a intolerância social, a glorificação da violência e dos militares. Está tudo lá. É como se ouvíssemos o discurso de algum coxinha exaltado numa mesa de bar...

O pensamento de Sidnei, em seu conteúdo, é uma expressão sociológica clara do que nos transformamos, graças à ação de grupos de extrema-direita, visando seus interesses políticos, e ao trabalho diário da grande mídia. 

Mais um trecho da carta: "Não tenho medo de ficar preso, além do que eu, preso, vou ter 3 alimentações completas, banhos de sol, salário, não precisarei acordar cedo pra trabalhar, vou ter representantes dos direitos humanos puxando meu saco, também não vou perder 5 meses do meu salário em impostos" 

Ao pensar sobre si mesmo na cadeia, Sidnei se atribui todos os jargões de extrema-direita sobre bandidos em penitenciárias (vagabundo, recebe salário, come 3 vezes ao dia, tem defensores dos direitos humanos, etc). Vida boa, enfim. 

Termina referindo-se a uma ideia do ultraliberalismo norte americano que também predomina no pensamento de extrema-direita que nos invadiu: ele será feliz porque não pagará mais impostos.

Noutro trecho, dirigido ao filho, Sidnei escreve: "Morto também já estou, porque não posso ficar contigo, ver você crescer, desfrutar a vida contigo por causa de um sistema feminista e um bando de loucas" - Aqui, uma pretensa declaração de amor paterno encontra seu grande obstáculo: são elas, "as loucas feministas"; outra ideia onipresente no pensamento de extrema-direita brasileiro. Mais adiante, Sidnei nega sua misoginia: "filho, não sou machista e não tenho raiva das mulheres"; mas acrescenta: "tenho raiva das vadias que se proliferam e muito, a cada dia se beneficiando da lei Vadia da Penha".

A ideia dum país dominado pela corrupção que sustenta os políticos, o que causa todos os seus males e mortes (o clichê dos clichês do fascismo brasileiro) surge no trecho a seguir, junto a uma referência aos "bandidos que matam por um celular": "No Brasil, crianças adquirem microcefalia e morrem por corrupção, policiais e bombeiros morrem dignamente na profissão, jovens de bem (dois sexos) morrem por celulares, tênis, selfies e por idolos, jornalistas morrem por amor à profissão, muitas pessoas pobres morrem no chão dos hospitais para manter políticos na riqueza e no poder".

O ódio misógino sequer poupa uma citação ao impeachment da presidente "vadia" Dilma Roussef, criticando, pelo viés da extrema-direita, a preservação de seus direitos políticos: "Infelizmente muitas vadias fazem tudo de errado para distanciar os filhos dos pais e elas conseguem, pois as leis deste paizeco são para bandidos e bandidas. A justiça brasileira é igual ao Lewandowski (um marginal que limpou a bunda com a constituição no dia que tirou outra vadia do poder), um lixo!" 

Quem costuma percorrer os meandros das publicações de direita das redes sociais, sabe que esta expressão - "É um lixo!" - é a maior ofensa possível. É outro jargão muito usado pela extrema-direita.

No trecho a seguir, Sidnei exalta o caráter exemplar de seu ato, definindo-se como o herói de uma classe: "Eu morro por justiça, dignidade, honra e pelo direito de ser pai! Na verdade somos todos loucos, depende da necessidade dela aflorar! A vadia foi ardilosa e inspirou outras vadias a fazer o mesmo com os filhos, agora os pais quem irão se inspirar e acabar com as famílias das vadias. As mulheres, sim, tem medo de morrer com pouca idade". 

A violência do seu ato foi, sobretudo, uma ameaça com endereço certo. As feministas que se cuidem. 

Assim, a violência extrema é apresentada como um recurso legítimo, quando cometida por alguém verdadeiramente corajoso, honrado e ultrajado. 

Esta "violência legítima" contra os diversos "lixos" que infestam o  país (feministas, bandidos, corruptos, petistas, gays) é moeda corrente no pensamento de extrema-direita que prolifera entre nós. Esta talvez seja a fórmula mais repetida dentre todas. Só a morte nos libertará dos lixos. 

É fácil, por exemplo, encontrar postagens nas redes sociais dizendo que o erro da ditadura militar foi só ter torturado, e não ter matado todos os comunistas do país enquanto era possível.

A evidência que se coloca diante desta tragédia é o fato dela pertencer não apenas ao homem que a cometeu e às suas pobres vítimas,  mas a todos nós. Ela é o produto de um país. Há pelo menos uma década este pensamento doentio, intolerante, misógino, homofóbico, anticomunista, antihumanista, contrário aos direitos humanos, pregador da barbárie e da violência viceja entre nós.  

Era uma questão de tempo para um fato como este acontecer, dentro desse caldo de cultura. O ódio, a agressão ao diferente, o ideário fascista, a ruptura dos padrões mínimos de civilidade, a morte como solução estão impregnados em todas as relações sociais e espaços públicos de discussão no Brasil. E também na carta de Sidnei. Seu ato monstruoso alimentou-se do ideário fascista que existe entre nós. 

Significativa parte da elite sócio-política e da grande mídia brasileiras tem estimulado este tipo de pensamento, pois ele foi-lhes útil para chegar ao poder pela derrubada de um governo legitimamente eleito, para desmoralizar a esquerda e para obter o que antes não tinham no Brasil: credibilidade social.

Diante de tamanho horror e irresponsabilidade, deixo no ar uma pergunta simples: até quando?

Manoel Olavo

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