Foto: EBC
Nesta segunda-feira, 06 de agosto de 2018, o General Antonio Hamilton Mourão, em aparição pública após ser anunciado como candidato a vice-presidente de Jair Bolsonaro, assim se manifestou quando falava da crise no Brasil durante almoço na Câmara de Indústria e Comércio de Caxias do Sul-RS: “Temos uma certa herança da indolência, que vem da cultura indígena. Eu sou indígena. Meu pai é amazonense. E a malandragem, Edson Rosa (referindo ao vereador Edson Rosa, negro, que estava na mesa), nada contra, mas a malandragem é oriunda do Africano. Então esse é o nosso cadinho cultural. Infelizmente gostamos de mártires, líderes populistas e dos macunaímas” [1].
Diante das palavras do general Mourão, uma conclusão é imediata: Bolsonaro foi extremamente coerente (talvez o mais coerente dentre todos os presidenciáveis) na escolha de seu vice.
Há alguns dias, durante o programa Roda Viva, Bolsonaro disse que os portugueses jamais pisaram na África, sendo que os africanos é que entregariam seus conterrâneos sem qualquer esforço europeu, em mais uma das muitas autoverdades de Bolsonaro, absolutamente contrariada pela História (e pelos vários países de língua portuguesa existentes no continente africano). No mesmo programa, Bolsonaro ainda disse que não possuía dívida histórica com os negros em razão da escravidão, visto que não teria escravizado ninguém, além de defender o fato de ter se referido ao peso de um homem negro de um quilombo em arrobas, unidade de medida utilizada para animais, afirmando que estava apenas “brincando” (brincadeira que está a lhe render um processo criminal perante o STF).
Portanto, não surpreendem as palavras utilizadas neste dia 06 de agosto pelo candidato a vice-presidente, General Mourão.
Mas de que diabos ele está falando?
Indolência indígena. Ora, o “mito” (não ocandidato) do índio preguiçoso ou indolente foi construído pelos invasores europeus, que ocuparam terras que não lhes pertenciam, mataram os povos que se opuseram, estupraram mulheres e crianças, e escravizaram os restantes. O “mito” foi propagado pelos vencedores, os genocidas invasores, que destruíram não só inúmeras vidas humanas, mas também uma infinidade de ricas culturas. Que levaram dezenas de milhões à morte pelo fio da espada e pelas balas de arcabuzes, pelos trabalhos forçados em minas insalubres, ou pela transmissão de doenças. Os mesmos indígenas que até hoje são exterminados em áreas rurais do Brasil por grupos simpáticos à plataforma (se é que há alguma) de governo de Mourão e do titular da chapa presidencial.
Mas os “indolentes” resistiram nas Américas, ainda que sem nenhuma chance de êxito. Eduardo Galeano [2] nos conta sobre TúpacAmaru, líder indígena descendente dos imperadores incas, que conduziu grande insurreição contra os invasores espanhóis, e em 1781 sitiou a cidade de Cuzco. Após diversas vitórias e derrotas, Túpac foi traído e acabou preso, sendo entregue aos espanhóis. Em seu calabouço, recebeu um enviado das forças usurpadoras, que em troca de algumas promessas, esperava que TúpacAmaru entregasse os nomes dos outros líderes rebeldes. A resposta foi dada com desprezo: “Aqui não há mais cúmplices além de mim e de ti; tu, como opressor, e eu como libertador, merecemos a morte.”
TúpacAmaru resistiu, assim como resistiram outros, e ainda resistem como podem os povos originários, a despeito da violência e da indigência intelectual que marca os seus algozes.
E a tal da malandragem do africano?
Irresponsável – embora não surpreendente – a declaração de Mourão, especialmente num país racista como o brasileiro, em que negros são maioria nas prisões, e onde os jovens negros têm quase três vezes mais chances de morte violenta do que os brancos [3]. Em que cresce vertiginosamente o número de homicídios contra mulheres negras, com um aumento de cerca de 54% entre 2003 e 2013, período em que as mortes violentas de mulheres brancas decresceram 10%. Um país em que negros ainda ganham menos do que brancos em mesmas funções no mercado de trabalho, e onde o racismo é visto muitas vezes como brincadeira, piada típica de stand up, e não como uma ferida aberta no mundo. Aberta e dolorida. Especialmente no Brasil, General.
Por aqui tivemos o extermínio de dezenas de milhões de indígenas ao longo de cinco séculos de invasão europeia, além da exploração da mão-de-obra de escravos africanos por outras centenas de anos. Apesar disso, somos obrigados a ver seu candidato a presidente e seus apoiadores afirmando que “não possuem dívida histórica com os negros pois não escravizaram ninguém, e porque seus antepassados, imigrantes europeus, foram explorados”, ignorando que (i) não há como se comparar a situação de pessoas trazidas acorrentadas nos porões de navios com a de outras que, apesar do desconforto e da insalubridade, vieram livres; (ii) e que esses imigrantes europeus, usufruindo de todas as benesses da branquitude em um país racista, cresceram, ocuparam e dominaram rapidamente os centros de poder da sociedade brasileira – ou alguém ousa comparar, em poder econômico e político, a aristocracia de ascendência italiana do estado de São Paulo com as famílias formadas por descendentes de escravos? Ou então com as poucas e isoladas famílias indígenas restantes neste país que lhes pertence por direito?
Pois é, General. Diante da infelicidade de suas colocações sobre a “herança” brasileira, só resta devolver com a pergunta: de quem herdaste teu racismo?
Bruno Bortolucci Baghim é Defensor Público do Estado de São Paulo, membro do Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial da Defensoria Pública e fundador do portal Pessoal dos Direitos Humanos.
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