Fonte: Gabriel Brito, do Correio da Cidadania
A discussão sobre o racismo parece ter dado um salto de qualidade em todo o planeta, que para além da pandemia do coronavírus lida com o aprofundamento de diversas crises. No centro de tais discussões, aparece o capitalismo e seu modelo societário, ainda que boa parte da mídia de massa e das classes políticas globais tentem dissimular. Mas é neste contexto de crítica socioeconômica que surgiu a Coalizão Negra por Direitos, articulação criada por mais de 150 movimentos sociais e comunitários. E sobre isso o Correio publica entrevista com Maria José Menezes, bióloga e ativista da Coalizão.
“O racismo, enquanto projeto de Estado, está em debate em todo o mundo. A brutalidade policial contra o povo negro não é mais vista como algo natural pelas sociedades modernas. O racismo faz parte da lógica capitalista, mas a humanidade está sentindo que é inviável sobrevivermos diante de tamanhas desigualdades e as organizações negras progressistas que combatem o racismo contam agora com um maior número de aliadxs brancxs”.
Além de deixar claro o caráter crítico ao capitalismo da organização, Menezes, também membro da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo e do Mahin Coletivo de Mulheres Negras, ataca o mito da democracia racial que ainda permeia os debates sobre o racismo no Brasil. Ela enxerga um avanço do debate no meio dos setores dominantes da sociedade, mas ainda insuficiente para a remoção das estruturas da desigualdade.
“Eu percebo que os segmentos economicamente dominantes estão mudando seus discursos, mas precisam mudar as práticas, o que significa abrir mão de privilégios. O Capital tem uma alta capacidade de se reinventar e diante deste levante antirracista pelo mundo, vejo o discurso de inclusão como algo totalmente parcial, que não se sustenta na prática”.
A noção ainda limitada, para não dizer equivocada, da centralidade do racismo nas relações sociais brasileiras explica muito do abandono estatal da maioria da população, o que a pandemia do coronavírus, conforme ela comenta, apenas expõe de forma mais dramática. Tal histórico explica a ascensão de um governo abertamente racista e grupos neonazistas no tecido social, o que torna inevitável a polarização política em termos mais radicalizados.
“Penso que esta experiência terrível do fortalecimento de correntes neofascistas e neonazistas, que explicitou a polarização da nossa sociedade, terá como efeito mais revoltas, até que derrubemos velhos paradigmas como o racismo e a mais-valia”.
A entrevista completa com Maria José de Menezes pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, como se chegou à formação da Coalizão Negra por Direitos? Quais articulações e militâncias se acumularam para que tivéssemos este novo instrumento de luta antirracista?
Maria José Menezes: A Coalizão Negra por Direitos surge como contribuição do Movimento Negro Brasileiro no combate ao racismo estrutural, elemento central da nossa sociedade e fator determinante das iniquidades vivenciadas pelas várias gerações de afrodescendentes no Brasil e em outras partes do mundo.
É importante escurecer que as organizações do movimento negro sempre se articularam coletivamente. A atual Constituição é o resultado do trabalho deste movimento, junto com outros movimentos sociais para que tivéssemos os direitos sociais garantidos para todas e todos.
A eleição de um presidente cuja agenda é orgulhosamente apresentada como restritiva aos direitos sociais dos segmentos de maior vulnerabilidade social como a população negra, os povos originários, a comunidade LGBTQIA+ e todas e todos que defendem uma pauta progressista, sinalizou a urgência da construção de uma agenda com pautas civilizatórias.
Nossa prioridade inicial era realizar ações de incidência política no Congresso Nacional, Senado, nas Assembleias Legislativas, nas Câmaras de Vereadores e nos organismos internacionais comprometidos com os direitos humanos como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA, a Organização das Nações Unidas (ONU) e Parlamento Europeu. Foram estes espaços que nos possibilitaram denunciar os horrores do Pacote Anticrime de Sérgio Moro; os homicídios de jovens, negros em sua maioria, pelo braço armado do Estado, os ataques aos povos quilombolas, a postura criminosa do Estado brasileiro frente à pandemia do novo coronavírus e cobramos a responsabilização deste governo pelas dezenas de milhares de óbitos de cidadãs e cidadãos brasileiros, majoritariamente pessoas negras.
Atualmente, compõem a Coalizão Negra por Direitos 150 organizações, entidades, coletivos, que têm na sua base mulheres e homens negrxs, em suas múltiplas orientações sexuais; moradores das periferias, de ocupações; somos estudantes, intelectuais, quilombolas, ribeirinhos, marisqueiras e pescadores artesanais, mães e pais de crianças e jovens assassinados pelas mãos dos agentes do Estado, representantes das religiões de matriz africana e de igrejas cristãs e organizações antirracistas aliadas. Toda esta diversidade de experiências de vida é a força que nos move para enfrentar os desafios e as demandas em um país onde a violência tomou proporções sistêmicas.
Correio da Cidadania: Em entrevista recente, Douglas Belchior nos disse que até aqui os racistas no Brasil conseguiram silenciar e bloquear as elaborações e representações políticas dos negros, “mas agora isso acabou”. Por que este momento pode ser visto como divisor de águas em relação ao acúmulo histórico do movimento negro?
Maria José Menezes: O racismo, enquanto projeto de Estado, está em debate em todo o mundo. A brutalidade policial contra o povo negro não é mais vista como algo natural pelas sociedades modernas. O racismo faz parte da lógica capitalista, mas a humanidade está sentindo que é inviável sobrevivermos diante de tamanhas desigualdades e as organizações negras progressistas que combatem o racismo contam agora com um maior número de aliadxs brancxs.
Não acreditamos que esta mudança tenha sido repentina, mas fruto de nosso trabalho que, por mais de quinhentos anos, fez a resistência à escravidão, produziu levantes e elaborou políticas para toda a sociedade. Ao mesmo tempo em que o racismo está escancarado na sociedade, podemos agora realizar este debate de forma mais aberta. É isso que estamos fazendo.
Correio da Cidadania: “Enquanto houver racismo não pode haver democracia” é o lema da Coalizão. Como opor este conceito à noção historicamente disseminada de que o Brasil seria uma grande democracia racial?
Maria José de Menezes: O Brasil é um país onde a democracia segue como um projeto, mas que nunca se concretizou. Não pode existir democracia onde as desigualdades são naturalizadas. A conjuntura provou isso.
Em trecho do Manifesto afirmamos que “O Brasil é um país em dívida com a população negra – dívidas históricas e atuais. Portanto, qualquer projeto ou articulação por democracia no país exige o firme e real compromisso de enfrentamento ao racismo. Convocamos os setores democráticos da sociedade brasileira, as instituições e pessoas que hoje demonstram comoção com as mazelas do racismo e se afirmam antirracistas: sejam coerentes. Pratiquem o que discursam. Unam-se a nós neste manifesto, às nossas iniciativas históricas e permanentes de resistências e às propostas que defendemos como forma de construir a democracia, organizada em nosso programa”.
O chamado mito da democracia racial foi uma estratégia utilizada pelo Estado brasileiro, e suas elites, para silenciar as denúncias do MN (Movimento Negro) do histórico de opressões contra o povo negro. A academia, através de teóricos como Gilberto Freyre, deu legitimidade ao mito, através da narrativa de um país onde todos eram tratados de forma igualitária.
Imagine um país que utiliza a academia para justificar as violações dos corpos de mulheres negras e indígenas ao longo de mais de trezentos anos como algo “consentido”! Pois é, por trás do mito da democracia racial, existe a justificativa dos horrores coloniais e o apaziguamento destas iniquidades. O motivo é um só, manter as estruturas de poder, manter privilégios.
Esta narrativa, entretanto, foi desconstruída pela própria produção acadêmica na segunda metade do século 20, embora habite o senso comum da sociedade no século 21.
Intelectuais como Clovis Moura, Sueli Carneiro, Edson Cardoso, Milton Santos, Lélia Gonzales e tantos outros e outras, e incluem definitivamente xs negrxs como sujeitos políticos na sociedade.
Correio da Cidadania: Como enxerga a recepção dos setores social, política e economicamente dominantes – e brancos – a respeito das revoltas antirracistas neste momento?
Maria José Menezes: Eu percebo que os segmentos economicamente dominantes estão mudando seus discursos, mas precisam mudar as práticas, o que significa abrir mão de privilégios.
O Capital tem uma alta capacidade de se reinventar e diante deste levante antirracista pelo mundo, vejo o discurso de inclusão como algo totalmente parcial, que não se sustenta na prática.
Correio da Cidadania: É fundamental para vocês associar a questão identitária, inerente à luta antirracista, à construção de um projeto societário que vá além desta pauta?
Maria José Menezes: A luta antirracista não pode ser considerada como questão identitária, já que estamos falando da maioria da população brasileira. Segundo dados do IBGE, em 2019 éramos 56,1% de pessoas negras, ou seja, somos cerca de 109 milhões de cidadãs e cidadãos. A pauta antirracista, portanto, é transversal a todas as questões políticas do país. O que nos causa estranhamento é justamente por nossas questões não serem tratadas como centrais.
Correio da Cidadania: Acredita que as lutas antirracistas estarão no centro das revoltas populares que o Brasil deverá ver nos próximos tempos? Estamos nos aproximando deste período de grandes de revoltas?
Maria José Menezes: O Brasil teve, ao longo de sua história, revoltas populares em todas as suas regiões. A invisibilidade destes acontecimentos e a criminalização dos seus protagonistas, negrxs, indígenas e pobres, justificou a enorme repressão por parte do Estado brasileiro a estes movimentos.
Penso que esta experiência terrível do fortalecimento de correntes neofascistas e neonazistas, que explicitou a polarização da nossa sociedade, terá como efeito mais revoltas, até que derrubemos velhos paradigmas como o racismo e a mais-valia.
Correio da Cidadania: O governo Bolsonaro representa um avanço qualitativo do racismo no Brasil ou apenas escancara aquilo que sempre aconteceu?
Maria José Menezes: O governo Bolsonaro, de ultradireita, potencializou as desigualdades. Esta é a política da ideologia fascista: desmantelar políticas públicas para com isso aumentar as assimetrias raciais, aumentar a superexploração da classe trabalhadora e criar as condições para o aumento da concentração de renda. A subserviência ao capital é o que dá sustentação a estes retrocessos sociais.
No curto período considerado “democrático” deste país, o Estado foi incapaz de resolver as questões consideradas determinantes para a manutenção dos ciclos de miséria, violência e injustiças na sociedade. A incapacidade, ou desinteresse, dos vários governos de fazer a reforma agrária, demarcar terras indígenas, dar posse aos territórios dos povos quilombolas, e no contexto urbano propiciar à população políticas de saúde, saneamento, emprego, educação, produziram esta aberração política que está no comando do país.
A verdade é que a ausência de políticas consistentes de inclusão e de direitos humanos atinge diretamente as populações negras e indígenas que, não por acaso, são os alvos do desmonte de políticas públicas. Infelizmente, não é somente o governo federal que aplica esta política de restrição e retirada de direitos, mas também os governos estaduais, além da maioria dos parlamentares, que representam os setores conservadores do país.
Correio da Cidadania: A respeito da pandemia, como ela se reflete na vida dos negros e negras do Brasil? Como tem sido o atual período para esta parcela da população, em termos sanitários, econômicos e psicológicos?
Maria José Menezes: Os negros e negras são maioria dos óbitos causados por COVID-19. Estes dados, que só tivemos acesso graças à iniciativa da Coalizão ao Ministério da Saúde com base na Lei de Acesso à Informação e do Grupo de Trabalho de Saúde da População Negra da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC).
O risco de uma pessoa negra morrer por COVID-19 chega a ser 62% superior em relação à pessoa branca. Estes indicadores apontam para as desigualdades de acesso e tratamento nos serviços públicos, há décadas apontadas pelo MN e por pesquisadores negrxs.
Mesmo incompletos, não deixam dúvidas de que a epidemia possui uma dinâmica de transmissibilidade e mortalidade extremamente elevadas na população negra e é resultado do tratamento desigual que este setor da sociedade sofre cotidianamente nos serviços públicos.
Correio da Cidadania: Por fim, a atitude do governo federal em relação à pandemia, a quarentena, os cuidados preventivos, além do vazio no ministério da saúde, são uma forma um tanto sutil de promover o racismo sem declará-lo?
Maria José Menezes: Certamente. A pandemia é o retrato do Brasil, um país racista em sua gênese. Um país forjado na exploração do trabalho de pessoas negras escravizadas, que foram desumanizadas, tratadas como mercadoria, supliciadas e muitas vezes mortas em praça pública. Esta é a sociedade que temos. Entretanto, isso não foi um processo aleatório, mas um projeto político das elites coloniais que se mantêm até os dias atuais.
O Brasil passa pelo horror de uma epidemia que já matou mais de 70.000 brasileiros em menos de seis meses, mas a maioria absoluta desta população perdida é composta por homens e mulheres negrxs. Este governo, neofascista, ataca os segmentos de maior vulnerabilidade social, xs negrxs e indígenas.
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