Ainda antes de os prisioneiros dos EUA serem libertados pelo Irã como parte do acordo nuclear, Hillary Clinton irresponsavelmente se pôs a clamar por novas sanções contra o Irã.
Por Alexander Mercouris
Não chega a surpreender, porque todos sabem que o dinheiro que ela queima em sua campanha de egomaníaca para ser presidenta vem diretamente de israelenses de extrema direita, da claque “Israel Acima de Tudo” como Haim Saban. (…) A fala da Clinton certamente acrescentou cheque de sete dígitos ao fundo de campanha dela.
Que Clinton é corrupta até a última fibra não é novidade. Mas não havia razão alguma para o governo Obama fazer o que está fazendo.
É escandalosa manifestação de arrogância; é escarnecer da decência.
O fim das sanções é vitória inequívoca do Irã, selando sua posição nuclear e deixando intacta a capacidade nuclear do país.
Aquelas sanções não poderiam sequer ter sido algum dia impostas, para começar.
Como escrevi em abril do ano passado, em artigo para Sputnik, tudo indica que o Irã, sim, teve um dia um programa para armas nucleares. Mas o programa não foi concebido como ameaça aos EUA ou a Israel nem, desnecessário dizer, à União Europeia.
O governo iraniano sabe perfeitamente que programa de armas nucleares previstas contra aqueles países é muito mais provocação direta para um ataque ao Irã, do que meio para prevenir ataques, e que o Irã não sobreviveria a tal ataque.
De fato, o programa nuclear do Irã foi concebido para deter ataque do principal rival regional do Irã – o Iraque de Saddam Hussein –, que se sabe que teve programa de armas nucleares na década que antecedeu à Guerra do Golfo de 1991.
Tendo combatido guerra amarga contra Saddam Hussein entre 1980 e 1988, o Irã absolutamente não podia correr o risco de que as armas atômicas iraquianas encontrariam país desarmado. É perfeitamente compreensível portanto que a liderança iraniana tenha buscado conter o programa de armas nucleares de Saddam Hussein, com programa nuclear seu.
Tudo porém sugere que o programa nuclear iraniano foi significativamente reduzido na década seguinte, depois de Saddam Hussein ter sido derrotado em 1991, e foi completamente abandonado depois que Saddam foi derrubado em 2003.
Não só essa é a conclusão para a qual apontam todas as provas, mas é também a opinião da comunidade de inteligência dos EUA a qual, em 2007, publicamente confirmou que o Irã já não trabalhava no programa para construir armas nucleares.
Nem o governo dos EUA duvida. Eis o que o secretário de Estado dos EUA John Kerry teve de dizer sobre o programa nuclear iraniano, numa entrevista à Reuters em agosto de 2015:
“Nossa avaliação é que claramente houve um período em que o Irã procurava uma arma nuclear. Não temos dúvida disso. Em 2003, descobrimos os iranianos com a mão na massa, em instalações que não deveriam ter e material que não deveriam ter (…). Não trabalharam na direção de arma nuclear – é nossa avaliação e avaliação de todos os nossos aliados –, desde aquele período de tempo.”
Assim sendo, é realmente bizarro que os EUA tenham passado a ‘exigir’ que o Irã interrompa um programa de armas nucleares exatamente depois de o Irã – como os EUA sabiam – ter abandonado o programa de armas nucleares.
Não apenas o Irã enfrenta uma sucessão de exigências cada vez mais ameaçadoras para que abandone um programa nuclear os EUA sabe, que já abandonou, mas aquelas ‘exigências’ vieram acompanhadas de sanções cada dia mais furiosas. culminando no mais abrangente pacote de sanções de todos os tempos, imposto ao Irã recentemente, em 2012.
As tais ‘exigências’ e sanções vieram acompanhadas de propaganda ensurdecedora e ininterrupta contra o Irã.
Os líderes iranianos foram chamados de religiosos fanáticos e patrocinadores de terrorismo. Foram acusados de ter planos genocidas e megalomaníacos, acusações feitas sem qualquer prova, que até hoje nunca apareceu.
O Irã foi acusado de conspirar para agredir países vizinhos, mais uma vez sem nem sinal de prova alguma, e apesar de o único e grande gesto de agressão que houve na história recente do Oriente Médio foi o ataque de Saddam Hussein contra o Irã – e agressão não provocada, que o ‘ocidente’ e os estados árabes apoiaram.
O próprio Irã, como país, foi apresentado como teocracia medieval repressora e reacionária. Apesar dos problemas que o país enfrenta, ninguém que conheça o Irã, por pouco que seja, jamais acreditou que essas ‘avaliações’ tivessem qualquer fundamento.
Tudo isso sempre veio acompanhado de continuadas ameaças de ação militar, as quais – segundo alguns relatos – em mais de uma ocasião chegaram perigosamente perto de se realizarem, e as quais, segundo os mesmos relatos, só não se realizaram por causa da firme oposição, não dos políticos, mas dos militares norte-americanos.
Por que essa pressão obsessiva e as ameaças contra um país por supostamente ter um programa de armas nucleares que, na verdade – e como todos sabiam perfeitamente – o país há muito tempo deixara de ter?
A resposta curta é que os EUA e seus aliados regionais – Israel e Arábia Saudita – assustaram-se com a influência que o Irã rapidamente alcançou na região, depois que os EUA derrubaram Saddam Hussein.
Fossem quais fossem as intenções dos EUA quando derrubaram Saddam Hussein, não se incluía entre elas garantir posição regional dominante para um Irã politicamente independente e democrático.
Pois foi esse, precisamente, o resultado a que a derrubada de Saddam Hussein levou. E a gota d’água para Riad e Jerusalém foi a derrota de Israel, frente ao Hezbollah, aliado do Irã, em 2006.
Resultado disso tudo foi a incansável campanha lançada contra o Irã em conexão com um programa de armas nucleares que todos sabiam que já não existia.
Inevitavelmente, para dar alguma coerência a essa campanha, foi preciso escalar e acrescentar a exigência de que o Irã abandonasse qualquer tentativa para desenvolver capacidade nuclear independente – tanto para uso militar como, também, para uso civil. Essa, em essência foi a demanda discutida ao longo dos últimos anos.
Não surpreendentemente, o Irã jamais aceitou e nem aceitaria essa demanda – que implicava o país ter de parar de fazer algo que tem integral direito legal de fazer[1] –, e que nenhum outro país que prezasse a própria independência política nunca aceitaria.
Enquanto isso, para aumentar a pressão sobre o Irã, governos e povos no Oriente Médio, que eram vistos como aliados reais ou potenciais do Irã – inclusive o governo sírio do presidente Bashar Al-Assad, os movimentos democráticos no Bahrain e na Arábia Saudita, e o movimento dos Houthis no Iêmen, também passaram a ser atacados.
Resultado? Um Oriente Médio dilacerado pela guerra e pela instabilidade.
O fim oficial das sanções contra o Irã é manifestação do fracasso de toda essa política. E não aconteceu porque o Irã tenha feito concessões quanto ao estado de seu programa nuclear.
As concessões que o Irã fez não comprometem a capacidade do Irã para desenvolver capacidade nuclear independente – que é tudo que o Irã tem feito ao longo de muitos anos, e que foi a linha vermelha que o país em nenhum caso cederia. Se os EUA tivessem querido acordo nos termos do acordo agora firmado, a questão estaria resolvida há muito tempo.[2]
Aconteceu como aconteceu, por duas outras razões:
A primeira razão é que o Irã não se dobrou às pressões.
Longe de ceder o seu programa nuclear, respondeu com escalar todo o programa, a ponto de, de lá até aqui, ter conseguido dominar todo o ciclo do combustível nuclear – mostrando aos EUA que não havia o que pudessem fazer para deter o Irã.
A segunda razão foi que em 2014 as grandes potências da Eurásia – Rússia e China – finalmente passaram a exigir o fim da política de sanções.
O evento chave foram rumores que começaram a correr no outro de 2014, de que Rússia e Irã estavam próximos de finalizar um acordo de troca “petróleo por bens”, e que a Rússia estava reconsiderando a decisão anterior de não fornecer mísseis S300 ao Irã.
Isso, com os medos de que a China estaria procurando vias para prover financiamento ao Irã mediante as novas instituições financeiras que estão em constituição, causaram alarme em Washington, de que todo o regime de sanções estaria à beira do colapso.
Particularmente preocupante para Washington foi o temo de que, seguindo os movimentos de russos e chineses, seria impossível para os EUA manter em formação os seus aliados europeus e persuadi-los a manter uma política de sanções que possivelmente já lhes pareceria sem propósito.
O resultado foi que, quando o Irã ofereceu aos EUA uma ‘saída honrosa’ na forma do acordo atual, os EUA foram obrigados a aceitar.
Eis o que o secretário Kerry tinha a dizer sobre tudo isso, na mesma entrevista à Reuters que citei acima:
“Mas se todo mundo pensa ‘Oh, não, somos durões, os Estados Unidos da América, temos nossas sanções secundárias; podemos forçar qualquer um a fazer o que queremos.” Realmente ouvi esse argumento na TV hoje cedo. Ouvi de várias das organizações que se opõem ao acordo. Estão espalhando “América é super forte, nossos bancos são super fortes; podemos simplesmente bater o martelo e obrigar nossos amigos a fazer o que nós queremos que eles façam.”
Bem, vejam – muitos empresários e gente do businessnessa sala. Vocês estão de brincadeira comigo? Os EUA vão se pôr a sancionar nossos aliados e os bancos deles e os empresários deles, porque nós saímos de um acordo e vamos forçar os outros a fazer o que queremos que façam, mesmo depois de aceitarem o negócio para o qual viemos? Vocês estão de brincadeira?
Essa é receita rápida, meus amigos, para que eles saiam da Ucrânia, onde já estão muito imprevisíveis e difíceis de contentar e prontos para dizer “OK, já fizemos nossa parte.” Em muitos casos, eles estavam prontos para dizer, “Somos nós que pagamos o preço pelas sanções de vocês.” Nós – foi Obama que saiu e realmente montou um regime de sanções que teve seu impacto. Querem saber? Eu fui à China. Nós convencemos a China, “Não comprem mais petróleo”. Nós convencemos a Índia e outros países.
Alguém aí imagina tentar sancioná-los, depois de persuadi-los a seguir as sanções para obrigar o Irã a ir à mesa de negociações, e quando eles não só foram à mesa, mas também fizeram um acordo, você vira e ‘mela’ o acordo e diz a eles ‘vocês vão ter de obedecer nossas regras sobre as sanções, e de qualquer jeito?”
Essa é receita rápida, meus amigos, gente do businessaqui, para o dólar americano deixar de ser moeda de reserva do mundo – como já anda borbulhando por aí… “
É quase ininteligível, mas o que Kerry está dizendo é que os EUA não tiveram escolha. Se não tivessem aceitado o acordo nos termos que o Irã ofereceu, o regime de sanções entraria em colapso, o que seria derrota humilhante para os EUA.
Para não ter de encarar esse desastre, os EUA não tiveram alternativa, se não aceitar o que o Irã ofereceu.
Tudo isso, afinal, deu num acordo para levantar as sanções, em troca de limites num programa nuclear que o próprio Kerry já disse que jamais teve o objetivo de levar a uma bomba atômica.
Mas o acordo ainda deixa o Irã em posse da tecnologia que o país desenvolveu. De fato, segundo alguns especialistas, o acordo deixa o Irã com o material e a tecnologia para desenvolver uma bomba atômica em cerca de um ano, se o país assim decidir.
Essa entrevista de Kerry não foi muito divulgada, apesar – ou precisamente por isso – de ela lançar luz fascinante sobre o pensamento ‘oculto’ do governo dos EUA.
Primeiro de tudo, mostra que, inobstante o show de autoconfiança, o governo dos EUA está agudamente preocupado com a posição de longo prazo do EUA-dólar como moeda mundial de reserva, e cada dia mais nervoso com fazer alguma coisa, qualquer coisa, – como ameaçar impor sanções contra seus aliados europeus – que possa comprometer aquela posição.
Os que, como o economista norte-americano Paul Krugman, que dizem que o status do dólar, de moeda de reserva, não tem importância nenhuma devem saber, desde já, que o governo dos EUA discorda deles.
A entrevista de Kerry também mostra que, apesar do show de unidade, por trás das cortinas a política de sanções dos EUA contra a Rússia já é alvo de fortes críticas, com governos europeus absolutamente não interessados nela – exatamente como tampouco se entusiasmaram com as sanções que os EUA os persuadiu a impor contra o Irã.
Por fim, a entrevista também mostra que, apesar do muito barulho e bater no peito, a real capacidade dos EUA para impor suas vontades aos aliados europeus já é limitada; e que os EUA sabem disso.
Se os grandes governos europeus se unirem contra uma política dos EUA, os norte-americanos ficam sem saída e têm de abandonar aquela política.
Para dizê-lo numa palavra, o mais importante que se pode recolher de toda aquela entrevista de Kerry é o cheiro de derrota.
Por mais que Kerry apresente o acordo com o Irã sob o melhor ângulo que possa, no fim ele não consegue esconder a evidência de que foi a iminência do colapso do regime de sanções que forçou a mão dos EUA, e obrigou os norte-americanos a aceitar um acordo com o Irã que, noutras circunstâncias, eles não aceitariam.
Há aqui uma importante lição para a Rússia.
O Irã é país muito menor, muito menos rico e muito mais fraco que q Rússia. Embora de modo algum seja país subdesenvolvido, faltam-lhe muitos dos vastos recursos científicos, tecnológicos e industriais que a Rússia tem.
Nem o Irã tem a influência global ou a vantagem de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, que tem a Rússia.
As sanções que os EUA impuseram ao Irã feriram o Irã muito mais do que as sanções que os EUA impuseram à Rússia feriram a Rússia.
Como a Rússia, o Irã também tem minoria, mas muito barulhenta, que quer a reaproximação com os EUA quase que a qualquer preço. Em 2009, essa minoria tentou sem sucesso encenar um ‘revolução colorida’ em Teerã – exatamente como a minoria semelhante tentou na Rússia – e fracassou – encenar uma ‘revolução colorida’ em Moscou, em 2011.
No final, ao firmar-se nos essenciais e agindo todas as vezes com flexibilidade máxima, o Irã superou o desafio.
Resultado é que o Irã emergiu vitorioso inequívoco de todos esse affair, com posição hoje mais forte do que há uma década – antes de o ataque que sofreu ter começado.
Se o Irã pôde vencer esse tipo de duelo contra os EUA, a Rússia também pode. A Rússia está em posição muito melhor para tanto, do que estava o Irã, no começo. Não há motivo, de fato, para que a Rússia não leve a melhor, nem para qualquer dúvida de que levará.
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