por João Negrão no 247
João Negrão é jornalista em Brasília e edita o Blog do João Negrão
De todo modo, “Democracia em Vertigem” é um filme que merce ser visto e revisto. Como “O Processo”, ele é mais que um documentário, um relato, pois antecipa a prospecção história de um período que abriu uma cicatriz enorme na política brasileira
O Brasil está em festa. Afora os setores mais reacionários, os fascistas e os golpistas em geral, aqueles que direta ou indiretamente ajudaram a derrubar a presidente Dilma Rousseff. Mas mesmo a Rede Globo, uma das principais patrocinadoras do golpe de 16 deu boa matéria sobre o assunto que ganha a última segunda-feira (13).
A indicação do festejado “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa, é, sem nenhuma dúvida, duas grandes. A primeira do cinema nacional, ultimamente tão atacado e desprezado pelo presidente fascista Jair Bolsonaro e seus seguidores. A segunda vitória é o escancarar para o mundo, desta vez em forma de película, o que foi o golpe de 2016.
Sem dúvida é um documentário espetacular. Contudo, possui limitações diante de minhas expectativas e da fatal comparação com outro documentário espetacular sobre o mesmo tema, “O Processo”, de Maria Augusta Ramos. Escrevi sobre isto quando assisti “Democracia em Vertigem” em seu lançamento.
Na verdade, como havia frisado, não há como fazer uma comparação, posto que se tratam de dois filmes espetaculares diferentes, com suas particularidades do ponto de vista técnico, conceitual e artístico. Sim, porque, ainda que seja um documentário, ali as diretoras empregam toda a sensibilidade artística para contar a história. Nesses aspectos não me foi prioridade o olhar, ainda que lhe menciono.
A comparação, no entanto, cabe na forma como as duas diretoras contam
a história e seus vieses políticos que fatalmente sobrepõem aos demais
aspectos para mim enquanto expectador e testemunha ocular da mesma
história. Agregue-se aqui a minha posição política e ideológica.
Os dois filmes são espetaculares na narrativa, no ineditismo para um documentário - que como jornalista gosto de dizer: uma grande reportagem. Contudo dou um ponto para “O Processo”, que não tem nada de narrador, a não ser as imagens percorrendo a cronologia dos fatos, eles contados por seus protagonistas – ou ao menos aqueles que se dispuseram ser entrevistados. Para não ser tão antipático, arriscaria dizer que um completaria o outro, como na realidade pode-se verificar quem assistiu aos dois.
“Democracia em Vertigem”, porém, tem seus grandes méritos. A narrativa, por exemplo, com a diretora contando em primeira pessoa a história desses últimos cinco anos da vida nacional e indo buscar no seu atavismo os entrelaçares de sua própria história, desde seus primeiros anos em 1985, ano da redemocratização, de seus pais e demais parentes – a rica família Andrade Gutierrez - envoltos nos acontecimentos anteriores e atuais do país.
Ela começa, por exemplo, falando da luta dos pais num Brasil mergulhado na escuridão dos anos de chumbo, com eles presos, torturados, exilados e depois clandestinos. Em sequência vem nos contar que seu nome, Petra, é uma homenagem a Pedro Pomar. Mas não exatamente menciona ser este o líder comunista trucidado pela ditadura em 1976 no conhecido e triste episódio Chacina da Lapa, onde os militares destruíram metade do comitê central do Partido Comunista do Brasil (PC do B).
Petra Costa, aliás, “passeia” de forma displicente sobres esse momento nefasto da História Nacional, contextualizando muito pouco o que significou a luta dos próprios pais. Fica parecendo que houve, aos olhos dela (que pode não ter atentado melhor) que foi uma luta menor. Mesma percepção ela não dispensa ao moralismo anticorrupção.
Aqui eu fico com as palavras de psicanalista e entrevistadora da TV 247, Dafne Ashton Vital Brazil: “Apesar de ter imagens históricas como o discurso de defesa da Dilma e do Lula falando com o povo em São Bernardo, o filme ‘Democracia em Vertigem’ infelizmente adota a narrativa moralista em relação à guerra anticorrupção, que foi justamente usada para nos derrotar. Enquanto a esquerda não entender que não leva a nada esse moralismo, e ele é a nossa derrocada, fica difícil avançar. Sempre, em todos as épocas, o moralismo foi usado contra a esquerda. Precisamos aprender com isso para não cair nessa
narrativa esparrela. Corrupção nesse país só existe se for cometida por nós e mais, corrupção é inerente ao sistema capitalista e ponto. Fora esses parênteses, tem as imagens maravilhosas, vale assistir”.
Eu acrescentaria que, além da narrativa moralista anticorrupção, “Democracia em Vertigem” tem o viés despolitizado transparecido da própria Petra Costa, o que é desagradável para uma pretensamente politizada. Por vezes quase chorosa, ela tenta transitar por um certo imparcialismo e oferecer uma análise ampla e não rara amplificada dos processos antes, durante e pós impeachment de Dilma Rousseff, até dar lá nos momentos anteriores e durante a entrega de Lula após a resistência no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. É aqui que vamos encontrar, em termo de cinema, sobretudo imagens, parte dos méritos do documentário, como uma grande reportagem: as imagens inéditas, bem como as conversas de Lula com seus aliados e os desdobramentos até ele seguir para Curitiba no helicóptero da Polícia Federal para a solitária.
No resto, Petra Costa faz uma narrativa recuada, quase que se pedindo desculpas por termos um partido popular e progressista que chegou ao poder, “cometeu erros” e deveria se penitenciar para sempre, colaborando com a narrativa das forças que tentam sempre destruir o país e não se cansam de exigir autocrítica de Lula e do PT. Petra, aliás, é muito pouco crítica a essas forças e, é possível perceber, uma certa complacência ante elas à medida que não aprofunda (seria por conta de sua despolitização?) no significado da atuação dessas forças na destruição da democracia brasileira. É um painel.
Ela é por vezes romântica, idealista e, repito, chorosa. É lícito preencher essa carga emocional num filme, mesmo um documentário, com traço, porém, de autobiografia. É, aqui oportuno, intuir sua pretensão: carregar nas emoções para fisgar o espectador. E até mesmo considerar que esse seu propósito margeia a obra para lhe conferir um caráter romântico. E ainda nos permitir, em seu mosaico de imagens e vozes, o prolongamento da percepção e fazer a todos refletir. Mas insisto: politicamente eu esperava muito mais.
De todo modo, “Democracia em Vertigem” é um filme que merce ser visto e revisto. Como “O Processo”, ele é mais que um documentário, um relato, pois antecipa a prospecção história de um período que abriu uma cicatriz enorme na política brasileira. Ajudam no debate e na consciência cidadã. Que venha o Oscar!
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