A condição das mulheres privadas de liberdade é uma face da violência de gênero e de raça que vem se agudizando.
A exclusão simbólica e social das mulheres negras tem refletido mais intensamente no sistema de justiça criminal.
por Paulo Pimenta
em O Cafezinho
A população prisional feminina no Brasil cresceu alarmantes 567% nos últimos quinze anos, chegando a 37.380 mulheres presas em todo o país, segundo dados divulgados recentemente pelo Sistema Nacional de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça. Essas mulheres são, sobretudo, negras, jovens, com pouca escolaridade e mães. Quase 70% dessas prisões decorrem de atividades enquadradas como tráfico de drogas.
Além disso, 3 em cada 10 mulheres estão presas provisoriamente, sem condenação. A quantidade de presas sem sentença chegou ao assustador percentual de 99% em Sergipe, em 2014.
Os números são alarmantes e demonstram o latente viés encarcerador de nosso sistema. Ou, como diz a máxima, “o Brasil prende muito e prende mal”. Pessoas que cometeram crimes não violentos acabam encarceradas. Mas as limitações não são normativas.
As penas restritivas de direitos foram inseridas no sistema penal brasileiro como alternativas à prisão (limitação de final de semana, multa, prestação de serviços à comunidade, prestação pecuniária etc.) para os crimes de menor potencial ofensivo. Mas, muitas vezes, deixam de ser aplicadas pelo poder judiciário sem motivo concreto, sob a justificativa da necessidade de acalmar a “sensação de impunidade” inflamada pela mídia nacional. É o caso de muitas das mulheres presas por tráfico, que, mesmo não tendo praticado qualquer outra conduta criminosa anterior, são condenadas à pena de prisão, em regime fechado, “porque o tráfico é um mal que assola a sociedade”, contrariando a própria lei.
A restrição da liberdade não pode ser aplicada de forma irrestrita. Uma vez que esteja privada de sua liberdade (condenada ou não), a mulher torna-se objeto de um sistema falido, sendo colocada num ambiente que não oferece as condições necessárias ao seu preparo para o retorno ao convívio social.
O contato dessas mulheres com seus filhos também é drasticamente rompido no momento da prisão. Em geral, não há creches, berçários, centros de aleitamento ou dormitórios para gestantes nas unidades prisionais.
Os locais de encarceramento feminino são espaços de permanente violação de direitos humanos. A estrutura das unidades prisionais, as condições de higiene, saúde, alimentação, estudo e trabalho são, em geral, deploráveis.
Das mais de 1.400 unidades prisionais no Brasil, apenas 7% são exclusivamente femininas, sendo 75% masculinas e 17% mistas. Mesmo as que abrigam apenas mulheres são precárias.
A maior parte das cadeias e penitenciárias femininas, na verdade, não foi originalmente planejada para esse propósito. Foram conventos, hospitais psiquiátricos, construções residenciais, presídios masculinos onde mulheres presas foram alocadas sem as adaptações necessárias. Em muitas dessas detenções, por exemplo, não há banheiros adequados para mulheres: são mictórios sem divisórias, ou com divisórias baixas, sem portas.
As especificidades da condição física das mulheres também são negligenciadas pelo não fornecimento de absorventes, por exemplo. Muitas delas guardam miolo de pão das refeições para promover a absorção do sangramento no momento do ciclo menstrual.
Os quase treze anos de governo do PT serviram para tirar milhões de pessoas da condição de miséria, promover sua inclusão social, na educação, no mercado de trabalho, na economia. Mas muito mais deve ser feito.
As mulheres negras e pobres continuam sendo o segmento de maior vulnerabilidade, e é necessário pensar de forma ainda mais ampla e efetiva as desigualdades de gênero, raça e renda que, de forma interseccional, impõe a essas mulheres uma condição de opressão, refletida no sistema penal e penitenciário.
O engajamento social é basilar para a mudança desse cenário. No momento político atual, em que setores conservadores da sociedade ganham força e não medem esforços para retroceder nas conquistas de décadas de lutas pelos direitos das mulheres, temos visto a luta do movimento feminista encrudescer. Manifestações em todo o país buscam enfrentar essa onda de ataques a direitos conquistados.
Sobretudo neste mês de novembro, como o ato realizado em Brasília no dia 13, que congregou milhares de pessoas, afirmando o empoderamento feminino e a luta por seus direitos. Teremos, também, em breve, a Marcha das Mulheres Negras, iniciativa que visa aglutinar, principalmente, organizações de mulheres negras para uma marcha em Brasília, no dia 18 de novembro, para conferir visibilidade às pautas das mulheres que são cotidianamente subalternizadas pelo racismo, pelo machismo e pela pobreza. Apoiamos as mobilizações e acreditamos nelas como forma de promover as transformações que precisamos.
Enquanto essas mudanças não chegam, são necessárias políticas de justiça criminal efetivas. Três medidas discutidas por autoridades, especialistas e sociedade parecem-nos com maior potencial para mudarmos a realidade.
A primeira é estruturante: gerar vagas no sistema prisional por meio de construção de unidades específicas para mulheres, extinguindo as unidades prisionais mistas e acabando com a superlotação. Em tese, não se pode nem mesmo falar em superlotação de presídios femininos, uma vez que as vagas em unidades mistas não podem ser consideradas adequadas. Trata-se de medida, essencialmente, de competência do poder executivo federal e estadual, sobre a qual não há quaisquer argumentos contrários que devam ser levados em consideração. Acabar com as prisões mistas e construir ambientes de privação de liberdade apropriados para mulheres são ações irrefutáveis.
A segunda medida – de efeitos imediatos – consiste em inclusão no decreto presidencial de indulto coletivo de norma específica para mulheres presas por crimes não violentos – inclusive tráfico de drogas – com penas de até 5 anos de reclusão, além de perdão parcial de pena para mulheres gestantes ou com filhos menores. Constitui-se no alargamento da abrangência do indulto natalino como medida afirmativa da política criminal, defendida por muitos setores da sociedade e com significativo potencial de reparação das falhas de nosso sistema de justiça criminal.
A terceira proposta – com efeitos de longo prazo – é a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio e o estabelecimento de critérios objetivos para distinção entre uso e tráfico. Nossa sociedade não pode mais conviver com uma política contra as drogas assentada na criminalização do usuário, repressão e encarceramento.
O lamentável diagnóstico está colocado. Acreditamos que existem reais condições de superarmos o vergonhoso estado de coisas em que se encontram as mulheres presas em nosso país. O Estado brasileiro não pode permanecer inerte frente às permanentes violações à vida e à dignidade das mulheres brasileiras e à seletividade do sistema de justiça criminal. Não podemos esperar mais.
Paulo Pimenta é Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados
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