Sob o falacioso discurso de “modernização” nas relações de trabalho, a Lei nº 13.467/2017, que introduz a “reforma trabalhista”, altera e desconfigura as hipóteses do teletrabalho, isto é, aquele que é realizado na residência do próprio trabalhador, longe do empregador mas sob o controle remoto deste. Em outras palavras, a reforma alterou a vida de quem trabalha de casa, já que teletrabalho pode ser entendido como “trabalho à distância”.
Ocorre que o teletrabalho já era regulamentado pelo artigo 6º da CLT recentemente alterado pela Lei nº 12.551/2011, nos seguintes termos: “Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego”. E o parágrafo único complementa: “Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”.
Desde logo percebeu-se que o trabalhador que labora em casa em situação de subordinação e controle remoto pelo empregador tem o espaço de sua vida íntima invadida pelo Capital, trazendo-lhe prejuízos familiares e sociais que não contribuem para uma condição digna de vida, afetando o seu direito de desconexão ao trabalho e o prejudicando em suas atividades privadas, como lazer, cultura, artes, atividades físicas, entre outras, além de desagregar a classe trabalhadora e fomentar a competição entre os próprios empregados.
Aliás, essa modalidade de trabalho em domicílio ser uma exigência dos “modernos meios telemáticos e de produção” utilizada para a regulamentação do teletrabalho pelos reformistas é tão deturpada e falaciosa que já ocorria por volta de 1860 recebendo severas críticas de MARX em O Capital:
“A cristalização fixa de sua organização, oriunda da velha divisão do trabalho, dissolve-se com isso e dá lugar a mudanças contínuas. (…) indústria familiar exercida nas moradias privadas dos trabalhadores ou em pequenas oficinas. Essa assim chamada moderna indústria familiar nada tem em comum, exceto o nome, com a antiga, que pressupõe artesanato urbano independente, economia camponesa autônoma e, antes de tudo, uma casa da família trabalhadora. Ela está agora transformada no departamento externo da fábrica, da manufatura ou da grande loja. Ao lado dos trabalhadores fabris, dos trabalhadores manufatureiros e dos artesãos, que concentra especialmente em grandes massas e comanda diretamente, o capital movimenta, por fios invisíveis, outro exército de trabalhadores domiciliares pelas grandes cidades e pela zona rural. (…) A exploração de forças de trabalho baratas e imaturas torna-se mais desavergonhada do que na fábrica propriamente dita no assim chamado trabalho domiciliar do que na manufatura, por que a capacidade de resistência dos trabalhadores diminui com sua dispersão; toda uma série de parasitas rapaces se coloca entre o empregador propriamente dito e o trabalhador, o trabalho domiciliar parte com empresas mecanizadas ou ao mesmo manufatureiras no mesmo ramo de produção, a pobreza rouba do trabalhador as condições mais necessárias ao trabalho, como espaço, luz, ventilação etc., cresce a irregularidade no emprego e, finalmente, nesses últimos refúgios daqueles que a grande indústria e a grande agricultura tornaram “supérfluos”, a concorrência entre os trabalhadores alcança necessariamente seu máximo”. (O Capital, Livro I, Capítulo VIII, 6, e Capítulo XIII, 8, destaquei).
Com o advento da “reforma trabalhista”, a modalidade de teletrabalho é significativamente alterada e as condições de trabalho realizado nessa situação são profundamente precarizadas. A reforma introduz o “Capítulo II-A – Do Teletrabalho” na CLT e, entre outros retrocessos, instituiu que a responsabilidade pela aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessária e adequada à prestação do trabalho remoto, bem como ao reembolso de despesas podem ser arcadas unicamente pelo empregado e não integram a remuneração deste.
Além disso, introduz o inciso III no artigo 62 no “Capítulo II – Da Duração do Trabalho” para que o empregado nessa modalidade não tenha mais controle das horas trabalhadas, podendo ser cobrado apenas por metas estabelecidas independentemente da carga horária diária e semanal que tenha que realizar para atingi-las. Por fim, a lei subverte o óbvio ao dizer que o comparecimento às dependências do empregador não descaracteriza o regime de teletrabalho.
Por evidente, o retrocesso da reforma não tem limites, subvertendo a lógica da subordinação que permeia o contrato de trabalho ao pretender transferir ao trabalhador os custos da produção e negar os limites constitucionais de jornada diária e semanal em completa dissonância da dignidade do trabalho humano, alterando o conceito de empregador e do risco inerente ao desenvolvimento da atividade econômica da empresa (artigo 2º da CLT). A novidade legislativa também afeta diretamente a saúde física e psicológica do trabalhador atribuindo ao próprio empregado a responsabilidade pela prevenção a fim de evitar doenças e acidentes no ambiente de trabalho, eximindo o empregador de fiscalizá-lo e, nesse aspecto, desrespeitando normas de proteção de índole constitucional (art. 7º, inc. XXII, da CF/1988).
O regime de teletrabalho imposto pela “reforma trabalhista” é perverso porque se apresenta sob a falácia do discurso da “modernização” quando trata-se de mais uma modalidade de prestação de trabalho, desta vez por via remota, sem qualquer garantia de proteção ao empregado, tanto em termos de duração de limite máximo na jornada de trabalho, da responsabilidade pelo custo dos meios de produção e de transferir a responsabilidade pela segurança e higidez do ambiente de trabalho, eximindo-se o empregador de qualquer fiscalização, a não ser no que diz respeito ao cumprimento de metas impostas unilateralmente pela empresa.
Nessa forma, o local de trabalho confunde-se com a moradia do trabalhador, invertendo a lógica do princípio da proteção e os fundamentos da própria relação entre Capital x trabalho que sempre vigoraram na realidade do sistema produtivo capitalista.
Nota-se que Marx alertava que “Ela [a exploração] se torna ainda mais desavergonhada no assim chamado trabalho domiciliar do que na manufatura, porque a capacidade de resistência dos trabalhadores diminui com sua dispersão” (idem). Nada poderia ser mais atual do que MARX em 1860 quanto às regras introduzidas pela “reforma trabalhista” acerca da modalidade de teletrabalho. O isolamento do trabalhador em sua residência, sob controle remoto e subordinação direta do empregador, aliado ao enfraquecimento do poder de enfrentamento dos Sindicatos de trabalhadores em nossos dias, impede a sua capacidade de resistência à exploração sem limites. A possibilidade de que nessa modalidade de trabalho sejam ajustadas cláusulas por meio de acordo escrito individual em nada beneficia os trabalhadores, a não ser o fato de tornar eles mesmos responsáveis pela sua própria exploração.
Os retrocessos devem ser enfrentados com coragem institucional e sob a ótica da racionalidade de proteção que permeia o direito do trabalho. Não é possível, sob o ponto de vista jurídico, nem econômico e tampouco sociológico transferir ao trabalhador os custos da produção e a responsabilidade pela higidez do ambiente de trabalho enquanto é explorado pelas forças do Capital. Deve ser mantida a divisão entre local de trabalho x residência, sob pena de afronta à intimidade e à vida privada da pessoa humana, em cuja categoria o trabalhador também está inserido, não se constituindo em espécie de “sub-cidadão”, especialmente garantindo-lhe a trnquilidade no seio familiar ou, ainda, o direito à desconexão, o direito de estar só, entre outros.
Ainda que se fale que o teletrabalho poderia apresentar pontos positivos para alguns trabalhadores como o de evitar o deslocamento diário à empresa nas grandes cidades, nada justifica a ausência de controle de jornada diária e semanal nos limites constitucionais e a sua efetiva fiscalização pelo empregador com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação de forma comprometida com o princípio da proteção. Por fim, a institucionalização e o incentivo ao regime de teletrabalho pode gerar complexas situações de terceirização, formas irregulares de trabalho e que culminam no desvirtuamento da relação de emprego garantido constitucionalmente abrindo espaço para o trabalho explorado em situação análoga à de escravo, como se nota frequentemente na grande indústria têxtil.
Átila Da Rold Roesler é juiz do trabalho na 4ª Região e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho e em Direito Processual Civil. Pós-graduado em Sociologia pela Universidade Estácio. Foi juiz do trabalho na 23ª Região, procurador federal e delegado de polícia civil. Publicou os livros: Execução Civil – Aspectos Destacados (Curitiba: Juruá, 2007) e Crise Econômica, Flexibilização e O Valor Social Do Trabalho (São Paulo: LTr, 2015). Autor de artigos jurídicos em publicações especializadas. Professor na pós-graduação da URI Campus Frederico Westphalen/RS e vice-Diretor da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do Rio Grande do Sul.
do Justificando
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