Cara Ivete e Caro Lula,
sei que pode soar estranha uma mesma carta a duas diferentes pessoas; mais ainda por se tratar de remetentes tão distintas, em todos os sentidos desta última palavra. Há, porém, Lula e Ivete, além do fato de admirar vocês dois, admirar muito, outra razão para esse endereçamento inusitado. E esta razão é o forçoso fechamento do Colégio Estadual Odorico Tavares, localizado no bairro da Vitória, em Salvador, Bahia, por parte do governador Rui Costa em função de pressões imobiliárias e do processo desumano de gentrificação da “Roma Negra”, como dizia o escritor Stefan Zweig da capital baiana.
Ivete, querida e talentosa, o colégio é vizinho de sua casa e, nele, estuda uma parte do público que te ama de paixão, canta de cor as suas músicas e faz um esforço danado para ir a seus shows. Lula, amado e grande referência política em minha vida, o governador da Bahia é petista, um dos expoentes de seu partido, o PT, e, até onde eu sabia, você escolheu Salvador para morar após sair da prisão injusta que lhe impuseram por um ano. Vocês dois, então, Ivete e Lula, por razões e poderes distintos, podem fazer algo para evitar o fechamento dessa escola, que não só atende a uma população de filhos de trabalhadores e trabalhadores, como garantem uma diversidade humana ao lugar do centro da cidade que se converte em circuito do Carnaval de Salvador, aquele mesmo que letras de música costumam elogiar a presença da negritude, da massa.
Vejam, Lula e Ivete, o fechamento de uma escola (de qualquer escola) pública é uma desgraça social! Nesses tempos em que vivemos então - tempos de ódio racista, homofóbico, misógino, anti-intelectual e classista multiplicado nas redes sociais e nas ruas, sobretudo em função de um governo federal eivado de incompetências e preconceitos - o fechamento da Odorico Tavares só amplia essa desgraça, que, posso lhes garantir, não ficará restrita aos pobres em geral, aos pretos pobres em especial, aos trabalhadores do campo e da cidade, aos indígenas nem à população LGBT marginalizada. A desgraça não conhece nem quer limites, meus queridos. Lula é quem mais sabe disso. A desgraça se estende aos ricos, aos brancos e aos heteros nas modalidades da violência urbana difusa gerada pela desigualdade social; e aos artistas em geral, mas principalmente aos artistas populares, na queda drástica do consumo de suas artes, sobretudo, Ivete, quando se está sob um governo federal que despreza a cultura e não investe em políticas culturais nem em equipamentos de cultura, tampouco formação de plateia. Com o tempo, a desgraça chega a todos. Inclusive aos artistas da televisão.
Sejam quais forem os motivos formais que o governador petista Rui Costa apresenta para fechar o Colégio Estadual Odorico Tavares, você e eu, Lula, sabemos que esse fechamento se deve, na verdade, às pressões dos milionários do marcado imobiliário, que desejam se apropriar do terreno do colégio e, com isso, matar dois coelhos com uma cajadada só, como diz o dito popular: 1) construir mais um prédio de mansões suspensas no endereço privilegiado e com vistas para a Bahia de Todos os Santos; e 2) retirar de circulação os estudantes pretos da classe C que andam pelo Corredor da Vitória, não na condição de trabalhadores da limpeza ou porteiros dos condomínios de luxo que ficam ali, mas na condição de cidadãos que desejam disputar o futuro do país através da Educação pública e gratuita.
Rui Costa pode dizer publicamente o que quiser, Lula e Ivete, para “justificar” o fechamento da Odorico Tavares. Nada me convencerá. Você , Ivete, como a artista brilhante que é, vinda do interior da Bahia e que batalhou tanto para estar nesse firmamento onde cintila; e você, Lula, o presidente vindo do interior de Pernambuco e que, a despeito da educação formal incompleta, mais investiu em educação pública de qualidade na história do Brasil, sabem que uma escola (qualquer escola) pública deveria receber investimentos, não ser fechada; sabem que qualquer escola deveria ser vista como um ponto de cultura, a partir do qual se trabalhasse no desenvolvimento de valores democráticos e civilizatórios que nos protegessem da barbárie, esta que nos espreita agora.
Curiosamente, a novela das 21h, “Amor de mãe”, representa a luta de uma comunidade para manter aberta e em funcionamento uma escola pública cuja existência contraria os interesses econômicos de ricos na gentrificação do bairro do Passeio. Vocês assistem a essa novela, Ivete e Lula? Ela é escrita por uma amiga minha, Manuela Dias, que sabe o quanto a educação pública foi importe em minha vida e pode me colocar ao lado dela na Universidade Federal da Bahia, na FACOM. Vocês sabem o que é gentrificação? É conversão das cidades em negócios para ricos em detrimento dos pobres e trabalhadores, que não querem só comida: querem comida, diversão, arte e saída para qualquer parte; querem estar no Corredor da Vitória.
Já encerrando essa carta, Lula e Ivete, eu lhes convido a entrar nessa campanha em defesa da manutenção do Colégio Estadual Odorico Tavares. Mais: eu lhes peço que cada um de vocês - Ivete como vizinha da escola que, nos dias de Carnaval, embala a massa no Corredor da Vitória; e Lula, como figura proeminente do PT - intercedam junto ao governo Rui Costa para que ele mantenha a escola aberta e faça investimentos nela. As pessoas que gostam de vocês dois e que já estão nessa luta ficarão muito felizes.
A Odorico Tavares pode ser mais que a escola que já é: pode ser também um centro cultural que forme técnicos para o Carnaval e para o teatro. Há outros lugares para se erguer mansões suspensas.
O fechamento de uma escola é uma desgraça.
Vamos evitar isso.
Com amor, respeito e admiração,
Jean Wyllys
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