"Mensalão": A mais atrevida e escandalosa farsa
O julgamento que se inicia nesta quinta-feira (2) na Suprema Corte do país não é o ato final de um processo jurídico para inocentar ou condenar réus – entre eles figuras cujas biografias estão ligadas às mais importantes lutas democráticas e populares das últimas cinco décadas – acusados de terem cometido atos de corrupção.
Por José Reinaldo Carvalho, editor do Vermelho
É mais um episódio, na acidentada vida republicana brasileira, em que a democracia é posta à prova e vem à tona o que há de pior nas classes dominantes e suas representações – o reacionarismo político e o golpismo.
O Supremo Tribunal Federal cumpre seu dever constitucional de julgar a ação penal. Conta com a confiança liminar da população, que espera o discernimento jurídico de seus membros e absoluta isenção. Que julgue exclusivamente com os autos.
A peça acusatória é subjetivista e vaga. O ex-procurador-geral da República Antonio Fernando de Souza prejulga e condena o que chama de “sofisticada quadrilha”, que segundo ele teria comprado apoio de partidos para o projeto político do PT e do ex-presidente Lula. Já o atual procurador-geral da República, Roberto Gurgel, disse que o Supremo julgará “o mais atrevido e escandaloso esquema de corrupção e de desvio de dinheiro público flagrado no Brasil”.
São acusações improcedentes, afirmações de efeito propagandístico, para dar a uma mídia sequiosa e furibunda elementos de agitação política e alimentar os sonhos de uma oposição fracassada e sem bandeiras.
Nunca ficou, nem ficará provada a existência da “quadrilha”, nem a compra de apoio político. Nem muito menos o desvio de dinheiro público. Assim, o país pode estar diante não do “mais atrevido e escandaloso esquema de corrupção”, mas da mais atrevida e escandalosa construção de uma farsa.
A ação penal que começa a ser julgada nesta quinta-feira tem feição jurídica, mas é no fundo a expressão de uma tentativa de linchamento de lideranças políticas de envergadura, com grandes serviços prestados à luta pela emancipação do povo brasileiro e das classes trabalhadoras. José Dirceu é o militante e dirigente da esquerda que liderou em 2002 a batalha político-eleitoral mais importante até então da vida republicana brasileira, a que resultou, pela primeira vez na história do Brasil, na eleição de um líder operário e popular e na constituição de um governo nucleado por forças de esquerda.
Estamos diante não de uma ação penal para julgar o nunca provado “mensalão”, mas para condenar a chamada era Lula. Por isso, não se pode deixar de chamar pelo nome o conjunto dos fatos iniciados em 2005 que sete anos depois desembocam no STF. É um golpe antidemocrático contra o Partido dos Trabalhadores e suas melhores lideranças, o que inexoravelmente atinge toda a esquerda. É um intento da direita para criminalizar o exercício do governo por forças de esquerda.
Em outras épocas, a crônica política já repetiu à exaustão a frase do político udenista baiano Otávio Mangabeira sobre o novo regime político nascido dos escombros do Estado Novo e do ambiente democrático resultante da derrocada do nazi-fascismo no plano mundial. A democracia no Brasil seria, segundo Mangabeira, “uma planta tenra que necessita ser regada para produzir frutos”.
Observando a cena política brasileira, sua evolução histórica e o momento atual, a impressão que se tem é que ainda falta muito para a plantinha do constituinte de 1946 se transformar numa árvore robusta, frondosa e frutífera. Na verdade, a convicção que se cristaliza é a de que a democracia continua tenra, instável, vacilante, precária e ameaçada, mesmo considerando todos os avanços registrados como fruto das lutas do povo brasileiro e das vitórias eleitorais que levaram ao centro do poder, por três vezes, presidentes da República identificados com a ampliação da liberdade e participação políticas, o progresso social e a soberania nacional.
Entre tantos fatores que podem ser catalogados como obstáculos ao pleno desenvolvimento da democracia no Brasil, destacamos o que nos parece principal, sem cuja remoção o Brasil poderá permanecer por muitos anos mais com um regime republicano instável, uma democracia mutilada e instituições de poder apartadas do povo e da vontade nacional.
Há uma distância, ainda abissal, até mesmo uma contradição, entre o governo de turno e a essência das instituições que conformam a superestrutura jurídico-política, o Estado. É o paradoxo da conjuntura política brasileira atual. A despeito de termos um governo democrático, permanece intocado o regime político das classes dominantes, cujo caráter político e ideológico é reacionário.
Isto leva essas classes a percorrerem os caminhos do golpe e dos atentados à democracia sempre que os seus interesses são contrariados. O sábio Darcy Ribeiro dizia que no Brasil tudo muda, menos o reacionarismo das classes dominantes. Com o passar dos anos, muda de endereço, já viveu na Casa Grande, nos salões palacianos, nos estados-maiores das Forças Armadas. Hoje é mais cosmopolita, sendo dispensáveis, por enquanto, a força propriamente dita. Sua morada atual é visível por meio da usina de desinformação e mentiras em que se converteu a mídia.
Muito ao contrário do que reza a cartilha da historiografia vulgar, o Brasil não evolui tranquila, pacífica e gradativamente para uma democracia, nem esta é ou será resultado da conciliação nacional própria de um mitológico caráter compassivo, cordial e generoso das classes dominantes. Intermitentemente, quando assim o determinam os seus interesses fundamentais ou o dos potentados internacionais a que devem vassalagem, elas entram em cena com sua ação golpista. Mudam as formas da sua intervenção política, a intensidade, a duração e a maneira de assestar os golpes com que os reacionários do topo da pirâmide social amesquinham, mutilam e liquidam o sistema democrático. Mas é invariável a sua determinação de impedir que o país e o povo avancem por meio de conquistas democráticas e sociais.
O povo brasileiro inegavelmente está progredindo na acumulação de forças, alcançando muitas conquistas políticas, sociais e econômicas. Externamente, o país situa-se de maneira soberana num mundo marcado pelo apetite de dominação das grandes potências. Em aliança com forças anti-imperialistas latino-americanas e caribenhas, o Brasil tem contribuído para reconfigurar o sistema geopolítico regional, transformando numa triste lembrança o pan-americanismo hegemonizado pelo imperialismo estadunidense. Vistas de uma perspectiva histórica, são mudanças que contrariam a essência do projeto político das classes dominantes e seus aliados externos. Por isso, na visão destas classes, é algo que não pode nem deve continuar. Uma condenação do líder José Dirceu como “chefe de quadrilha” e o achincalhe à “era Lula” como o período de “maior corrupção da história” servem a esses propósitos.
É sintomático que às vésperas do julgamento que se inicia nesta quinta-feira, entre a miríade de artigos e reportagens, preparados sob medida para mentir, tergiversar, enganar e iludir, venha à tona a voz das catacumbas. Por meio de um vídeo, ninguém menos que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso fez considerações sobre como a “opinião pública” deve ser levada em conta pela Suprema Corte no julgamento da ação penal do “mensalão”, assim como sobre a importância de evitar a “impunidade”. Também o PSDB, partido de Cardoso, em vídeo institucional, foi explícito quanto às suas intenções, ao fazer insidiosa vinculação entre o “mensalão” e o ex-presidente Lula.
É a senha reveladora dos objetivos políticos daqueles que deram golpes institucionais durante seu governo [1995-2002] e instituíram a ditadura dos punhos de renda. Depositam agora as esperanças de redenção de sua força em decadência na condenação do PT e do governo Lula.
Do ponto de vista da esquerda, o momento requer vigilância e mobilização democráticas em favor de outro desfecho, a absolvição dos acusados.
O episódio como um todo pede reflexão e a extração de ensinamentos. A avaliação rigorosa sobre a evolução da vida política brasileira e o cenário presente deve servir para alargar a perspectiva histórica e aumentar o impulso de luta e transformador. É um momento propício também a retomar o debate sobre os caminhos para a conquista de uma democracia verdadeiramente popular, consoante as peculiaridades nacionais, que signifique uma mudança de fundo do regime político do país.
Via Portal Vermelho
Por José Reinaldo Carvalho, editor do Vermelho
É mais um episódio, na acidentada vida republicana brasileira, em que a democracia é posta à prova e vem à tona o que há de pior nas classes dominantes e suas representações – o reacionarismo político e o golpismo.
O Supremo Tribunal Federal cumpre seu dever constitucional de julgar a ação penal. Conta com a confiança liminar da população, que espera o discernimento jurídico de seus membros e absoluta isenção. Que julgue exclusivamente com os autos.
A peça acusatória é subjetivista e vaga. O ex-procurador-geral da República Antonio Fernando de Souza prejulga e condena o que chama de “sofisticada quadrilha”, que segundo ele teria comprado apoio de partidos para o projeto político do PT e do ex-presidente Lula. Já o atual procurador-geral da República, Roberto Gurgel, disse que o Supremo julgará “o mais atrevido e escandaloso esquema de corrupção e de desvio de dinheiro público flagrado no Brasil”.
São acusações improcedentes, afirmações de efeito propagandístico, para dar a uma mídia sequiosa e furibunda elementos de agitação política e alimentar os sonhos de uma oposição fracassada e sem bandeiras.
Nunca ficou, nem ficará provada a existência da “quadrilha”, nem a compra de apoio político. Nem muito menos o desvio de dinheiro público. Assim, o país pode estar diante não do “mais atrevido e escandaloso esquema de corrupção”, mas da mais atrevida e escandalosa construção de uma farsa.
A ação penal que começa a ser julgada nesta quinta-feira tem feição jurídica, mas é no fundo a expressão de uma tentativa de linchamento de lideranças políticas de envergadura, com grandes serviços prestados à luta pela emancipação do povo brasileiro e das classes trabalhadoras. José Dirceu é o militante e dirigente da esquerda que liderou em 2002 a batalha político-eleitoral mais importante até então da vida republicana brasileira, a que resultou, pela primeira vez na história do Brasil, na eleição de um líder operário e popular e na constituição de um governo nucleado por forças de esquerda.
Estamos diante não de uma ação penal para julgar o nunca provado “mensalão”, mas para condenar a chamada era Lula. Por isso, não se pode deixar de chamar pelo nome o conjunto dos fatos iniciados em 2005 que sete anos depois desembocam no STF. É um golpe antidemocrático contra o Partido dos Trabalhadores e suas melhores lideranças, o que inexoravelmente atinge toda a esquerda. É um intento da direita para criminalizar o exercício do governo por forças de esquerda.
Em outras épocas, a crônica política já repetiu à exaustão a frase do político udenista baiano Otávio Mangabeira sobre o novo regime político nascido dos escombros do Estado Novo e do ambiente democrático resultante da derrocada do nazi-fascismo no plano mundial. A democracia no Brasil seria, segundo Mangabeira, “uma planta tenra que necessita ser regada para produzir frutos”.
Observando a cena política brasileira, sua evolução histórica e o momento atual, a impressão que se tem é que ainda falta muito para a plantinha do constituinte de 1946 se transformar numa árvore robusta, frondosa e frutífera. Na verdade, a convicção que se cristaliza é a de que a democracia continua tenra, instável, vacilante, precária e ameaçada, mesmo considerando todos os avanços registrados como fruto das lutas do povo brasileiro e das vitórias eleitorais que levaram ao centro do poder, por três vezes, presidentes da República identificados com a ampliação da liberdade e participação políticas, o progresso social e a soberania nacional.
Entre tantos fatores que podem ser catalogados como obstáculos ao pleno desenvolvimento da democracia no Brasil, destacamos o que nos parece principal, sem cuja remoção o Brasil poderá permanecer por muitos anos mais com um regime republicano instável, uma democracia mutilada e instituições de poder apartadas do povo e da vontade nacional.
Há uma distância, ainda abissal, até mesmo uma contradição, entre o governo de turno e a essência das instituições que conformam a superestrutura jurídico-política, o Estado. É o paradoxo da conjuntura política brasileira atual. A despeito de termos um governo democrático, permanece intocado o regime político das classes dominantes, cujo caráter político e ideológico é reacionário.
Isto leva essas classes a percorrerem os caminhos do golpe e dos atentados à democracia sempre que os seus interesses são contrariados. O sábio Darcy Ribeiro dizia que no Brasil tudo muda, menos o reacionarismo das classes dominantes. Com o passar dos anos, muda de endereço, já viveu na Casa Grande, nos salões palacianos, nos estados-maiores das Forças Armadas. Hoje é mais cosmopolita, sendo dispensáveis, por enquanto, a força propriamente dita. Sua morada atual é visível por meio da usina de desinformação e mentiras em que se converteu a mídia.
Muito ao contrário do que reza a cartilha da historiografia vulgar, o Brasil não evolui tranquila, pacífica e gradativamente para uma democracia, nem esta é ou será resultado da conciliação nacional própria de um mitológico caráter compassivo, cordial e generoso das classes dominantes. Intermitentemente, quando assim o determinam os seus interesses fundamentais ou o dos potentados internacionais a que devem vassalagem, elas entram em cena com sua ação golpista. Mudam as formas da sua intervenção política, a intensidade, a duração e a maneira de assestar os golpes com que os reacionários do topo da pirâmide social amesquinham, mutilam e liquidam o sistema democrático. Mas é invariável a sua determinação de impedir que o país e o povo avancem por meio de conquistas democráticas e sociais.
O povo brasileiro inegavelmente está progredindo na acumulação de forças, alcançando muitas conquistas políticas, sociais e econômicas. Externamente, o país situa-se de maneira soberana num mundo marcado pelo apetite de dominação das grandes potências. Em aliança com forças anti-imperialistas latino-americanas e caribenhas, o Brasil tem contribuído para reconfigurar o sistema geopolítico regional, transformando numa triste lembrança o pan-americanismo hegemonizado pelo imperialismo estadunidense. Vistas de uma perspectiva histórica, são mudanças que contrariam a essência do projeto político das classes dominantes e seus aliados externos. Por isso, na visão destas classes, é algo que não pode nem deve continuar. Uma condenação do líder José Dirceu como “chefe de quadrilha” e o achincalhe à “era Lula” como o período de “maior corrupção da história” servem a esses propósitos.
É sintomático que às vésperas do julgamento que se inicia nesta quinta-feira, entre a miríade de artigos e reportagens, preparados sob medida para mentir, tergiversar, enganar e iludir, venha à tona a voz das catacumbas. Por meio de um vídeo, ninguém menos que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso fez considerações sobre como a “opinião pública” deve ser levada em conta pela Suprema Corte no julgamento da ação penal do “mensalão”, assim como sobre a importância de evitar a “impunidade”. Também o PSDB, partido de Cardoso, em vídeo institucional, foi explícito quanto às suas intenções, ao fazer insidiosa vinculação entre o “mensalão” e o ex-presidente Lula.
É a senha reveladora dos objetivos políticos daqueles que deram golpes institucionais durante seu governo [1995-2002] e instituíram a ditadura dos punhos de renda. Depositam agora as esperanças de redenção de sua força em decadência na condenação do PT e do governo Lula.
Do ponto de vista da esquerda, o momento requer vigilância e mobilização democráticas em favor de outro desfecho, a absolvição dos acusados.
O episódio como um todo pede reflexão e a extração de ensinamentos. A avaliação rigorosa sobre a evolução da vida política brasileira e o cenário presente deve servir para alargar a perspectiva histórica e aumentar o impulso de luta e transformador. É um momento propício também a retomar o debate sobre os caminhos para a conquista de uma democracia verdadeiramente popular, consoante as peculiaridades nacionais, que signifique uma mudança de fundo do regime político do país.
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