6 de abr. de 2013

Entrevista com Dom Helder Câmara

Entrevista com Dom Helder Câmara

Por Cynara Menezes
Entrevistas históricas: Oriana Fallaci entrevista Dom Helder Câmara

Houve bispos que silenciaram durante as ditaduras na América do Sul. Será que o papa Francisco, o bispo Bergoglio, não foi, no mínimo, omisso diante das barbaridades cometidas na Argentina? Mas houve um bispo que, mesmo ameaçado de morte, teve o valor de denunciar as torturas praticadas no Brasil mundo afora. Dom Helder Câmara (1909-1999), arcebispo de Olinda e Recife, jamais se calou. Nessa entrevista à jornalista italiana Oriana Fallaci, o “bispo vermelho” fala do que se passava nos porões sombrios do regime militar, este que alguns hoje parecem querer reabilitar como “ditabranda”. E se assume socialista, embora crítico das ditaduras que via nos regimes comunistas da época. “Meu socialismo é especial, é um socialismo que respeita a pessoa humana e remonta aos Evangelhos”, diz.
Oriana Fallaci (1929-2006) foi uma das mais célebres entrevistadoras da história do jornalismo. Durante sua longa carreira, esteve tête-à-tête com uma infinidade de personalidades, de Henry Kissinger a Muhammad Ali, de Yasser Arafat a Golda Meir, de Indira Gandhi a Deng Xiaoping. Estava no auge, em 1970, quando entrevistou Dom Helder Câmara, e não esconde sua admiração por ele no decorrer do encontro. Publicada no L’Europeo, a entrevista seria depois republicada em dezenas de países. Curioso: o esquerdista Dom Helder teve um passado fascista na juventude, sobre o qual conversa abertamente com Fallaci. A jornalista, ao contrário, foi esquerdista até a idade madura, mas nos últimos anos de vida deu uma guinada à direita e publicou textos anti-muçulmanos. Ironias do destino.
Todo jovem brasileiro deveria ler esta entrevista para saber o que foi a ditadura militar e para entender que existem padres e padres. E todo jovem jornalista deveria lê-la porque vale por dez aulas de técnica de entrevista. Esta versão do texto é do livro A Arte da Entrevista (editora Boitempo), com organização de Fábio Altman.
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“Sempre fui a favor do pluralismo da Igreja, mas, quando vejo aqueles que representam a parte pútrida dela, me dá vontade de dizer o que o papa João disse a certos indivíduos: ‘Caro padre, você não percebe que está realmente podre? O espírito de Deus nunca chegou até você, não é?’” (Dom Helder Câmara)
Por Oriana Fallaci
Sua igreja é uma igreja bem pobre na cidade do Recife, no Norte do Brasil, onde a única coisa bonita é o mar e, estando junto ao Equador, sempre faz calor. Naquele ano não choveu, e a seca matou a vegetação, as crianças, as esperanças. Não matou mais nada porque não havia mais nada no Recife além de dúzias e dúzias de igrejas barrocas, que o tempo cobriu com uma pátina negra de sujeira, que ninguém pensa em tirar. No entanto, sua igreja é limpa, branca como sua boa consciência. Ali a única sujeira é a inscrição em tinta vermelho-sangue, que ele tenta lavar mas que continua aparecendo, em letras bem legíveis. Diz o seguinte: “Morte ao bispo vermelho”. Fora escrita ali pouco antes pelos seus perseguidores, que atiraram contra ele e jogaram granadas de mão. Desde então a pequena praça diante da igreja está quase sempre deserta, pois muitas pessoas têm medo de aproximar-se dela. Se você perguntar a um policial: “Por favor, onde está a Igreja das Fronteiras?”, ele olhará para você desconfiado e tomará nota da chapa do seu táxi.
Foi o que aconteceu comigo. O motorista do táxi estava paralisado de medo. A casa era contígua à igreja e quase não parecia o lar de um bispo. Usando roupas de tecidos finos, cobertos de jóias, servidos por criados submissos, os arcebispos normalmente vivem em palácios com entradas situadas em ruas elegantes. A sua residência, porém, podia ser alcançada por uma rua perpendicular à pequena praça, a rua das Fronteiras, e era cercada pelo muro baixo contra o qual os homens haviam atirado. Nesse muro baixo mal se notava a pequena porta com sua pintura esmalte verde e uma campainha sem nome. Quando você a tocava, algumas galinhas pulavam, um galo cacarejava, e no meio desse barulho todo ouvia-se um voz doce: “Estou indo, estou indo!” Então a porta se abria, devagar no início e depois em toda a sua amplitude, mas ainda de modo hesitante, e ali estava ele, um homem pequeno de batina preta. Sobre a batina, chamava a atenção uma cruz de madeira suspensa por uma corrente de aço. O homenzinho era pálido, careca, com um rosto enrugado, uma boca crispada, um nariz pequeno como uma castanha cozida e os olhos cansados de alguém que não dormiu muito. Ele tinha o olhar inócuo e a humildade de um vigário de paróquia. Ele não era, e não é, um vigário de paróquia, e nem mesmo um homem pequeno. Ele é o homem mais importante que você pode encontrar no Brasil, ou melhor, em toda a América Latina. E talvez o mais inteligente, o mais corajoso.
Ele é dom Helder Câmara, o arcebispo que desafia o governo e denuncia as injustiças, os abusos e as infâmias sobre os quais os outros silenciam, o homem que tem a coragem de pregar o socialismo e dizer não à violência. Mais de uma vez ele foi indicado para o Prêmio Nobel da Paz. Muitos dizem que ele é santo, se é que essa palavra significa alguma coisa. Eu também digo que ele é santo. O governo brasileiro não pensa assim. O governo brasileiro está sendo talvez o mais fascista e mais sinistro da América Latina. Sua polícia tortura de uma forma inimaginável aqueles que se opõem a ele exigindo liberdade. Usam o pau-de-arara, que consiste em um poleiro similar àquele que as araras usam para se balançar. De ferro ou madeira, ele é inserido entre os joelhos e os cotovelos da vítima nua, e então é suspenso a meia altura entre o solo e o teto. Ali a vítima fica pendurada durante o interrogatório, e como seus pés e pulsos estão amarrados por cordas, a circulação de sangue pára e o corpo incha como se fosse explodir, como se seu peso aumentasse dez vezes. E então, para aqueles opositores que exigem liberdade, existe o “método hidráulico” que consiste em um tubo flexível; esse tubo é introduzido no nariz da vítima e é vertida água através dele enquanto se mantém sua boca fechada. Assim a vítima sente que está se afogando, e de fato é um afogamento parcial – interrompido pouco antes do momento da morte. E então, para aqueles opositores que exigem liberdade, há choques elétricos que são aplicados nos ouvidos, nos genitais, no ânus e na língua. Geralmente a carga é de 110 volts, mas pode subir a 230, produzindo ataques epiléticos, convulsões violentas, queimaduras de terceiro grau e às vezes a morte, o que ocorreu em muitos casos, inclusive no de um jornalista que recebeu a carga de 230 volts no ânus. Ele morreu imediatamente. Essas torturas são aplicadas em todos aqueles que caem nas mãos do DOPS, a Divisão de Ordem Política e Social, a polícia política brasileira. São aplicadas nos liberais e nos comunistas, nas freiras e sacerdotes, guerrilheiros e estudantes, e até em cidadãos estrangeiros. As prisões no Brasil estão cheias, e têm estado assim por muitos anos. Você sabe quando entra mas nunca sabe quando sai. Se sair vivo, em 80% dos casos você sai mutilado – com uma espinha quebrada, pernas paralisadas, testículos arrebentados, olhos e ouvidos que não funcionam mais. A literatura sobre essa infâmia é infinita. Você pode encontrá-la nos folhetos mimeografados, publicados por organizações da resistência, nos jornais americanos e europeus, nos despachos das embaixadas. Mesmo que o mundo às vezes se esqueça, porque o Brasil está longe, porque o Brasil é um país de lazer, com muito mar, muita música, samba, café; porque não é conveniente perturbar as relações comerciais entre os países democráticos e as ditaduras, mesmo quando a tragédia é de conhecimento público. Mas cuidado ao falar sobre isso no Brasil, cuidado ao fazer alusões sobre isso ou denunciá-lo. A maioria das pessoas fica em silêncio.
Helder Câmara é o único que ousa levantar a voz, em conjunto a um pequeno grupo de prelados que não se esqueceram dos Evangelhos. Mas ele paga por isso – Deus, e como ele paga! Quando ele descreveu, em Paris, as torturas aplicadas aos prisioneiros políticos nas prisões de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife, eles o chamaram de “traidor”, “difamador”, “demagogo”. Quando ele fez essas acusações a partir da pequena casa na rua das Fronteiras, eles atiraram de volta com suas metralhadoras e escreveram no muro “Morte ao Bispo Vermelho”. E assim, essas infames autoridades brasileiras o consideram uma ameaça pública, e vigiam cada gesto seu, cada encontro seu com alguém. Mas o povo o adora. Consideram-no um pai que nunca os rejeita, e está sempre disponivel para recebê-los a qualquer hora do dia ou da noite. Quando não está em casa, é porque foi visitar algum oprimido na prisão, algum casebre, algum vilarejo onde as pessoas morrem de fome e de sede antes de alcançar a idade de 40 anos, quando a morte é uma libertação misericordiosa. Quando não está no Recife, ele está viajando pelo mundo para divulgar sua mensagem e sua indignação, ora em Berlim, ora em Kioto, ora em Detroit, ou no Vaticano – com seus braços finos erguidos para o céu e seus dedos em forma de garras tentando alcançar a Deus. Apesar de não-violento, ele é um homem que escolheu a luta a qualquer custo. E as fortalezas que ele ataca são as da vergonha, do privilégio, da ditadura. Ele não poupa ninguém: nem católicos, nem marxistas, nem os impérios capitalistas ou comunistas, e muito menos os fascistas que ele abomina com a ira de um Cristo determinado a expulsar os fariseus do templo.
Dom Helder Câmara nasceu em Fortaleza, no nordeste brasileiro, em 1909. Seu pai era um comerciante diletante do jornalismo e da crítica teatral, e sua mãe era professora primária; uma origem pequeno-burguesa. Ele nunca conheceu a riqueza – cinco crianças de sua família morreram em intervalos de poucos meses, de disenteria e falta de tratamento. Ele ingressou no seminário bem cedo, menino ainda. Sua vocação aflorou com a idade de 8 anos, diz ele – misteriosa e insistentemente. Desde então ele nunca concebeu qualquer outro compromisso para si mesmo que não fosse o de ser padre. Recebeu os votos aos 22 anos de idade, quando se tornou um fascista. “Em cada um de nós dorme um fascista e às vezes ele nunca desperta; mas às vezes ele desperta, sim.” Ele diz isso sem vergonha de dizê-lo, mas culpando-se pelo fato, e sua única justificativa é explicar que fora seu bispo que lhe pedira que se tornasse um fascista. Um daqueles bispos vestidos com tecidos finos, coberto de jóias, servido por criados submissos e vivendo em palácios com entradas em ruas elegantes. Um daqueles cujo lema é Deus-Pátria-Família. Oh, sim, dom Helder conhece bem os fascistas, se conhece. Ele os conheceu bem antes de chegar à sua pequena igreja no Recife, em sua pequena casa onde as galinhas ciscam no quintal e onde ele dorme só quatro horas das 24 do dia, porque à noite eles o acordam telefonando o tempo todo para insultá-lo e assustá-lo: “Estamos indo aí para pegá-lo e matá-lo, seu comunista sujo”. “Encomende sua alma a Deus porque você não viverá para ver o sol nascer, seu filho da puta.” Mas ele diz que não se importa, quatro horas de sono por noite são suficientes para ele.
Eu o entrevistei lá, durante três dias seguidos. Falamos em francês, uma língua que ele conhece bem, e muitas vezes ele me pareceu mais um líder político do que um sacerdote. Ele tem a voz apaixonada de um líder, os olhos brilhantes, a segurança de alguém que sabe que as pessoas acreditam nele. A cada meia hora ele se levantava para pegar um café para mim, aproveitando a ocasião para espiar a rua e verificar se havia alguém querendo pintar o muro novamente ou jogar uma bomba. Eu o seguia com o olhar e pensava em Camilo Torres, o jovem padre que largara a batina para empunhar uma arma e morrera em seu primeiro combate, com uma bala no meio da testa. Pensei no padre Tito de Alencar, o jovem dominicano que o DOPS torturara em São Paulo, com toda a crueldade da Inquisição. Abra a boca e nós lhe daremos a hóstia consagrada antes de matá-lo. Então, em vez da hóstia, eles lhe deram uma carga elétrica de 220 volts na língua. Pensei em todos os padres e freiras que enchem as prisões da América Latina e morrem sofrendo, enquanto os bispos vestidos com tecidos finos, cobertos de joias e servidos por criados submissos colaboram com os generais no poder e protegem os carrascos. No Brasil, no Chile, no Uruguai, no Paraguai, na Venezuela, na Guatemala. E cheguei à conclusão: “Eles não lhe darão o Prêmio Nobel da Paz, dom Helder. Nunca o darão ao senhor, porque o senhor os incomoda muito”. E de fato eles não o deram a ele. Em 1971 o deram a Willy Brandt e, em 1973, quando seu nome foi novamente cogitado, eles o entregaram a Henry Kissinger e Le Duc Tho. E, graças a Deus, Le Duc Tho o recusou. Kissinger não. Como nós todos sabemos.
A jovem Oriana Fallaci com seu enorme gravador)


Fallaci – Há um boato, dom Helder, de que Paulo VI o chama de “meu arcebispo vermelho”. E, de fato, dificilmente o senhor seria um homem conveniente para o Vaticano. O senhor deve assustar muita gente lá dentro. Vamos falar um pouco sobre isso?
D. Helder – Olhe, o papa sabe muito bem o que eu digo e o que eu faço. Quando denuncio as torturas no Brasil, o papa fica sabendo. Quando eu luto pelos prisioneiros políticos e pelos pobres, o papa fica sabendo. Quando eu viajo ao exterior para exigir justiça, o papa fica sabendo. Ele já conheceu minhas opiniões porque nós nos conhecemos há algum tempo, desde 1950 para ser exato, quando ele era secretário de Estado do Vaticano para Assuntos Ordinários. Não escondo nada dele, nunca escondi. E se o papa achasse errado fazer o que faço, se ele me pedisse para parar, eu pararia. Eu sou servo da Igreja e conheço o valor do sacrifício. Mas o papa não me diz nada disso, e se ele me chama de “arcebispo vermelho” ele o faz brincando, afetuosamente, com certeza não do modo como o fazem aqui no Brasil onde qualquer um que não seja um reacionário é chamado de comunista ou a serviço dos comunistas. A acusação não me atinge. Se eu fosse um agitador, um comunista, eu não poderia ir aos Estados Unidos e receber o título de doutor honoris causa das universidades americanas. Entretanto, ao dizer isso, quero deixar claro que através de minhas idéias e discursos eu não empenho a autoridade do papa –o que eu digo e faço é de minha exclusiva responsabilidade pessoal. O que não me torna um herói –não sou o único a falar. As torturas no Brasil, por exemplo, foram denunciadas, primeiro e principalmente, pela comissão papal que, esta sim, empenhou a autoridade do papa. O próprio papa então foi condenado, e sua condenação é muito mais eloqüente que a de um sacerdote que não teme ninguém no Vaticano.

Fallaci – Um pobre sacerdote que é um príncipe da Igreja, um dos homens mais admirados e respeitados do mundo. Um pobre sacerdote a quem cogitam em dar o Prêmio Nobel da Paz. Um pobre sacerdote que quando fala das torturas enche todo o Palais des Sports de Paris e desperta a consciência de milhões de pessoas em todos os países. Vamos falar disso, dom Helder?
D. Helder – Bem, as coisas eram assim mesmo. Estive em Paris e eles me pediram para dizer-lhes o que estava acontecendo. Eu disse, tudo bem, é dever do sacerdote também informar as pessoas, especialmente em relação a um país como o Brasil onde a imprensa é controlada ou subserviente ao governo. Comecei lembrando aos franceses que eu falava de um crime bem familiar a eles mesmos, e do qual foram culpados durante a guerra da Argélia, ou seja, a tortura. Acrescentei que essas infâmias também aconteciam devido à nossa fraqueza, como cristãos, acostumados demais a nos inclinarmos diante do poder e de suas instituições, ou então nos calarmos. Expliquei que não estava lhes contando nenhuma novidade, porque não era mais segredo que sofrimentos desumanos como os da Idade Média são aplicados aos prisioneiros políticos no Brasil –em todos os lugares já havia sido publicada uma documentação irrefutável. Então eu descrevi os métodos de tortura –dos choques elétricos aos paus-de-arara. E relatei incidentes que eu mesmo confirmara. Por exemplo, o caso de um estudante a quem fizeram coisas tão horríveis que ele se jogou da janela de uma delegacia. Seu nome era Luís de Medeiros. E a história continua desse modo. Assim que eu soube que Luís estava no hospital, corri até lá com um de meus informantes. E pude vê-lo. Fora a sua tentativa de suicídio, ele estava numa condição assustadora. Entre outras coisas eles haviam lhe arrancado quatro unhas e esmagado seus testículos. O médico que cuidava dele confirmou isso e disse: “Vá e diga ao governador, ele é médico, diga-lhe para vir aqui e examinar os corpos dos torturados”. Era o que eu procurava; ter finalmente em minhas mãos uma testemunha direta. Fiz a denúncia. E depois passei a denúncia a todos os vigários, aos bispos e à conferência dos bispos.

Fallaci – Alguns bispos não acreditaram, dom Helder, e se colocaram ao lado dos que negam a tortura. Como o senhor julga esses homens?
D. Helder – Como a senhora quer que eu os julgue? Esperando que Deus os ilumine, faça-os lembrar de suas responsabilidades. Sempre fui a favor do pluralismo da Igreja, mas, quando vejo aqueles que representam a parte pútrida dela, me dá vontade de dizer o que o papa João disse a certos indivíduos: “Caro padre, você não percebe que está realmente podre? O espírito de Deus nunca chegou até você, não é?” Bom Deus, era até legítimo, no começo, ou quase, ter dúvidas sobre as torturas. Não havia provas. Mas duvidá-lo hoje é grotesco. Foram publicados exemplos no relatório da Associação Mundial de Juristas – com nomes, sobrenomes, datas. E mais, quantos padres estão na prisão? Não são a maioria, porque é mais conveniente prender um leigo que um padre, torturar um leigo e não um padre, mas ainda há muitos e eles são testemunhas valiosas, se você conseguir chegar até eles. Eu digo “se”, porque hoje no Brasil, quando você é preso, fica impossível comunicar isso a alguém, entrar em contato com um parente ou um advogado. Mas isso até que não é o pior – o pior mesmo é o silêncio da imprensa e dos cidadãos. Nem um, nem outro ousa tocar no assunto, e assim parece que as pessoas estão de acordo com o regime, que as vítimas estão contando mentiras ou exagerando. Posso somente esperar que o escândalo surgido na imprensa mundial e a intervenção da Igreja possam ajudar a melhorar as coisas.

Fallaci – O que aconteceu ao senhor, dom Helder, depois das suas declarações em Paris?
D. Helder – Denunciar a torturas no Brasil é considerado pelo governo um crime contra a pátria. E nesse aspecto também há uma certa divergência de pontos de vista entre eu e o governo. De fato, eu considero um crime contra a pátria não denunciá-las. Então eu deixei Paris pensando, bem, vamos ver o que acontecerá com você, dom Helder, quando voltar ao Brasil. Não aconteceu nada. Passei tranquilamente pela polícia, pela alfândega, e fui para casa. É verdade, houve ataques na imprensa, ataques curiosos, estranhos. Mas eu não me importei com eles pois raramente leio os jornais, para não ficar amargurado. Além disso, é inútil tentar intimidar-me, no meu coração não há dúvidas, e o que existir no meu coração irá diretamente aos meus lábios. Eu digo ao meu rebanho, em minhas visitas pastorais, em meu sermões, as mesmas coisas que estou dizendo a você. Eles também não podem me afastar, pois no meu trabalho não reconheço nenhuma outra autoridade além do papa. É claro, estou proibido de falar no rádio, na televisão, e como não sou ingênuo eu sei, mais cedo ou mais tarde eles vão me privar de meus direitos civis. Porém estes não valem nada aqui no Brasil atualmente. Ninguém pode votar, não há eleições. Mas no geral eu gozo de uma certa liberdade, eles só me incomodam com ameaças.

Fallaci – Que tipo de ameaças?
D. Helder – Ameaças de morte, não? Rajadas de metralhadoras, bombas, telefonemas e calúnias endereçadas ao Vaticano. A senhora deve saber que aqui no Brasil há um movimento de extrema direita chamado “Tradição, Fámilia e Propriedade”. Começaram a usá-lo para perturbar-me algum tempo atrás. Abordavam as pessoas que iam à igreja e perguntavam-lhes: “Você é a favor ou contra o comunismo?” As pessoas diziam que eram contra, naturalmente, e então eles recolhiam assinaturas e enviavam-nas ao papa, pedindo-lhe que expulsasse esse comunista dom Helder. O papa nunca lhes deu qualquer importância, e eu também não. Mais tarde surgiu um movimento clandestino, uma espécie de Ku Klux Klan brasileira, o assim chamado Comando de Caça aos Comunistas, ou CCC. Esse CCC passou a ter um interesse especial nas casas em que moravam comunistas suspeitos, e começaram a atirar com metralhadoras contra elas, ou a jogar granadas de mão e escrever insultos nos muros. E eles demonstraram seu respeito a mim várias vezes desse modo: por duas vezes arrebentaram o muro da casa com tiros de metralhadora e fizeram uma bagunça nos muros da igreja, uma vez até no palácio do arcebispo e no Instituto Católico, e outra vez numa igreja próxima onde eu costumo ir. Sempre deixando a assinatura CCC. Mas nunca me feriram. Por outro lado, atiraram num estudante, conhecido meu, na espinha, e agora ele está paralisado para sempre. Um colaborador meu de 27 anos de idade, Henrique Pereira Neto, professor da sociologia na Universidade do Recife, que pregava os Evangelhos nas favelas, foi encontrado enforcado numa árvore com o corpo crivado de balas, coisas assim não nos surpreendem mais aqui no Recife.

Fallaci – Não surpreendem mais?
D. Helder – Não, como as ameaças ao telefone. Já me acostumei com elas agora. Eles me ligam à noite, em intervalos de meia em meia hora, e dizem: “Você é um agitador, um comunista, prepare-se para morrer, estamos indo aí, e vamos lhe mostrar como é o inferno”. Que idiotas. Eu nem mesmo respondo. Eu sorrio e desligo. Mas por que atender ao telefone? É o que a senhora perguntaria, não é? Por que eu tenho o dever de atender ao telefone. Poderia ser alguém doente que precisasse de mim, que estivesse pedindo ajuda. Afinal, sou padre ou não? Durante os jogos da Copa do Mundo de futebol eles se acalmaram um pouco, pois só pensavam nisso. Mas depois começaram de novo, e na noite passada eles também não me deixaram rezar e nem mesmo dormir. A cada meia hora, trim-triim! “Alô, estamos indo até aí para te matar.” Idiotas! Eles ainda não entenderam que não adianta me matar: há muitos outros padres como eu por aí.


Fallaci – Infelizmente não, dom Helder. Pelo contrário, há muito poucos. Mas vamos voltar àquele seu apelido de “arcebispo vermelho”. Quais são suas idéias políticas hoje? O senhor é um socialista, como as pessoas dizem, ou não?
D. Helder – É claro que sou! Deus criou o homem à sua própria imagem e semelhança, porque ele foi seu co-criador e não porque ele era um escravo. Como podemos permitir que a maioria dos homens seja explorada e viva como escravo? Eu não vejo quaisquer soluções no capitalismo. Mas também não as vejo nos exemplos socialistas que nos são oferecidos hoje, porque eles estão baseados em ditaduras, e você não chega ao socialismo com ditaduras. Nós já temos uma ditadura –é essa minha idéia fixa. Sim, a experiência marxista é surpreendente –admito que a União Soviética teve um grande sucesso na mudança de suas próprias estruturas, admito que a China Vermelha fez isso de uma maneira ainda mais extraordinária. Mas quando eu leio sobre o que ocorreu na União Soviética, na China vermelha, os expurgos, os informantes, as prisões, o medo, eu vejo um paralelo muito grande com as ditaduras de direita e o fascismo! Quando eu observo a frieza com que a União Soviética se comporta em relação aos países subdesenvolvidos, a América Latina, por exemplo, eu a acho tão parecida com a frieza dos Estados Unidos! Eu tentaria ver algum exemplo de meu socialismo em certos países fora de órbita russa ou chinesa –talvez na Tanzânia, ou na Tchecoslováquia antes da invasão. Mas nem mesmo lá. Meu socialismo é especial, é um socialismo que respeita a pessoa humana e remonta aos Evangelhos. Meu socialismo é a justiça.

Fallaci – Dom Helder, não há palavra tão explorada como a palavra “justiça”. Não há palavra mais utópica que “justiça”. O que o senhor quer dizer com justiça?
D. Helder – Justiça não quer dizer atribuir a todos uma mesma quantidade de bens de um modo idêntico. Isso seria horrível. Seria como se todo o mundo tivesse o mesmo rosto e o mesmo corpo, a mesma voz e o mesmo cérebro. Eu acredito no direito que todos têm de ter rostos diferentes, corpos diferentes, vozes e cérebros diferentes. Deus pode correr o risco de ser considerado injusto. Mas ele não é injusto e quer que não haja privilegiados nem oprimidos, ele quer que cada um tenha o essencial para viver – enquanto permanece sendo diferente. Então o que quero dizer com justiça? Quero dizer uma melhor distribuição de bens, em escala nacional e internacional. Há um colonialismo interno e externo. Para demonstrar o último, tudo o que você tem a fazer é lembrar que 80% dos recursos desse planeta estão nas mãos de 20% dos países, nas mãos dos superpoderes ou das nações que servem aos superpoderes. Só para dar dois pequenos exemplos: nos últimos 15 anos os Estados Unidos ganharam bem uns 11 bilhões de dólares na América Latina –essa cifra é fornecida pelo escritório de estatística da Universidade de Detroit. Ou dizer simplesmente que para um trator canadense a Jamaica tem que pagar o equivalente a 32 toneladas de açúcar… Por outro lado, para demostrar o colonialismo interno, tudo o que você tem que fazer é pensar no Brasil. No Norte do Brasil existem áreas que, sendo generosos, poderemos chamar de subdesenvolvidas. Outras ainda lembram a pré-história: as pessoas lá vivem como no tempo das cavernas e ficam felizes em comer o que encontram no lixo. E que eu posso dizer a essas pessoas? Que elas têm que sofrer para chegar ao paraíso? A eternidade começa aqui, na terra, não no paraíso.

Fallaci – Dom Helder, o senhor leu Marx?
D. Helder – É claro. Não concordo com suas conclusões mas eu concordo com a sua análise da sociedade capitalista. O que não dá a ninguém o direito de rotular-me de marxista honorário. O fato é que Marx deveria ser interpretado à luz de uma realidade que mudou, que está mudando. Eu sempre digo aos jovens que é um erro assimilar Marx ao pé da letra; ele deveria ser utilizado sem que as pessoas esqueçam que a análise é de um século atrás. Hoje, por exemplo, Marx nunca diria que a religião é uma alienação, ou uma força alienante. A religião obteve essa qualificação, mas ela não é mais válida. Veja o que ocorre com os padres na América Latina, e em todos os outros lugares. Além disso, muitos comunistas o sabem. Pessoas como o francês Garaudy o sabem, e não importa se pessoas como ele são expulsas do Partido Comunistas –elas existem e elas pensam, elas encarnam o que Marx diria em nossa época. O que eu posso dizer? Os homens de esquerda são frequentemente os mais inteligentes e generosos, mas eles vivem num mal-entendido composto de ingenuidade e cegueira. Eles não conseguem entender que hoje existem cinco gigantes no mundo: os dois gigantes capitalistas, os dois gigantes comunistas e um quinto gigante que tem pés de barro, o assim chamado mundo subdesenvolvido. O primeiro gigante capitalista, nem se precisa enfatizar, é chamado de Estados Unidos. O segundo é chamado de Mercado Comum Europeu, e também se comporta de acordo com todas as regras do imperialismo. O primeiro gigante comunista é chamado de União Soviética, o segundo é chamado de China vermelha, e só os imbecis se iludem ao achar que os dois impérios capitalistas são separados dos dois comunistas pelas suas ideologias. Eles dividiram o mundo em Yalta e continuam dividindo-o enquanto sonham com uma segunda Conferência de Yalta. Então, para o quinto gigante de pés de barro, para nós, onde está a esperança? Eu não a vejo nos capitalistas americanos ou europeus ou nos comunistas russos ou chineses.

Fallaci – Dom Helder, eu tenho que lhe fazer uma pergunta embaraçosa. Houve um período em sua vida em que o senhor adotou o fascismo. Como isso foi possível? E como mais tarde o senhor fez uma escolha tão diferente? Desculpe-me pela lembrança tão ruim.
D. Helder – Você tem todo o direito de lembrar-me desse episódio ruim e eu não me envergonho de responder. Em cada um de nós dorme um fascista e às vezes ele nunca desperta. Às vezes, porém, ele desperta sim. Em mim ele despertou quando eu era jovem. Eu tinha 22 anos de idade, sonhava em mudar o mundo, eu via o mundo divertido em direita e esquerda, fascismo e comunismo. No Brasil o fascismo era chamado de Ação Integralista. Os integralistas usavam camisas verdes em vez das pretas dos italianos de Mussolini. Seu lema era Deus-Pátria-Família –um lema que soava bem para mim. Como eu julgo agora? Foi minha simplicidade juvenil, minha boa fé, minha falta de informação –não havia muitos livros para ler, nem homens sãos a quem eu pudesse ouvir. Mas também pelo fato de meu superior, o bispo do Ceará, ter sido favorável a eles e ter me pedido para trabalhar com os integralistas. A senhora sabe que eu trabalhei com eles até os 27 anos de idade? Comecei a suspeitar que esse não era o caminho certo só quando cheguei ao Rio de Janeiro, onde o cardeal Leme, que não gostava do bispo do Ceará, ordenou-me que abandonasse o movimento. Não me incomodo de lhe contar isso, porque acho que qualquer experiência, qualquer erro enriquece e ensina as pessoas – se não por isso, pelo menos ajuda a entender os outros. Mas a senhora quer saber como cheguei às minhas escolhas de hoje? A resposta é simples: quando um homem trabalha em contato com o sofrimento, ele sempre acaba se emprenhando com esse movimento. Muitos reacionários são o que são porque não conhecem a pobreza e a humilhação. Quando eu me engajei? Quem sabe? Posso só dizer que as germinações já existiam em 1952 quando fui nomeado bispo. Em 1955, o ano do Congresso Eucarístico Internacional, já era uma germinação avançada. Dei a luz às minhas novas idéias num dia de 1960, na Igreja da Candelária, na Festa de São Vicente de Paula. Subi ao púlpito e comecei a falar da caridade compreendida como justiça e não como beneficência.

Fallaci – Dom Helder, alguns entendem que devem alcançar essa justiça pela violência. O que o senhor pensa da violência como instrumento de luta?
D. Helder – Eu a respeito, mas aqui há algo que precisa ser declarado. Quando falamos de violência não devemos esquecer que a violência número um, a violência que é a mãe de todas as violências nasce dos ressentimentos. É chamada de injustiça. Assim os jovens que tentam reagir à opressão da violência número um, com uma violência número dois, chamada de violência existente, provocam a violência número três, chamada de violência fascista. É um espiral. Eu como padre não posso e não devo aceitar qualquer uma dessas três violências, mas eu entendo a violência número dois – precisamente porque eu sei que se chega a ela através da provocação. Detesto aqueles que permanecem passivos, que ficam quietos, e amo aqueles que lutam, que se envolvem. No Brasil, os jovens que reagem à violência com violência são idealistas, a quem eu admiro. Infelizmente sua violência leva a coisa alguma, e, devo acrescentar, quando você começa a brincar com armas os opressores vão simplesmente esmagá-lo. Pensar em enfrentá-los no seu nível é pura loucura.

Fallaci – Em outras palavras, dom Helder, o senhor está me dizendo que a revolta armada é impossível na América Latina?
D. Helder – Legítima e impossível. Legítima porque foi provocada, impossível porque será esmagada. A ideia de que a guerra de guerrilhas seria a única solução para a América Latina desenvolveu-se depois da vitória de Fidel Castro. Mas no começo Fidel Castro não tinha os Estados Unidos contra ele! Os Estados Unidos foram pegos de surpresa por Cuba, e depois de Cuba eles organizaram uma milícia antiguerrilha em todos os países da América Latina, para evitar o surgimento de outras Cubas. Assim, hoje na América Latina todos os militares no poder são auxiliados pelo Pentágono, na repressão a qualquer um que tente fazer uma revolução. Além de escolas especiais de guerra onde os soldados são treinados sob as piores condições, na selva, no meio das cobras, lá também eles aprendem propaganda política. Isto é, enquanto seus corpos aprendem a matar, suas mentes são convencidas de que o mundo está dividido em duas partes: por um lado o capitalismo com seus valores, e por outro o comunismo com seus antivalores. Essas forças especiais, em suma, são tão bem preparadas que qualquer um que tente enfrentá-las inevitavelmente acaba perdendo.
a bela Oriana com o não menos belo Paul Newman em 1963)


Fallaci – E Camilo Torres?
D. Helder – É a mesma coisa. Camilo foi um padre sincero, mas num certo ponto, sendo um sacerdote e um cristão, ele perdeu qualquer ilusão de que a Igreja tomasse conhecimento de seus belos textos. E ele achava que o Partido Comunista era o único capaz de fazer alguma coisa. Então os comunistas o pegaram e o enviaram imediatamente à luta, onde o perigo era maior. Eles tinham um plano em mente: Camilo seria morto e a Colômbia pegaria fogo. Camilo foi morto, mas a Colômbia não pegou fogo. Nem os jovens e nem os trabalhadores se mexeram. E então voltamos àquela minha constatação de antes.

Fallaci – Dom Helder, o senhor também aplicaria essa constatação aos jovens que estão fazendo guerra de guerrilhas nas cidades brasileiras?
D. Helder – É claro. Oh, eu respeito muito os jovens brasileiros de quem a senhora está falando! Eu os amo porque eles são conscientes, maduros, porque eles não agem com ódio e pensam somente em libertar seus país, às vezes às custas de suas próprias vidas. Eles nem têm tempo de preparar as massas, eles são impacientes e pagam com suas próprias vidas. Eu não gostaria de desencorajar esses jovens, mas tenho de fazê-lo. Será que vale a pensa sacrificar suas vidas por nada? Ou quase nada? Considere, antes de mais nada, os assaltos a bancos que eles realizam só para conseguir o dinheiro necessário para comprar armas. As armas têm um preço muito elevado, trazê-las às cidades é um empreendimento maluco –o risco, o sacrifício, será que não é desproporcional? Agora considere o sequestro de diplomatas, que eles realizam para libertar seus camaradas da prisão. Todas as vezes que um embaixador é libertado pelos guerrilheiros em troca de seus colegas presos, a polícia envia uma diligência e as celas vazias ficam cheias novamente, e assim como as câmaras de tortura. Eles saem de um lado e entram pelo outro –qual é o sentido disso? O sentido de fazer um intercâmbio, de acrescentar mais aleijados aos aleijados, mais mortes aos mortos? O sentido de aumentar a espiral de violência, de facilitar a ditadura fascista? Como a senhora vê, minha oposição não é baseada em motivos religiosos mas sim táticos. Não provêm de nenhum idealismo, eles provêm de um extremo realismo político, um realismo que se aplica a qualquer outro país: Estados Unidos, Itália, França, Espanha, Rússia. Se em qualquer um desses países os jovens saíssem às ruas e fizessem uma revolução, eles seriam aniquilados num instante. Nos Estados Unidos, por exemplo, o Pentágono acabaria tomando todo o poder. Não precisamos ser impacientes!
(Dom Helder com Abdias do Nascimento)
Fallaci – Até mesmo Jesus Cristo foi impaciente, dom Helder. E ele não defendeu um monte de argumentos táticos quando desafiou as autoridades constituídas. Na história do mundo aqueles que venceram foram sempre aqueles que desafiaram o impossível. E os jovens…

D. Helder – Se você soubesse como eu entendo os jovens! Eu também era impaciente quando jovem –no seminário eu era tão rebelde que não permitiram que eu me tornasse um Filho de Maria (organização pia). Eu falava nas horas devotadas ao silêncio, eu escrevia poesia mesmo sendo proibido, eu discutia com meus superiores. E as novas gerações de hoje enchem-me de admiração porque eles são cem vezes mais desobedientes do que eu era, cem vezes mais corajosos. Nos Estados Unidos, na Europa, em todos os lugares. Não sei nada sobre os jovens russos, mas tenho certeza de que eles também estão tentando algo. Sim, eu sei que para os jovens de hoje é tudo mais fácil porque eles têm mais informações, mais comunicações, eles têm a estrada que a minha geração pavimentou para eles. Mas eles a usam tão bem, essa estrada! Eles têm uma sede tão grande de justiça, de revolta, têm tanto senso de responsabilidade! Estão cobrando seus pais, seus professores, seus pastores, eles mesmos. Viram as costas à religião porque perceberam que a religião os traiu. E eles são sinceros quando encontram sinceridade, sensibilidade. Há algum tempo atrás alguns jovens marxistas vieram me ver, e com uma certa arrogância disseram que haviam decidido aceitar-me. “Ouçam, ouçam”, eu disse a eles, “suponham que eu não os aceite.” Isso nos levou a uma discussão dura e acalorada, mas que terminou num abraço. Eu não só amo os jovens de hoje, eu também os invejo, pois eles têm a sorte de viver a sua juventude em conjunto com a juventude do mundo. Mas ninguém pode me impedir de ser velho e, portanto, sábio –e não impaciente.

Fallaci – É claro que não. Então me deixe perguntar-lhe, dom Helder. Quais as soluções encontradas pela sua sabedoria para eliminar a injustiça?
D. Helder – Qualquer um que tenha a solução em seu bolso é um tolo presunçoso. Eu não tenho soluções. Eu só tenho opiniões, sugestões que podem ser resumidas em duas palavras: violência pacífica. Isso significa não à violência escolhida pelos jovens com armas nas mãos, mas a violência, se você quiser, que já foi pregada por Ghandi ou Martin Luther King. A violência de Cristo. Eu a chamo de violência porque não se contenta com pequenas reformas, revisões, mas insiste numa revolução completa das estruturas atuais –uma sociedade toda refeita, de cima a baixo, numa base socialista e sem derramamento de sangue. Não é suficiente lutar pelos pobres, morrer pelos pobres –temos que dar aos pobres uma consciência de seus direitos e de sua pobreza. As massas têm que perceber a urgência de libertarem-se sozinhas, e não serem libertadas por alguns poucos idealistas que enfrentam a tortura como os cristãos enfrentavam os leões no Coliseu. Ser comido pelos leões não é muito bom quando as massas ficam ali, sentadas, para assistir ao espetáculo. Mas como poderemos fazê-las se levantar e ficar de pé sobre as próprias pernas? Você responde –esse é um jogo de espelhos! Bem, eu posso ser uma utopista e um ingênuo, mas eu digo que é possível conscientizar as massas, e talvez seja até possível abrir um diálogo com os opressores. Não há nenhum homem completamente mau, até mesmo no mais infame dos seres humanos você encontra elementos válidos –e se conseguíssemos de alguma forma conversar com os militares mais inteligentes? E se conseguíssemos de fato induzi-los a rever sua filosofia política? Tendo sido um integralista  um fascista, eu conheço o mecanismo de suas mentes –pode até ser que consigamos convencê-los de que esse mecanismo está errado, que torturar e matar não mata as idéias, que a ordem não é mantida com o terror, que o progresso só é alcançado pela dignidade, que os países subdesenvolvidos não estão se defendendo ao se colocarem a serviço dos impérios capitalistas, que esses impérios estão lado a lado com os impérios comunistas. Precisamos tentar.

Fallaci – O senhor tentou, dom Helder?
D. Helder – Eu tentarei. Estou tentando agora, conversando com a senhora nessa entrevista. Eles terão que entender também que o mundo está caminhando, que os ventos de revoltas não estão soprando somente no Brasil ou na América Latina, mas também em todo o planeta. Bom Deus, eles sopraram até na Igreja Católica! Sobre o problema da justiça, a Igreja já chegou a certas conclusões, que foram colocadas no papel e assinadas. É verdade que muitos padres estão falando sobre o celibato, mas há mais ainda falando sobre a fome e a liberdade. E então, a senhora sabe, devemos considerar a conseqüências da discussão sobre o celibato; há uma relação entre as várias revoltas, você não pode exigir mudanças das estruturas externas se não tem a coragem de mudar as internas. Os grandes problemas humanos não são monopólio de padres que vivem na América Latina de dom Helder. Eles são enfrentados por padres da Europa, dos Estados Unidos, do Canadá, de todos os lugares.

Fallaci – Eles são grupos isolados, dom Helder. No topo da pirâmide ainda existem aqueles que defendem as velhas estruturas e as autoridades estabelecidas.
D. Helder – Não posso dizer que você está errada. Há uma enorme diferença entre as conclusões assinadas no papel e as realidades vivas. A Igreja tem estado sempre preocupada demais com o problema de manter a ordem, de evitar o caos, e isso a manteve distante de perceber que sua ordem era muitas vezes uma desordem. Freqüentemente eu imagino, sem desculpar a Igreja, como é possível que gente séria e virtuosa tenha aceitado e continue aceitando tantas injustiças. Durante três séculos no Brasil a Igreja achou normal que os negros fossem mantidos como escravos! A verdade é que a Igreja Católica pertence ao mecanismo do poder. A Igreja tem dinheiro, por isso investe seu dinheiro, afunda até o pescoço nos empreendimentos comerciais, e se liga àqueles que detêm as riquezas. Ela acha que assim protege seu prestígio, mas se quisermos sustentar o papel que outorgamos a nós mesmos teremos que parar de pensar em termos de prestígio. E também não devemos lavar as mãos como Pôncio Pilatos; precisamos nos redimir do pecado da omissão e pagar nossas dívidas, readquirindo o respeito dos jovens, sua simpatia e talvez seu amor. Fora com esse dinheiro e com a pregação da religião em termos da paciência, obediência, sofrimento, beneficência. Chega de beneficência, sanduíches e biscoitos. Você não defende a dignidade do homem dando-lhe sanduíches e biscoitos, mas ensinando-lhe a dizer: “Eu tenho direito a um hambúrguer!” Nós padres somos responsáveis pelo fatalismo com o qual os pobres têm sempre se resignado à pobreza, as nações subdesenvolvidas ao subdesenvolvimento. E prosseguindo desse modo nós provamos que os marxistas estão certos quando dizem que as religiões são uma força alienada e alienante, são o ópio do povo!

Fallaci – Meu Deus, dom Helder! Será que Paulo VI sabe que o senhor diz essas coisas também?
D. Helder – Ele sabe, ele sabe. E ele não desaprova. É que ele não pode falar como eu falo. Ele tem um certo tipo de gente à sua volta, pobre homem!

Fallaci – Ouça, dom Helder, o senhor acha mesmo que hoje em dia a Igreja pode representar um papel importante na busca e na aplicação da justiça?
D. Helder – Oh, não. Vamos tirar essa idéia da cabeça, de que depois de causar tanto tumulto a Igreja possa se permitir a representar tal papel. Temos o dever de prestar esse serviço sim, mas sem ostentação. Sem esquecer que a culpa mais séria pertence a nós, cristãos. No ano passado eu participei, durante uma semana em Berlim, de uma mesa redonda de cristãos, budistas, hindus, marxistas. Ali foram discutidos os grandes problemas do mundo, foi examinado o que fizemos, e chegou-se à conclusão de que as religiões têm um grande débito para com a humanidade, mas que os cristões, ou melhor, os católicos, têm o débito maior. Como a senhora explica que esse punhado de países que têm em suas mãos 80% dos recursos do mundo são países cristãos e muitas vezes católicos? Então eu concluo: se existe uma esperança ela reside no esforço conjunto de todas as religiões, não só na Igreja Católica ou nas religiões cristãs. Atualmente não há uma religião isolada que tenha muitas possibilidades. A paz só poderá ser alcançada graças àqueles a quem o papa João chamou de homens de boa vontade.

Fallaci – Há uma miséria sem nenhum poder, dom Helder.
D. Helder – São as minorias que contam. Foram sempre as minorias que mudaram o mundo, rebelando-se, lutando, e despertando as massas. Alguns padres aqui, alguma guerrilha ali, algum bispo aqui, algum jornalista ali. Não estou tentando adular a senhora, mas devo dizer-lhe que sou uma das poucas pessoas que gostam de jornalistas. Quem, senão os jornalistas, relatam as injustiças e informam milhões e milhões de pessoas? Não corte esse comentário da entrevista; no mundo moderno os jornalistas são um fenômeno importante. Houve um tempo em que vocês vinham ao Brasil só para falar sobre nossas borboletas, nossos papagaios, nosso carnaval, em resumo, nosso folclore. Agora, em vez disso vocês vêm para cá e levantam as questões ligadas à nossa pobreza, às nossas torturas. Nem todos vocês, é claro –há também os inconsequentes que nem se importam se morremos de fome ou de choques elétricos. Nem sempre com sucesso, é claro –sua sede de verdade pára onde começam os interesses da empresa a que vocês servem. Mas Deus é bom, e às vezes ele providencia para que seus chefes não sejam muito inteligentes. Assim, com a bênção de Deus, as notícias sempre passam, e uma vez impressas eles repercutem com a velocidade de um foguete dirigido à lua, e se espalham como um rio que transborda invadindo as margens. O público não é estúpido, mesmo sendo silencioso. Tem olhos e ouvidos, mesmo se não tiver boca. E sempre chega o dia em que ele lembra o que leu. Estou só esperando que ele leia essa verdade definitiva: não devemos dizer que o rico é rico porque trabalhou mais ou é mais inteligente, não devemos dizer que o pobre é pobre porque é estúpido ou preguiçoso. Quando falta a esperança e só se herda pobreza, não adianta nada trabalhar ou ser inteligente.
Dom Helder com o presidente João Goulart)


Fallaci – Dom Helder, se o senhor não fosse um padre…
D. Helder – Você nem precisa perguntar –não posso nem imaginar ser alguma outra coisa além de padre. Veja, eu considero a falta de imaginação um crime, e mesmo assim, eu não consigo imaginar-me sendo outra coisa senão um padre. Para mim ser um padre não é só uma escolha, é um modo de vida. É o que a água é para o peixe, o céu para o pássaro. Eu realmente acredito em Cristo. Para mim Cristo não é uma ideia abstrata –ele é um amigo pessoal. Ser um padre nunca me desapontou, nem me provocou arrependimentos. Celibato, castidade, a ausência de uma família do modo como vocês leigos a entendem, tudo isso nunca foi um peso para mim. Se eu perdi certas alegrias, tive e tenho outras muito mais sublimes. Se você soubesse o que eu sinto quanto celebro a missa, como me torno uno com ela! Para mim a missa é verdadeiramente o Calvário e a Ressurreição, é uma grande alegria! Veja, há aqueles que nasceram para cantar, aqueles que nasceram para ser padres –eu comecei a dizer isso com a idade de 8 anos e com certeza não porque meus pais puseram essa idéia em minha cabeça. Meu pai era maçom e minha mãe ia à igreja uma vez por ano. Eu me lembro até que um dia meu pai ficou assustado e disse: “Meu filho, você está sempre dizendo que quer ser padre. Mas você sabe o que isso significa? Um padre é alguém que não pertence a si mesmo, ele pertence a Deus e aos homens, ele é alguém que deve somente dar amor, fé e caridade…”. E eu disse: “Eu sei. É por isso que eu quero ser um padre”.

Fallaci – Mas não um monge. Seu telefone toca muito, e esse muro arrebentado pelas metralhadoras não seria próprio de um monastério.
D. Helder – A senhora está errada! Eu carrego um monastério dentro de mim. Talvez não exista muito misticismo em mim, e mesmo em meus encontros diretos com Cristo, sou tão impertinente quanto Cristo desejaria que eu fosse. Mas sempre chega o momento em que eu me isolo, à maneira de um monge. Às 2 horas da manhã eu sempre acordo, me levanto, me visto, e recolho os pedacinhos espalhados durante o dia; um braço aqui, uma perna ali, a cabeça, sabe-se lá onde. Costuro-me todo novamente; sozinho começo a pensar ou escrever, ou rezar, ou então me preparo para a missa. Durante o dia sou um homem frugal. Como pouco, detesto anéis e crucifixos valiosos, como você pode ver. Rejubilo-me com dádivas que estão bem à mão: o sol, a água, as pessoas, a vida. A vida é bela, e muitas vezes fico imaginando porque, para sustentar a vida, é preciso matar outra vida –no caso um homem ou um tomate. Sim, eu sei que enquanto mastigo o tomate eu o faço tornar-se dom Helder e assim o idealizo, torno-o imortal. Mas o fato permanece: estou destruindo o tomate –por quê? É um mistério que eu não consigo assimilar, e assim eu o coloco de lado dizendo, não importa, um homem é mais importante do que um tomate.

Fallaci – E quando o senhor não está pensando no tomate, dom Helder, não lhe acontece de ser um pouco menos monge e um pouco menos padre? Em resumo, zangar-se com homens que valem menos do que um tomate e sonhar com a possibilidade de ao menos golpeá-los com seus punhos?
D. Helder – Se isso chegasse a acontecer eu seria um padre com uma espingarda no ombro. E eu respeito muito os padres com espingardas nos ombros; eu nunca disse que usar armas contra um opressor é imoral ou anticristão. Mas não é minha escolha, não é minha estrada, não é meu jeito de aplicar os Evangelhos. Então quando eu me zango, e eu sinto isso quando as palavras não saem mais da minha boca, eu paro e digo: “Acalme-se dom Helder!” Sim, eu compreendo, você não é capaz de ligar o que eu acabo de dizer com o que eu disse antes: por um lado o monastério, pelo outro a política. Mas o que você chama de política, para mim é religião. Cristo não jogou o jogo dos opressores, ele não cedeu àqueles que lhe disseram que, se você defender os jovens que sequestram embaixadores, se você defender os jovens que assaltam bancos para comprar armas, você está cometendo um crime contra a pátria e o Estado. E Igreja quer que eu me ocupe com a libertação da alma, mas como eu posso libertar uma alma se eu não consigo libertar o corpo que contém essa alma? Eu quero enviar homens para o céu, não cachorrinhos. Muito menos cachorrinhos com estômagos vazios e testículos destruídos.

Fallaci – Obrigada, dom Helder. Parece-me que isso diz tudo, dom Helder. Mas e agora, o que acontecerá com o senhor?
D. Helder – Bah! Eu não me escondo, eu não me defendo, e não seria preciso ter muita coragem para me eliminar. Mas estou convencido de que eles não me matarão se Deus não o quiser. Se, pelo contrário, Deus quiser, porque ele acha que está certo, eu o aceito como sua graça –quem sabe, minha morte pode até ajudar. Eu já perdi quase todo o meu cabelo, o pouco que restou ficou branco, e não tenho mais muitos anos de vida. Por isso suas ameaças não me assustam. Em resumo, será um pouco difícil para eles, desse modo, fazer com que eu me cale. O único juiz que eu aceito é Deus.

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