Intervenção artística na região da Luz – Foto: reprodução |
Nesta terça-feira, 23, a Prefeitura de São Paulo começou a demolição de imóveis na região da cracolândia sob alegação de “revitalização”. No entanto, não verificou que tinha gente dentro do local a ser demolido. Paredes caíram sobre três delas. Secretário, que disse não ter vistoriado imóvel por dentro, não admitiu o erro e culpou os ocupantes
Em uma ação desastrosa da Prefeitura de São Paulo, três pessoas ficaram feridas pela derrubada de uma parede na rua Dino Bueno, 138, na região da Luz. Ao demolir um imóvel, descobriu-se que havia pessoas morando no local. O secretário Marcos Penido, de Infraestrutura Urbana e Obras, disse que todos foram informados da operação, que fitas foram passadas no entorno do terreno para impedir a entrada mas afirmou não ter entrado no imóvel. Classificou aqueles que se abrigavam no local como “invasores”. “Não vimos uma entrada clandestina onde estavam essas pessoas”, afirmou Penido. O secretário disse que cuidados adicionais precisam ser tomados mas não admitiu o erro, culpando os ocupantes por estarem lá no momento em que a retroescavadeira derrubou a parede. Pessoas moram naquele local. E o imóvel estava abandonado, ou seja, sem função social, como disse o próprio secretário Penido.
As ruas da região da Luz e dos Campos Elíseos, no centro de São Paulo, abrigam historicamente pessoas em situação de rua e miséria. Muitas delas são dependentes de drogas. Desde os anos 1990, os poderes públicos tentam intervir na área com o objetivo de retirar essa população do local. As tentativas que partiram da segurança pública sempre trataram com repressão as pessoas que vivem ali, em ações como a Operação Limpeza (2005), a Operação Dignidade (2007) e a Operação Sufoco (2012). No último domingo, 21, sob parceria do prefeito da capital, João Dória Jr, e do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, ambos do PSDB, uma megaoperação policial prendeu 38 supostos traficantes de drogas e deixou a esmo centenas de dependentes de crack e moradores das ruas da região, além de vulnerabilizar ainda mais a situação dos comerciantes da área. Segundo a prefeitura, 12 pessoas aceitaram a internação. Mas os abrigos – que não foram avisados da operação – ficaram superlotados. “Não há possibilidade da cracolândia voltar”, afirmou Dória Jr, após a intervenção de mais de 900 policiais militares e civis.
Mas o que faz com que a cracolândia exista é uma conjunção de fatores complexos, em que se sobrepõem problemas de segurança pública, saúde pública, assistência social e, sobretudo, uma persistente carência de humanidade de quem olha (e deve gerir com políticas públicas) a região. Na história, as ações estritamente policiais serviram apenas para a “consolidação de uma territorialidade itinerante”, que ficou rotulada pejorativamente de “cracolândia”, como mostra o relatório de avaliação do programa De Braços Abertos, implantado na gestão de Fernando Haddad (PT) e que tem visibilidade no mundo todo como um caso de sucesso. Pela primeira vez, políticas públicas almejaram promover melhorias nas condições de vida e de saúde das centenas de pessoas, promovendo projetos de redução de danos e acolhimento da população dependente de drogas.
O prefeito atual, no entanto, acabou com o programa De Braços Abertos. Substituiu por uma iniciativa chamada ‘Redenção’, que ainda não está pronta para funcionar. A prefeitura informou, em comunicado em janeiro deste ano, que o novo programa incorporaria o De Braços Abertos e o Recomeço, do governo paulista. Porém, as propostas são antagônicas por natureza: enquanto o De Braços Abertos propunha a acolhida dos usuários, independentemente do uso ou não de drogas, o Redenção sugere testes de urina para verificar abstinência. Mas como obrigar um dependente de drogas a não usar entorpecentes para conseguir acessar a política pública? Para o secretário de saúde do Estado de São Paulo, David Uip, a busca pelo programa ocorreria a princípio de forma inercial, em decorrência da intervenção policial. “Quando uma operação dessas tira o fluxo fácil da droga o usuário procura o atendimento espontaneamente”, afirmou. O secretário disse ainda que os que não forem por vontade própria serão convencidos por agentes do programa.
“Operações como essa prendem muita gente e apreendem quantidades de drogas que parecem expressivas, mas a um custo enorme de violência contra as pessoas que vivem ali”, afirma o coordenador científico da Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas, Mauricio Fiore, pesquisador e diretor administrativo do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). O Conselho Regional de Psicologia de São Paulo também se posicionou. Por meio de nota, afirmou: “novamente e quantas vezes forem necessárias, evidenciamos e nos posicionamos incisivamente contra as ações e planos acerca de políticas sobre álcool e outras drogas adotadas pelos governos do Estado e Município de São Paulo caracterizadas pelo silenciamento e segregação. Trata-se de um ataque à dignidade humana e à população. O interesse público é ignorado e violentado. A que e a quem serve a lógica higienista e proibicionista?”.
A escolha por enfrentar o problema das drogas por meio do combate policial e militar não combina com o grau de vulnerabilidade das pessoas que precisam da atenção do Estado. O uso da força policial se justifica apenas com o objetivo de encarcerar e matar pessoas – geralmente pobres e negras. Não tem resultados positivos na venda de drogas. E as pessoas que são dependentes químicos e estão em situação de alta vulnerabilidade social não podem se sentir abandonadas pelo poder público. Segundo a Constituição brasileira, é papel do Estado tratar dessa situação pela ótica dos direitos humanos e não apenas da segurança pública.
As iniciativas de sucesso para tratar a questão no mundo revelam que o mais importante é reconhecer no dependente de crack uma pessoa, com uma história de vida, um passado, uma família. “As evidências claramente mostram que programas como o De Braços Abertos tiveram sucesso porque se conectaram com pessoas que precisavam deles”, explica Liz Evans, uma das maiores autoridades do mundo em uso de drogas em ambientes supervisionados. Ela coordena dois dos mais importantes programas de redução de danos dos Estados Unidos, em Nova York e Washington. “Tentar corrigir o problema com o deslocamento das pessoas que viviam na cracolândia não melhora a segurança no bairro ou na comunidade ao redor. Moveu-se a situação de lugar e se causou mais confusão. Eles tiraram as pessoas dali. Mas elas não desapareceram. Agora estão vagando mais desesperadas e sem um lugar para voltar, sem apoio. A vida deles não melhorou. Continuam com as mesmas questões e necessidades de antes de serem forçados a mudar. Pior: hoje sua sobrevivência será ainda mais difícil”, alerta. Liz avisa que a única forma de curar o quadro de vulnerabilidade compilado na cracolândia – e agora dispersado, mas persistente – é a via da reflexão, criatividade, liderança, força e amor.
Ao final da operação desta terça-feira, 23, um morador da cracolândia mandou um recado ao prefeito João Dória Jr: “Tem que tratar dependente químico é com amor, não é com guerra, não.”
Segundos depois da declaração do morador, a PM começou a dispersar as pessoas com bombas de gás lacrimogêneo.
por Maria Carolina Trevisan na Revista Brasileiros
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