30 de jul. de 2018

O uso do celular e da internet como mecanismos de defesa contra a violência de gênero

Informação é poder, por isso gostaria de compartilhar algumas reflexões que tenho feito a partir da minha prática profissional e que podem ser úteis. 

As vezes as mulheres não buscam ajuda institucional imediatamente após sofrerem violência. As vezes as marcas físicas aparecem só na hora ou somem em poucos dias. As vezes depois de certas situações, a única coisa que ela quer é tomar um banho e arrancar aquilo do corpo delas. As vezes a coragem pra encarar uma delegacia vem só dias, meses depois.

O acolhimento a mulheres vítimas de violência no âmbito do sistema de justiça criminal frequentemente deixa a desejar. É comum as mulheres não serem adequadamente orientadas sobre como fazer exame de corpo de delito, sobre como fazer a representação para que o agressor seja investigado e processado, sobre como requerer as medidas protetivas de urgência, etc.

Se alguém te xingar ou ameaçar por mensagem, tire print da tela na hora porque pode dar tempo da pessoa apagar. Tire com o nome do contato, depois apague o número da sua agenda e tire de novo, para aparecer o número da pessoa. 

Se aquela ligação telefônica tomar um rumo estranho, grave.

Se alguém te agredir fisicamente, fotografe as marcas imediatamente após a violência acontecer. Se conseguir registrar o momento em que a violência efetivamente ocorreu, busque enviar o registro o quanto antes para uma pessoa de confiança se correr risco de o agressor apagar o vídeo, a foto ou o áudio do seu celular.

Salve esses arquivos numa nuvem, pois se você perder seu celular você não perde os arquivos. Se for dolorido de manter esses registros com você e der vontade de apagar a conversa inteira, envie para uma amiga de confiança antes de apagar. 

Muitas vezes as soluções que o judiciário oferece para vitimas de violência de gênero não trazem a responsabilização e a reparação que as mulheres precisam. O sistema de justiça criminal é extremamente revitimizador, e buscar indenização na esfera cível é algo trabalhoso e o judiciário ainda é muito patriarcal e está engatinhando na compreensão de questões como violência emocional, psicológica, patrimonial, por mais que a lei Maria da Penha tenha reconhecido a existência dessas modalidades de violência.

Por isso, e muitas vezes pelo próprio calor da emoção, muitas mulheres têm optado por expor a violência que sofreram e seus agressores nas redes sociais. Eu sou a última pessoa a dissuadir uma mulher de fazer isso, mas precisamos falar sobre como a “justiça” tem lidado com essas questões. Mulheres que expõem seus agressores citando-os nominalmente, possibilitando através de seus relatos que o agressor seja identificado, vêm sendo processadas tanto na esfera criminal quanto cível, sob a machista alegação de que a exposição feriria a honra de quem é exposto. Já vi alguns casos em que o judiciário manda a rede social tirar o relato contendo a exposição do ar, e isso já na liminar, antes mesmo da mulher ter a oportunidade de se defender.

Um dos caminhos para se defender de alegações de calúnia, difamação e de pretensões de obter indenização por danos morais em razão da exposição são provas das várias modalidades de violência. Por isso, mulheres, se resguardem. Exponham se for importante pra vocês, porque as vezes o que a gente precisa é o reconhecimento de que não estamos loucas, de que aquilo que foi feito a nós realmente aconteceu. E quando uma mulher expõe a violência que sofreu, ela se encontra com outras que passaram por situações parecidas.

Mas se forem expor, o façam cientes de que a justiça é patriarcal e de que as consequências podem ser desagradáveis e se estenderem por meses. Mas nós advogadas feministas estamos aqui pra isso, pra comprar a briga de que expor faz parte do direito das mulheres a uma vida livre de violência, pra orientar e acompanhar as vítimas para que o caminho do sistema de justiça seja menos tortuoso.

É possível registrar boletim de ocorrência de ameaça, calúnia, injúria ou difamação até 6 meses após o recebimento da mensagem. Lesão corporal, mesma coisa, prazo decadencial de 6 meses. Isso significa que você pode registrar um boletim de ocorrência até 6 meses depois de o fatos acontecerem, e da data do registro da ocorrência, você tem mais 6 meses pra representar, que basicamente significa manifestar seu desejo de que o agressor seja processado criminalmente.

O ciclo da violência é real, depois dos momentos de tempestade vem momentos de calmaria, rolam pedidos de desculpas, reconciliação, as vezes parece que não vai acontecer de novo. 

Mas se acontecer, já sabe: organize seu relato antes de ir na delegacia, situe os acontecimentos no tempo e no espaço e lembre que tudo o que aconteceu até 6 meses antes de quando você for registrar no boletim de ocorrência tem que entrar. Se o histórico do boletim de ocorrência não incluir todos os fatos que você relatou, peça à autoridade policial para reescrever até ficar satisfeita. Evite ir sozinha à delegacia e vá sabendo que o atendimento pode demorar e não ser acolhedor, pelo contrário.

Ter provas te coloca numa posição menos desconfortável do que não ter. Só que, por outro lado, até a coisa desandar de vez, as pessoas não olham pra situação com esse olhar. Então é útil a gente entender como funcionam as regras do jogo antes de precisarmos jogar.

Usemos então a tecnologia a que temos a nosso favor. Para nos conectar com outras mulheres, para registrar tudo aquilo que pode servir como prova de um contexto de violência, para, se for o caso, expor de forma que isso nos traga reparação e ao mesmo tempo não nos comprometa. E se a coisa desandar, consulte uma advogada, de preferencia feminista. Precisando, estamos aí!

Maira Pinheiro é advogada formada na Universidade de São Paulo, atua nas áreas criminal e de direitos das mulheres e é membra no núcleo de atendimento da Rede Feminista de Juristas – Defemde.

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