Por Camila Sposito
Está tramitando, na Câmara dos Deputados, o projeto de Lei n. 4.211/2012[1], que reconhece a prostituição como uma profissão, de autoria do Deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ).
Por ser um tema que mexe com noções éticas e morais, a "opinião pública" tem se deixado levar por ideais[2] em vez de se colocar na posição de Estado e debatê-lo no plano pragmático que uma política pública exige.
Em vez de divagar sobre possíveis efeitos negativos da aprovação da referida lei e/ou validar nossos ideais através do Estado, proponho esmiuçarmos o que temos certeza que acontecerá com o reconhecimento da prostituição como profissão para as prostitutas, para os cafetões, para os clientes, para a sociedade civil e para o Estado.
Para as prostitutas significa carteira assinada
Não à toa, carteira assinada é um sonho de muitos trabalhadores brasileiros, mas, de acordo com dados do IBGE, nem metade dos cidadãos que praticam atividades remuneradas conquistaram esse direito [3].
Trabalhar com carteira assinada garante uma série de direitos que são ainda dos poucos alívios que a massa trabalhadora detém na compensação de sua força de trabalho. Apenas os trabalhadores com carteira assinada podem exigir salário fixo todo mês, seguro-desemprego, licença maternidade, auxílio-doença, décimo terceiro, férias remuneradas, respeito à jornada de trabalho de oito horas com o pagamento de horas extras em seu valor adicional que lhes compete e folga semanal.
Somente trabalhadores com carteira assinada são contribuintes do FGTS, o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, que surgiu como compensação para o extinto direito de não demissão depois de dez anos trabalhando no mesmo lugar (estabilidade decenal). Dada sua característica de recolhimento obrigatório, em muitos casos é a única poupança que muitos trabalhadores conseguem construir em sua vida.
Na prática, poucos trabalhadores sem carteira assinada se aposentam dignamente. Isso porque o trabalho informal paga menos que o trabalho com carteira assinada e os trabalhadores informais não conseguem separar parte dessa remuneração para o INSS e não contam com a cota-parte da contribuição de seu empregador, que só é separada por obrigação legal quando existe vínculo de carteira assinada.
A questão da aposentadoria é particularmente cruel para as prostitutas, pois o trabalho sexual é uma carreira estafante e curta, que acaba sem qualquer garantia de descanso. Não por acaso, o projeto de lei de autoria de Jean Wyllys prevê a aposentadoria especial para a categoria.
Também o acesso às linhas de crédito e financiamento está condicionado à comprovação de renda fixa, o que significa, na realidade dos trabalhadores, ter uma carteira assinada. Com ela, consegue-se a casa própria, o carro, a TV, a geladeira.
Atualmente, prostitutas não contam com nenhum desses benefícios, não obstante trabalhem tanto ou mais que qualquer bancário, administradora, empregado doméstico, professora, servidores públicos. Não obstante sejam arrimos de muitas famílias.
Para os cafetões significa dor de cabeça
Ao reconhecermos a profissão da prostituta, reconhecemos reflexamente o status de empregador dos cafetões. Todo empregador sabe a dor de cabeça que isso é, até por isso as leis trabalhistas são alvo fixo da FIESP, o clube dos empresários.
Como empregadores, os cafetões ficam obrigados a pagar todos os benefícios elencados acima, sob pena de multa e outras sanções aplicáveis pelo Ministério do Trabalho e Emprego.[4] Caso não cumpram essas obrigações trabalhistas, poderão ser acionados na justiça e terão que pagar os valores com juros e correção monetária.
Na medida em que aumentamos os deveres dos cafetões com as prostitutas, o poder dos mesmos sobre elas diminui. É fácil ver que empregadores têm menos poder sobre seus empregados do que cafetões sobre prostitutas.
Atualmente, as prostitutas não têm como se defender de seus cafetões sem prejudicar seu sustento, primeiro porque chamar a polícia ou a justiça implicará no fechamento do prostíbulo, depois, porque dependem de seus agenciadores para cobrar clientes e fornecer-lhes segurança. Aceitam o que vier, não há alternativa.
Como profissionais, as prostitutas contarão com o Estado ao seu lado para se defenderem dos cafetões sem que percam o seu ganha-pão ou caiam nas mãos de policiais mal preparados. Suas condições de trabalho serão regulamentadas pelo Estado, não ficarão na discricionariedade dos puteiros.
Não podemos esquecer que cafetão não retorna nada de seu lucro à sociedade, mas empregadores sim, na forma de tributos. Toda a geração de riqueza da indústria do sexo hoje beneficia a poucos donos de estabelecimentos que enriquecem sem pagar nenhum imposto, quase tão bom negócio como algumas igrejas, com a diferença de que são ilegais.
Uma vez sejam empregadores, cafetões terão de pagar seus impostos regularmente e enfrentarão visitas regulares de auditores fiscais em seu estabelecimento, o que por si só desestimula que seus negócios derivem em exploração sexual.[5]
Para o Estado significa aumentar o poder/dever regulador e incremento de receitas
Tanto o Ministério do Trabalho Emprego como o Judiciário (trabalhista, público e cível) e a receita Federal não poderão mais fingir que não existem 1,5 milhões de pessoas no Brasil que tiram o seu sustento e o de suas famílias através do sexo[6]. Hoje, qualquer problema relacionado à prostituição só tem um canal social de escoamento: delegacias e justiça criminal.
Não apenas contra cafetões, o Estado intervirá em favor das prostitutas quando houver problemas entre elas e seus clientes que, caso não paguem, poderão ser executados em juízo, o que é impossível atualmente, pois se trata de negócio ilícito.
As poucas prostitutas que têm coragem de cobrar na justiça seus clientes caloteiros recebem um não, por conta da clandestinidade de seu ofício[7]. Uma prostituta pode ser condenada por roubo quando força o pagamento de seu programa, porque tal subtração de dinheiro de outrem tem previsão no código penal, enquanto que o pagamento do programa está completamente alijado do ordenamento jurídico, é como se não existisse![8]
Para a sociedade civil, significa alargar possibilidades de intervir e construir a realidade da prostituição na forma de Sindicatos
Ao entrar no guarda-chuva da CLT, a profissão do sexo também contará com a formação de Sindicatos próprios, que zelarão pela melhoria das condições de trabalho das prostitutas, servindo também como uma entidade de construção de consciência de classe e empoderamento.
Ninguém pode afirmar com toda certeza que todas as prostitutas terão suas carteiras assinadas e todos os direitos acima garantidos. Nenhum trabalhador, prostituto ou não, está a salvo de sofrer precarização de suas condições de trabalho, ainda mais na Era Temer, que sem legitimidade alguma busca acelerar a precarização das leis trabalhistas para conceder mais lucros a poucos.
Da mesma forma, ninguém pode dizer que a exploração sexual acabará ou aumentará com a aprovação da lei. Contudo, podemos afirmar com toda a certeza que o trabalho sexual será melhor fiscalizado, que cafetões reduzirão significativamente seu poder sobre as prostitutas e que os profissionais do sexo terão a quem recorrer caso não respeitem condições mínimas de trabalho.
Camila Sposito é advogada e mestranda em direito econômico pela USP, integrante da Rede Feminista de Juristas Defemde.
Referências
[1] http://www.câmara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=551899
[2] Por exemplo, proibir a prostituição por conta da mercantilização do corpo ou do pecado da fornicação são duas posições imbuídas de ideais que um Estado democrático de direito como o nosso, moldado pela Constituição Federal de 1.988, não pode atender e nem se fundamentar: anticapitalismo e religião.
[3] “A PME (Pesquisa Mensal do Emprego) mostrou que na composição da população ocupada total em 2012, os empregados com carteira assinada no setor privado representavam 49,2% do contingente, o que correspondia a 11.287 mil trabalhadores. Em todas as regiões metropolitanas, o percentual de empregados com carteira assinada no setor privado ultrapassava os 40,0% da população ocupada, atingindo, em alguns casos, mais da metade dessa população, como nos casos de São Paulo (53,1%) e Porto Alegre (50,5%). O Rio de Janeiro e Recife continuam sendo as regiões com as menores proporções: 44,1% e 44,4%, respectivamente.” http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/trabalhoerendimento/pme_nova/Evolucao_emprego_ca...
[4] O MTE reconhece já a profissão do sexo como uma ocupação para fins de censo (CBO – Classificação brasileira de Ocupação Nº 5198 – 05 profissionais do sexo)
[5] Cafetinagem e exploração sexual não são a mesma coisa, conforme bem definido no projeto de lei em comento (4.211/2012)- “Art. 2º - É vedada a prática de exploração sexual. Parágrafo único: São espécies de exploração sexual, além de outras estipuladas em legislação específica: I- apropriação total ou maior que 50% do rendimento de prestação de serviço sexual por terceiro; II- o não pagamento pelo serviço sexual contratado; III- forçar alguém a praticar prostituição mediante grave ameaça ou violência.” Afirmações como “O projeto de lei legaliza a cafetinagem” apenas confunde e não agrega qualquer valor ao debate, pois nem toda cafetinagem importa em exploração sexual do tipo que foi tema da novela Salve Jorge e desconsiderar isso é desumano com quem já foi vítima da exploração.
[6] Caderno de Debates Plural. Prostituição. Vol.6, nº 11, março de 1999 – FUMEC, Belo Horizonte. [7] http://tj-go.jusbrasil.com.br/noticias/2435242/juiz-de-montes-claros-arquiva-ação-de-cobranca-movida...[8] http://www.conjur.com.br/2016-mai-20/garota-programa-cobrar-justiça-servico-nao-foi-pago
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