Em entrevista ao portal IG, a ex-ministra da Fazenda Zélia Cardoso, afirma que não se arrepende de ter confiscado a poupança dos brasileiros e que faria tudo de novo. Lei a entrevista na íntegra:
Foto: Carolina Cimenti
Zélia vive em Nova York há 14 anos e é sócia em uma consultoria que ajuda investidores com interesse pelo Brasil
‘Fiz coisas boas para o País, não me arrependo’, diz ex-ministra de Collor
Morando em NY, Zélia conta ao iG que, se voltasse no tempo, confiscaria a poupança novamente: ‘Estou para ser convencida de que haveria maneira melhor'
No dia 15 de março de 1990, aos 37 anos, Zélia Cardoso de Mello se tornou a primeira mulher a assumir o Ministério da Fazenda do Brasil. Um dia depois, Zélia entraria para a história, e para a memória coletiva brasileira, como a ministra que confiscou a poupança.
Com uma expressão séria e profundas olheiras, a então ministra fez um anúncio que estarreceu o País: além de congelar salários e preços, demitir milhares de funcionários públicos, abrir a economia para importações e acabar com inúmeras instituições públicas (que haviam sido criadas durante a ditadura militar), todas as contas bancárias e poupanças do País amanheceriam no dia seguinte com não mais que 50 mil cruzados novos, cerca de R$ 6 mil nos dias de hoje. O valor que excedesse esse número ficaria congelado no Banco Central por 18 meses.
Hoje, mais de 20 anos depois, Zélia diz que não se arrepende das suas decisões no comando da Fazenda porque fez “coisas muito boas para o País”. Diz ainda que “provavelmente faria tudo de uma forma diferente”, mas ainda hoje está para ser “convencida de que haveria uma maneira melhor de resolver o problema da inflação”. “Essa frase eu gostaria que você publicasse na íntegra: nós estávamos à beira da hiperinflação. Então nós tivemos que escolher entre a hiperinflação, com a destruição total de riqueza, e a reforma monetária, que foi drástica, eu reconheço, que foi difícil, eu reconheço, que trouxe sequelas, eu reconheço, mas que evitou a hiperinflação”.
Apenas 15 meses depois de assumir o Ministério da Fazenda, com a sua imagem extremamente desgastada e em meio a um caso amoroso com o então ministro da Justiça, Bernardo Cabral (que era casado), Zélia pediu demissão. Na entrevista, após avisar que não falaria sobre questões pessoais, ela chama o episódio de “uma questão pessoal impertinente”.
Zélia conta que não tem mais contato com o ex-presidente Fernando Collor de Mello: “Ele mora em Brasília, é senador, eu moro em Nova York. São vidas muito diferentes”. E, sobre o impeachment, quando Zélia já não estava no governo, a ex-ministra considera “incrível” o desfecho das denúncias contra Collor: “Não me passou pela cabeça que chegaria tão longe”. Na sua opinião, o impeachment foi um “aprendizado de democracia meio radical”.
Zélia vive em Nova York há 14 anos, é sócia em uma consultoria que ajuda investidores a lançarem negócios no Brasil e administra pequenos portfolios de investimento. Questionada se voltaria ao País, responde: “Não (...) Aqui eu sou bem anônima. No Brasil, por incrível que pareça, mesmo depois de 22 anos, eu ainda não sou”. Apesar de continuar perseguida pelo estigma de ser a ministra que confiscou a poupança, Zélia diz que poucas vezes teve reações negativas na rua: “É normal... às vezes ficam bravos, mas poucas vezes”.
O apartamento de Zélia fica no nordeste do Upper East Side, zona residencial típica da classe média alta de Nova York, onde vive com os dois filhos que teve com o humorista Chico Anysio. Eles têm um gato de estimação. A entrada onde ficam porteiro e concierge é distinta, mas simples, toda em madeira.
O aluguel de um apartamento no edifício deve custar em torno de 7 a 10 mil dólares por mês. No apartamento da ex-ministra a decoração é clássica, com móveis antigos e muitos tapetes persas. Há dezenas de fotografias espalhadas pela sala, muitas delas da época em que Zélia fazia parte do governo Collor. Em destaque, uma grande imagem dela com um vestido branco e outra ao lado da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher. Foi lá que ela recebeu o iG para uma conversa franca, sobre erros e acertos do período que marcou a história política do País. Ao abrir a porta para a reportagem, Zélia desculpou-se fortemente pela “bagunça na sala”, justificando que tem empregada apenas uma vez por semana - algo bem comum em Nova York.
i G: Por que a senhora decidiu se mudar para Nova York?
Porque na época, em 1997, eu estava casada com o Chico (Anysio), e ele sofreu um acidente (o humorista, morto em março deste ano, fraturou o maxilar na ocasião) . Como sequela, teve uma paralisia parcial do rosto e estava com dificuldade para mexer a boca, não podendo aparecer na TV. Aí ele sugeriu que passássemos um ano sabático em Nova York. Como tudo na vida, as coisas mais interessantes acontecem sem planejamento. No fim das contas, nós viemos passar um ano aqui porque era um projeto dele, mas acabamos nos separando, e Nova York virou um projeto meu.
iG: Qual é a sua opinião sobre a economia brasileira hoje?
Zélia: Eu sou muito cautelosa com relação à economia brasileira. Não há dúvidas de que haja um interesse muito grande no Brasil, e de que o Brasil fez progressos incríveis nos últimos anos. Mas eu continuo cautelosa porque eu acho que nós temos problemas estruturais que não foram resolvidos e estão sendo adiados há anos e anos e anos, e, paradoxalmente, quando as coisas vão bem, ninguém pressiona para que haja mudanças. É muito bom ter sucesso, mas é verdade que a crise é boa porque a crise traz a mudança. Nós agora estamos com credibilidade externa, com crédito, as pessoas estão investindo no Brasil, a inflação está maior do que a meta, mas está sob controle, 30 milhões de pessoas ascenderam à classe média, então tudo isso é muito bom e faz com que não haja pressão, nem dos políticos e nem pública, para que se façam reformas.
iG: Que reformas seriam essas?
Zélia: Investir em infraestrutura e diminuir o custo Brasil... Olha, eu fui ministra há mais de 20 anos, e desde lá já se falava em diminuir o custo Brasil, e o custo Brasil continua o mesmo! Há necessidade de reforma tributária... há problemas que vão sendo adiados. Eu acho que a economia brasileira no geral vai bem, vai muito melhor do que outras economias, com certeza melhor do que Grécia, Portugal, Espanha. Brasil se tornou a sexta economia do mundo, há grandes motivos para comemorar, mas a gente não devia sentar em cima do sucesso. Devia, sim, fazer o que é necessário para que isso seja uma coisa permanente.
iG: Se a senhora fosse ministra da fazenda hoje, que medida tomaria?
Zélia: Eu acho que a reforma tributária é essencial, e investimentos em infraestrutura. Eu nem entendo... por que não há investimento em infraestrutura, com essa coisa da Copa do Mundo e Olimpíadas? Por que a privatização dos aeroportos só saiu agora? Era para ter saído há mais anos... Eu nem sei se o ministro da Fazenda tem essa capacidade de influenciar, mas eu acho que teria que ter uma vontade do governo como um todo em acelerar decisões políticas. E mais a longo prazo, nós precisamos de investimento em educação.
iG: Se pudesse voltar no tempo, diretamente para março de 1990, faria algo diferente?
Zélia: (Ela toca a cabeça e fecha os olhos) Com certeza! Eu nem sei por onde começar... Olha, eu acho que o nosso diagnóstico estava correto: havia um problema conjuntural grande, que era o problema da inflação, e tínhamos um problema estrutural, que era o fato de sermos uma economia fechada, pouco competitiva, monopolizada e com pouco avanço tecnológico. Eu acho que nós fomos extremamente bem sucedidos nas reformas estruturais, por exemplo, na abertura das importações, nas privatização (no setor de aço, com a Usiminas) e ao inicializar a liberalização financeira. Até 1990, quando os brasileiros viajavam, eles tinham que levar um saco de dinheiro, fazer traveller’s check, etc. A gente criou o cartão de crédito internacional no Brasil, que até ali não existia! Outra coisa que criou uma mudança muito grande foi a retirada do IPI (Imposto sobre Produto industrializado) para carros pequenos, que abriu o mercado de carros abaixo de uma certa cilindrada. Então nós fizemos reformas estruturais que foram muito bem sucedidas, muito importantes, e que de alguma forma prepararam o país para a globalização. Agora, na parte da inflação, que era o diagnóstico conjuntural, nós obviamente fracassamos. E eu acho que aí provavelmente eu teria feito coisas diferentes. Não sei exatamente o que seria diferente, mas nós fomos muito traumatizantes com o confisco, a reforma monetária. A outra coisa em que fracassamos foi a dívida externa. Esse foi um erro grave. Acho que se a gente tivesse sido bem sucedido na dívida externa e tivesse garantido o fluxo de recursos o resultado teria sido mais positivo.
iG: E qual foi a falha em relação à dívida externa?
Zélia: A falha foi que nós tivemos uma posição radical e isso assustou todo mundo, tanto o Fundo Monetário Internacional (FMI), quanto os mercados. Resumindo: o Brasil tinha um estilo de economia, que era fechada, pouco competitiva e sem inovação tecnológica. Com as mudanças que fizemos, nós mudamos a economia brasileira e a preparamos para a globalização. O conceito é esse, e por isso que eu digo que fomos bem sucedidos ao mudar a natureza da economia brasileira. Mas fomos muito mal sucedidos na negociação da dívida externa e no combate à inflação. Porém é preciso lembrar que, quando eu assumi o ministério, a inflação chegava a 82% ao mês. Ao final de 1990, quando o Plano Collor começou a dar errado, ela estava em torno de 19%. Muito melhor do que quando entramos no governo.
iG: Como foi a decisão de realizar a reforma monetária, conhecida como confisco?
Zélia: Olha, o processo em si foi muito demorado, foram meses de discussões antes do anúncio. Mas desde que o presidente Collor encomendou um programa econômico a um grupo de pessoas, nós começamos a trabalhar nisso e, à medida que começamos a analisar as contas do governo, ficou claro que qualquer reforma fiscal significativa não seria eficiente se não estancássemos a dívida pública. Era preciso estancar aquele processo de overnight em que nós tínhamos nos metido, caso contrário os ganhos serviriam somente para pagar os juros. É preciso lembrar que nós fizemos uma redução fiscal significativa, o governo tinha um déficit de 8%, e passou para um superávit de1%, ou seja, fizemos uma reforma fiscal de 9 pontos percentuais. E isso não foi uma decisão de um dia pro outro, foi uma decisão extremamente pensada e discutida por horas e horas nesse grupo de pessoas que depois vieram a fazer parte do governo em diferentes posições. E quando a decisão do confisco estava sendo encaminhada, eu nem sabia que seria a ministra. Nem sabia que seria a pessoa que ia anunciar e ficar com esse estigma todo.
iG: A senhora se arrepende?
Zélia: Não, eu não me arrependo porque eu acho que eu fiz coisas muito boas para o país, mas o que eu não gosto é que as pessoas só lembram das coisas ruins e não das coisas boas. Isso é o que me deixa mais triste.
iG: O que a senhora mudaria, se pudesse, na reforma e no anúncio?
Zélia: Provavelmente eu faria tudo de uma forma diferente, mas ainda hoje eu estou para ser convencida de que haveria uma maneira melhor de resolver o problema da inflação. O anúncio com certeza foi um desastre porque eu estava exausta, eu não dormia há três noites, eu nem sabia direito o que estava acontecendo. Mas, veja bem, essa frase eu gostaria que você publicasse na íntegra: nós estávamos à beira da hiperinflação. Então nós tivemos que escolher entre a hiperinflação, com a destruição total de riqueza, e a reforma monetária, que foi drástica, eu reconheço, que foi difícil, eu reconheço, que trouxe sequelas, eu reconheço, mas que evitou a hiperinflação. Vou dar um exemplo para comparar: o governo de Barack Obama e George W. Bush é muito criticado pelo TARP (o programa de resgate dos bancos durante a crise financeira de 2008) porque, na visão americana, que é extremamente liberal, é um absurdo o governo salvar instituições financeiras. Mas o fato é que se eles não tivessem feito aquilo, nós teríamos voltado a 1920, a gente estaria numa depressão, o sistema financeiro teria tido um colapso total, aqui e no mundo, com repercussões que não se sabe. Chega um momento em que você tem que tomar uma decisão. E eu acho que nós estávamos naquele momento, com uma inflação de 82% ao mês. Mas eu provavelmente mudaria o anúncio e não faria tudo de uma vez só, logo no primeiro dia de governo. Porém, quando você toma uma decisão, você a toma baseada nos elementos que você tem na sua frente. Tomar uma decisão 20 anos depois e dizer que eu teria feito isso e aquilo diferente é muito fácil. Naquele momento, aquela nos pareceu a decisão mais correta, e aquela forma nos pareceu a forma mais correta
iG: A senhora foi a primeira ministra da economia mulher, e mesmo depois, foram todos homens. Acha que a repercussão disso, historicamente, ajudou a levar Dilma Rousseff à Presidência?
Zélia: Eu acho que sim, mas eu não consigo avaliar. O governo Lula trouxe muitas mulheres, e a Dilma agora está trazendo mais mulheres ainda para posições importantes no governo. É um movimento bem interessante no Brasil, mais até do que em outros lugares do mundo. E eu acho que o fato de eu ter ocupado um cargo que, por natureza, é masculino deve ter alguma influência, mas eu acho que o presidente Lula teve uma grande contribuição ao trazer mais mulheres para o governo, e eu acho que ele tem que ser reconhecido por isso.
iG: Foi difícil ser a única mulher da equipe, em um cargo tão alto?
Zélia: Com certeza, até porque eu era muito jovem. Eu tinha 37 anos.
iG: Sente saudade de Brasília?
Zélia: Não.
iG: Tem contato com o ex-presidente Collor?
Zélia: Não. Ele mora em Brasília, é senador, eu moro em Nova York. São vidas muito diferentes.
iG: A senhora pensa em voltar para o Brasil e talvez para um cargo público?
Zélia: Não. Agora, depois de muitos anos que eu consegui recuperar a minha vida pessoal, a minha privacidade, eu não tenho vontade de perdê-la. Quando você assume um cargo público como eu assumi, mulher, ministra da economia, jovem, você perde muito a sua privacidade. Então demorou muito para eu recuperá-la. E esse é um dos motivos pelo qual eu gosto tanto de Nova York. Aqui eu sou bem anônima. No Brasil, por incrível que pareça, mesmo depois de 22 anos, eu ainda não sou. As pessoas me reconhecem nas ruas, às vezes me reconhecem pela voz, uma vez eu entrei no táxi e o taxista me reconheceu quando eu disse aonde queria ir...
iG: E como é o comportamento das pessoas com a senhora? Não reclamam? Não se lembram da poupança?
Zélia: Não, é normal... às vezes ficam brabos, mas poucas vezes eu tive reações negativas. Houve casos, claro, mas poucas vezes. Felizmente. Então quando você recupera a sua privacidade, você não quer perdê-la.
iG: Qual foi o pior momento do governo Collor para a senhora?
Zélia: Ah, teve vários. Pior momento tinha todo o mês quando a gente via o resultado da inflação e não era o que a gente esperava. Acho que algumas reuniões com o FMI também foram momentos muito difíceis. Esses foram maus momentos.
iG: E como foi a sua saída do governo?
Zélia: Eu pedi demissão. Eu achei que por vários motivos, inclusive pessoais, afinal eu havia embarcado em uma questão pessoal impertinente, digamos assim, eu achei que naquele momento eu já não estava contribuindo tanto. Eu achava que a minha saída ajudaria a tirar o foco de distração do governo e se poderia voltar a discutir coisas sérias. A gente tinha tentado fazer grandes negociações, pactos sociais, que foram meio fracassados, então a minha avaliação naquele momento foi de que a minha saída ajudaria o presidente a recompor o governo como ele quisesse e dar um novo rumo. Nós havíamos lançado o Plano Collor 2 em janeiro, então eu achei que a minha saída o daria uma oportunidade para renovar a equipe.
iG: A senhora saiu do governo em maio de 1991, antes do turbilhão final. Mas enquanto a senhora estava no governo, dava para imaginar que tudo fosse acabar como acabou? Dava para imaginar o Impeachment?
Zélia: Não. Impeachment é uma coisa muito séria. Nem passava pela minha cabeça que se pudesse chegar a esse ponto. Eu acho que foi uma mistura de várias coisas. Eu não quero entrar no mérito da questão, até porque o Collor foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal, então não cabe a mim entrar no mérito da questão, se havia ou se não havia corrupção, mas acho que politicamente o caso foi mal conduzido. E até hoje acho incrível que a gente tenha chegado a esse ponto, de ter tido o Impeachment.
iG: Incrível em que sentido?
Zélia: Porque tirar o primeiro presidente que foi eleito democraticamente tem um significado muito profundo. Ele foi o primeiro presidente eleito pela população e, por coincidência, foi o primeiro presidente a ser retirado, não pela população, mas pelo Congresso Nacional. Eu acho que é um negócio incrível. O Congresso poderia ter eventualmente ficado satisfeito com a demissão dele. Mas enfim, não cabe à mim. Quando eu era ministra, havia rumores de corrupção, mas não me chegou nunca a passar pela cabeça que iria tão longe. E veja o seguinte, mesmo estando fora do Brasil há vários anos, eu escuto rumores de corrupção sobre o governo anterior, sobre o governo anterior do anterior... Rumores de corrupção sempre existiram e provavelmente corrupção sempre existiu, e digo mais: provavelmente corrupção sempre vai existir porque o governo é muito grande e tem muita gente tomando decisão. É muito difícil controlar tudo. O ideal seria que cada um tivesse ética, mas não é assim, não só no Brasil, mas em todo o mundo. Mas daí a achar que é uma corrupção generalizada, vão aumentando os degraus de acusação. E no caso do governo Collor, por uma dificuldade política dele e dos partidos que o apoiavam, de lidar com isso de uma maneira mais clara, de inclusive eliminar os problemas se eles existissem, levou a essa situação dele ter que se retirar do governo, quando eu acho que não precisava ser esse o desenrolar. Não tenho elementos para julgar, mas eu acho que foi um aprendizado de democracia meio radical.
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