18 de nov. de 2014

A Montagem da Vida

O MINISTÉRIO dos 140 caracteres adverte: se estiver com preguiça de ler ou não quiser rir um bocadinho nem começa…
Em duas ou três horas passeando pela fauna e flora desta cidade todos os tipos já me saltaram aos olhos. 

Por Iberê Lopes

Até me observei debaixo da lona preparada em forma de avião, para que ninguém diga que fui parcial demais. Sendo assim, em rima pobre, começo por mim. O melindrado vaidoso, que antes de sair de casa consegue pensar em como será visto pelos outros. Nenhuma surpresa.

Finalmente saio insatisfeito, é bem verdade, por não poder adivinhar o que passará na mente alheia. Passo pela portaria e o sujeito sentado como um sapo brejeiro vasculha algum resquício de sorriso no meio do bigode grosso. Entra em cena o rabugento. Na face cansada e enrugada evidencia as escolhas que fez ou a oportunidade que faltou para não estar ali. Nenhum juízo de valor quanto à profissão, necessária e de muita relevância na proteção das fortalezas dessa emergente classe média com medinho dos que ainda estão à margem. Mas este é outro papo.

Subindo o ônibus dou de cara, sem muito tempo de absorver a realidade, com a próxima vítima. A apreensiva nomofóbica desliza os dedos sobre a tela do celular de cinco em cinco… segundos. Aperta os lábios, bate os pés e visita os amigos virtuais o tempo todo, procurando uma novidade, um segredo ou algo incomum ao seu cotidiano morno. A demora em atualizar seu refúgio proporciona aos passageiros uma visão vertiginosa dos malefícios provocados pelas novas tecnologias.

Chego ao ponto, desço assim meio sem jeito. Querendo o fim do dia eu aprisiono alguns sonhos e sigo em frente. Pausa para o pastel. Um sujeito encosta na banquinha e, olhando para todos os lados, diz em voz baixa: “quero um de carne com queijo e um suco de caju.” Sem saborear as iguarias os abduz empurrando-os com o suco. Preservar a imagem em um mundo de aparências é fundamental.
Agora é a parte dramática e não menos importante. O sábio sobre todas as coisas. Olha atentamente minhas vestes – eu sabia que alguém havia de notar – e dispara: “sua camisa está um pouco amassada, não acha?” E engata mais outra: “tu vive escutando música, não enjoa?” Do alto de minha prepotência habitual respondo que estava mesmo precisando de alguém para pagar minhas contas. E se ainda pudesse limpar a casa e lavar a louça seria muito bem vindo.

Sobrevivendo ao dia, me vi preocupado por ser este relato apenas de parte da manhã.
O caridoso e a caridosa. Nem havia ligado o computador e dado um bom dia quando meu café já repousava esfumaçante sobre a mesa. Solícito e muito bem humorado – observando minha alegria plastificada – abre as cortinas da lida com algumas piadas. Pronto, a caridade de espalhar sorrisos é feita conforme a necessidade do cliente. A senhora adentra a sala e exclama que trouxe marmita e o almoço será servido pontualmente ao meio-dia. Tocante saber da preocupação despretensiosa de almas tão generosas.

Do outro lado da força, no corredor pouco iluminado, um burburinho de vozes rastejantes prende a minha atenção. São as confabulações inerentes ao meio, advindas naturalmente de uma insegurança que as tornam defensivas.

A deslumbrada rouba o palco e desfila, como se passarela fosse o caminho gélido e levemente fétido de sua sala até as escadas. Mais ou menos 3 metros de pura glória da diva suburbana. Eu, absorto pela qualidade desta peça de teatro gratuita, descrevo com riqueza de detalhes o ambiente e as personagens. De certeiro apenas o compromisso com a ficção que me compele a pressionar as teclas desgastadas do computador.

Resolvo adiantar o final para não ficar enfadonho. Na parada, aceno ao coletivo que estaciona violento, deslocando abruptamente um ou dois sacos de batata. Quero dizer, pessoas. Sigo à caminho de casa curioso e atento aos movimentos da rua, como quem quer chegar em um lugar sem saber o itinerário. Assim, ansioso e esfuziante, feito criança indo ao novo circo que visita a cidade pela primeira vez. Ô planeta sem critério para entrar essa Terra. E a plateia efusiva glorifica de pé mais um dia de resgate cármico, neste lugarzinho assaz aprazível.

Nenhum comentário: