13 de jun. de 2020

Erundina, a nossa Rosa Luxemburgo Por Rudá Ricci

Vou pegar o embalo do artigo saudosista que fiz ontem sobre Paulo Freire e vou escrever algo sobre Luiza Erundina. 

Assumi uma assessoria, logo na posse do governo Erundina em São Paulo, ainda que por pouco tempo, na Secretaria de Abastecimento. Lembro do cerco de oligopólios paulistanos do setor do comércio de frutas que se recusavam a seguir a lei e registrar todos seus negócios, emitindo nota fiscal. Vocês não têm ideia de como há oligopólios nos entrepostos de alimentos por atacado e como são violentos. 

Uns três meses depois, fui indicado para assumir um posto na Secretaria de Administrações Regionais (hoje, secretaria das subprefeituras de SP). Ao todo, 25 mil funcionários em SAR. Luiza havia indicado para secretária a professora da PUC SP, Aldaíza Sposati.  Na época, ouvi dizer que Aldaíza era da indicação da cota pessoal de Erundina e havia certa desconfiança no interior da direção do PT paulistano. Então, alguns meses depois, Erundina decidiu criar uma espécie de subsecretaria coletiva, a ATDR (Assessoria Técnica de Diretrizes Regionais). Éramos 4 compondo esta “assessoria” com cara e cheiro de subsecretaria. Todos nós fomos indicados pelas correntes internas do PT que ou apoiavam seu governo ou tinham peso nos diretórios zonais e municipal do partido. Eu assumi o acompanhamento das regionais de Perus, Pirituba, Lapa, Pinheiros e Butantã e me dediquei ao planejamento estratégico desta pasta. 

Na nova função, tinha mais contato com Erundina. E fui ficando impressionado com seu compromisso com os mais pobres da cidade. Lembro que, quando à acompanhava no carro oficial da prefeita, percebia sua atenção nas ruas. Anotava tudo numa caderneta, pedia para ligar pelo rádio (não usávamos celulares naquela época) para secretários e assessores. Lembro que se via um morador em situação de rua embaixo de um viaduto e imediatamente procurava acionar algum apoio. 

Duas passagens ficaram cravadas na minha memória. 

A primeira, foi numa visita à uma biblioteca infantil num dia de muito frio. Entramos na biblioteca e Erundina se deparou com duas menininhas negras sentadas numa mesa circular, lendo uns livros infantis. Erundina se desgarrou da comitiva e foi aceleradamente até as duas menininhas. Se ajoelhou, abraçou as duas e, segurando-as apertado num abraço carinhoso começou a perguntar: “vocês estão gostando daqui? Os livros são bons e bonitos? Tem algo que a gente pode melhorar?”. Fantástico. Olhei para Erundina e percebi que seus olhos marejavam.

Eu era jovem, 27 anos, mas já tinha mais de uma década de militância política. Meu pai era do ramo, desde pequeno vi como os lances políticos se desenrolam. Nunca havia visto alguém como ela, tão emocionalmente vinculada à vida do povo que mais urgentemente necessitava da ação do seu governo e como efetivamente estava empenhada na mudança de suas vidas. 

A segunda passagem foi mais dura e mais diretamente relacionada com os jogos políticos das cúpulas partidárias. Uma das administrações regionais que eu acompanhava tinha no seu comando um administrador que se digladiava com o diretório zonal daquela região. O presidente do diretório zonal era um militante histórico, dos bons, discurso duro e objetivo, mas afetuoso para quem o conhecia melhor. O administrador era um bom sujeito, um pouco vaidoso, perfil mais para classe média engajada, não muito experiente em gestão. Fiquei meses intermediando um pacto entre os dois. Esta é uma das situações que os cidadãos desconhecem na vida de uma gestão pública: as disputas internas, muitas vezes, mais intensas e demolidoras que as externas.

 Enfim, chegamos a um acordo. Comuniquei Erundina, que ficou quase satisfeita. Algo lhe dizia que a vida é mais difícil que uma rodada de negociações. Eu não precisava, mas achei por bem relatar o acordo ao presidente do PT paulistano da época. Fui até o diretório e relatei cada passo. O dirigente me ouviu e sentenciou: “ela pode negociar o que quiser, mas, no final, terá que comer na minha mão”. Esse é o jogo ácido que Erundina enfrentou.

Esses embates nunca foram totalmente superados emocionalmente. Muito tempo depois, encontrei Erundina em Recife e ela me confidenciou, indignada, que o PT havia devolvido toda a documentação de seu governo como se aquela parte da história do partido não tivesse valor. Erundina relatou muito entristecida e constrangida. Algo que não merecia. Foi o governo mais petista de todas gestões do PT em São Paulo. Posso garantir e detalhar, comparar, com dados e ações. 

Não faz parte do relato sobre Erundina, mas uma outra passagem é tão hilária quanto reveladora. O governo decidiu recapear as marginais. Vivíamos a penúria dos tempos econômicos do governo Collor. Erundina tentava achar soluções criativas e renovou a frota de ônibus do transporte público, achou soluções para comprar diretamente dos agricultores familiares da região (que denominávamos de “pedra livre”), criou metodologias de ação integrada de várias secretarias, criou núcleos territoriais de planejamento e ação intersetorial, criou o MOVA e tantas outras novidades. Mas, neste caso específico das marginais, decidiu fazer o anúncio do início das obras no próprio local. Lá na marginal, num outro dia de frio, estávamos assessores, um ou outro secretário de governo, um ou outro administrador regional, Erundina e.... Eduardo Suplicy.

Poucos jornalistas presentes. Erundina falou com engenheiros e operários, fez um rápido pronunciamento e foi embora. Ficamos alguns assessores e Suplicy. Lembro de ter perguntado para a assessora de comunicação da prefeitura porque Suplicy permanecia conosco. A resposta foi: “ele tem muito contato com a imprensa e tem coisa aí”. Logo em seguida, aparecem vários veículos de comunicação. Suplicy não pestanejou: pegou uma pá e a levantou. Adivinhem quem saiu nas fotos dos jornais no dia seguinte?

A ação integrada que ocorreu em São Miguel Paulista, na Zona Leste paulistana, valeria um estudo. Integrou todas secretarias, planejou uma ação convergente das secretarias da área social com a de obras, enfim, uma logística complexa para que a população percebesse o empenho em melhorar sua vida. A metodologia adotada foi o ponto alto: em cada quarteirão foram eleitas moradoras que fiscalizavam todas obras planejadas, horários e metas. 

Essas moradoras usavam uma espécie de crachá e empunhavam pranchetas com o plano de trabalho diário. Eu vivenciei uma cena burlesca envolvendo um operador de uma retroescavadeira e uma dessas moradoras que fiscalizavam a evolução das obras. Quando chegava ao local, percebi um quase bate-boca entre os dois. Quando o operador viu o carro da prefeitura, levantou os braços e veio até nós. Quase gritando, disse: “Vê se você do governo dá um jeito nessa mulher. Eu comecei a almoçar e ela não me deixou dizendo que não era o horário programado para parar. Eu vou enlouquecer”. Uma gestão popular vive situações como essa.

Luiza Erundina sempre se entregou a esta população mais sofrida. Esta que está pegando ônibus lotados para chegar ao trabalho. Diariamente. Se arriscando a contrair o Covid19. Esteve e está em todos momentos fundamentais da luta pela democracia e pelo avanço das propostas sociais ou de aumento do poder popular. Não cansa. Tem mais energia que muito “influencer”. 

Nossa Rosa Luxemburgo merece ser mais ouvida, principalmente pelos jovens. Ao menos, para saberem que a política pode ser uma das áreas mais nobres da atuação humana. Erundina é uma ilustração cabal desta afirmação. Sua história desqualifica as práticas de bolsonarismos e centrões.

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